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sábado, 29 de fevereiro de 2020

Análise do capítulo X de Viagens na Minha Terra

Funcionalidade do capítulo: introdução à novela da Menina dos Rouxinóis.


Sumário

O sumário deste capítulo revela a grande variedade de assuntos abordados no capítulo, cumprindo assim Garrett o projeto de fazer múltiplas «viagens».


Localização espacial da viagem

O espaço compreende a distância que vai desde o Terreiro do Paço (Lisboa) até Santarém, com referências concretas a Vila Nova (cap. II), Azambuja (cap. V), ao café do Cartaxo (cap. VI), à Charneca (cap. VIII) e, finalmente, ao Vale de Santarém (cap. X).


Localização temporal: fim da tarde.


Estrutura interna do capítulo

1.ª parte: Descrição do Vale de Santarém.

2.ª parte: Reflexões a propósito de uma janela.

3.ª parte: Reprodução de um diálogo entre o narrador e um companheiro de viagem.

4.ª parte: Preâmbulo a uma história que o narrador irá reproduzir.


Descrição (romântica) do vale

Simbolismo: o vale é descrito como um lugar ameno e deleitoso, com uma vegetação frondosa, uma harmonia suavíssima, uma simetria de cores, um sítio simples, sereno e harmonioso habitado pela paz, pela saúde, pelo sossego de espírito, pelo repouso de coração, pelo amor, pela benevolência e pela inocência, isto é, propício ao desenvolvimento de estados de espírito e de caracteres bons, serenos, saudáveis. É o locus amoenus clássico.

O vale é associado a um Éden, a um Paraíso, isto é, um local idílico e aprazível, símbolo de harmonia, que influencia e transforma quem ali vive: “As paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não podem senão fugir para longe.”. Essa associação justifica-se por haver nele uma pureza original e um estado de perfeição e de bondade paradisíacas que a sociedade perdeu. É o paraíso puro, ainda livre de todo o mal que a sociedade gera (mito do bom selvagem, de Rousseau).

A paisagem está em harmonia com o estado de alma: “… tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita (…) não parece senão que a paz, a saúde, o sossego do espírito e o repouso do coração devem viver ali…”.

A paisagem descrita é claramente romântica, sendo marcada pela harmonia, pela suavidade, pela simetria de cores, pela paz, pela saúde, pela perfeição, traços que se adequam a Joaninha.

O cenário adquire, assim, um estatuto alegórico intemporal, acentuando o caráter mítico do cenário onde a novela se vai desenrolar.

O objetivo da descrição é colocar, neste cenário, Joaninha, bem como a avó, personagens que partilham esse estado de pureza original e se harmonizam com este ambiente idílico, pois são espontâneas, boas e naturais como aquele espaço.

A descrição é feita do geral para o particular.

Na descrição são usados diversos recursos estilísticos:
- Valorização do indefinido: um, tudo, nada.
- Nomes abstratos: suavidade, harmonia, beleza, …
- Personificação: “A faia, o freixo, o álamo entrelaçam os ramos amigos” (sugere a proximidade dos ramos das árvores, que formam espécies de tetos).
- Enumeração: “As paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não podem senão fugir para longe” (sugere a grande variedade de árvores, arbustos e plantas menores).
- Metáfora: “a congossa, os fetos, a malva-rosa do valado vestem e alcatifam o chão” (sugere a suavidade e a delicadeza da cobertura de ervas).
- Interrogação retórica: “Quem terá o bom gosto e a fortuna de morar ali?”.
- Comparação: “Encantava-me, tinha-me ali como num feitiço”.
- Sinédoque: “Parei e pus-me a namorar a janela”.
- Metonímia: “Imagina-se por aqui o Éden que o primeiro homem habitou com a sua inocência e com a virgindade do seu coração”.


Prólogo da história da “Menina dos Rouxinóis”

O narrador começa por falar de uma habitação antiga, situada no meio de uma paisagem paradisíaca, e, em seguida, de uma janela entreaberta e, finalmente, de um vulto. É a partir deste que um companheiro de viagem lhe fala na história da Menina dos Rouxinóis. Quem lhe conta a história é, de facto, esse companheiro de viagem, mas o narrador acaba por se apropriar dela: “… minha Odisseia…”), para poder continuar a fazer as suas digressões ou divagações.

Quando depara com a janela, o narrador produz um monólogo interior, motivado pela observação da própria janela (“encantava-me como um feitiço”) e pelo vulto vestido de branco (símbolo de pureza) e de olhos pretos. De facto, numa atitude sonhadora e imaginativa, ele idealiza a existência de um vulto feminino, vestido de branco, numa atitude meditativa e com olhos pretos. Ele perde-se, fascinado, imaginando: quem a habitará?, que felicidade será morar ali? Imagina uma cortina, um vulto – feminino, como não poderia deixar de ser. Ou seja, Garrett vai preparando, habilmente, a entrada em cena da novela.

Porém, o companheiro de viagem corrige-o, esclarecendo que os olhos eram verdes «como duas esmeraldas» (comparação que realça o brilho dos olhos e os associa à natureza) e acrescenta que outrora existiu ali uma figura feminina, um anjo, conhecida como a menina dos rouxinóis.

Os olhos da Menina dos Rouxinóis – verdes – são a representação simbólica da essência natural de uma personagem que habita aquele lugar natural, harmonioso e puro.

O rouxinol é o símbolo do sentimento amoroso (Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro), mas também o prelúdio da desgraça amorosa (janela dos rouxinóis Menina dos Rouxinóis).

O interesse do narrador pela janela é despertado por diversos motivos:
1.º) O mistério que a rodeia, pois o narrador não a vê totalmente (“vê-se por entre um claro das árvores»), ela encontra-se «meio aberta», julga ver um vulto através dela e imagina uma personagem e uma história.
2.º) A sua antiguidade, que decorre das marcas que o tempo nela deixou (“carregada na cor pelo tempo e pelos vendavais do sul”), pelo que deve estar associada a várias histórias.
3.º) O canto dos rouxinóis.

No excerto, entrevê-se a mulher romântica: a mulher namorada, a mulher idealizada, a mulher-anjo.

Público-alvo da novela: as «belas e amáveis leitoras», por considerar que estariam mais predispostas a uma novela sentimental.

Por que razão o narrador a classifica como «novela», rejeitando a hipótese «romance»? Segundo ele, a história que vai contar tem uma ação simples, sem «aventuras enredadas, peripécias, situações e incidentes raros». A sua narração será igualmente simples, sem grande trabalho formal, no entanto «sinceramente contada».

O narrador associa a narração da novela à Odisseia, através de uma metonímia: «É o primeiro episódio da minha Odisseia». Com isto, sugere a aventura da escrita, mas também todos os obstáculos que poderão ocorrer durante esse processo.

A história da Menina dos Rouxinóis é inserida no relato da viagem através da técnica do encaixe.


Digressão sobre o poeta e a mulher apaixonada

Através de uma sinédoque (esta mulher – a parte – representa todas as mulheres apaixonadas – o todo –, mostrando que há uma essência comum a todas), o narrador afirma que há uma semelhança entre o poeta e a mulher apaixonada: ambos se elevam a um estado superior, pensam e sentem de forma especial, diferente dos demais, e superam a banalidade do mundo.
Naquele enquadramento idílico e paradisíaco, caracteristicamente romântico, o vulto que imagina à janela só poderia, de facto, ser uma mulher apaixonada ou um poeta, pois são ambos seres dotados de uma sensibilidade única, que «veem, sentem, pensam, falam como a outra gente não vê, não sente, não pensa nem fala».


Concretização do projeto anunciado no capítulo:
Ver: descrição do vale e da janela.
Ouvir: história de Joaninha, da Menina dos Rouxinóis.
Sentir: visão subjetiva da paisagem – aprecia o vale como «um destes lugares privilegiados pela natureza».
Pensar: reflexões sobre a janela, sobre quem morou ali, sobre o homem e a mulher apaixonados e sobre a receção da sua «odisseia», isto é, da novela que vai contar.


Planos narrativos

Neste capítulo, os planos da viagem e da novela cruzam-se e relacionam-se de forma indissociável.

De facto, a novela da Menina dos Rouxinóis é contada ao narrador por um companheiro de viagem, que a ouve e dela acaba por se apropriar. Ora, tal significa o concretizar do projeto anunciado pelo narrador no primeiro capítulo:




Narrador

O narrador é heterodiegético: o efetivo é um companheiro viajante de Garrett, mas o narrador da obra acaba por se apropriar da história e acrescentar aspetos de cariz ideológico, moral e social, etc.: “É o primeiro episódio da minha Odisseia…”.
Por outro lado, o capítulo contém diversas expressões que denotam o protagonismo do narrador e o caráter romântico das suas “meditações”: “Interessou-me aquela janela”; “Parei e pus-me a namorar a janela. Encantava-me, tinha-me ali como um feitiço”; “Se o vulto fosse feminino!... era completo o romance”.


Narratário

Na parte final do capítulo, o narrador dirige-se às «belas e amáveis leitoras». O apelo à leitora surge em contextos muito próprios, sobretudo quando se processo o relato da novela, que é suscetível de ser apreendida como história de índole romanesca e sentimental, mas o narrador depressa esbate essa hipótese: “Ainda assim, belas e amáveis leitoras, entendamo-nos o que eu vou contar não é um romance… é uma história simples e singela, sinceramente contada e sem pretensão.”.
A leitora não é, porém, invocada quando está em causa a discussão de matérias de caráter intelectual, como História, Filosofia, Política, etc., o que parece revelar por parte do narrador uma exclusão tática da leitora, porque esta estaria mais predisposta à receção de outros assuntos. De facto, o narrador seleciona um interlocutor feminino ou masculino de acordo com o assunto que aborda.
Esta imagem da leitora representa a mulher que apenas tinha acesso a um leque de temas relacionados com o foro sentimental e íntimo e com as narrativas de índole sentimental.


Marcas românticas
A descrição de uma natureza romântica, inspirada pelo «locus amoenus» clássico.
Identificação da natureza com o estado de alma.
Gosto pelo vago: “É amiudar muito der mais a pintura, que deve ser a grandes e largos traços para ser romântica, vaporosa.”.
A natureza espontânea.
Gosto pelas coisas antigas: “uma habitação antiga”.
O gosto pelo que é nacional: o vale de Santarém é algo que nenhuma outra nação tem; a defesa da língua portuguesa («… dizem as damas e os elegantes da nossa terra que o português não é bom para isto, que em francês que há outro não sei quê.»).
A ideia de encantamento: “Encantava-me aquela janela”.
O poeta como ser sentimental, diferente dos outros homens.
A ideia de que o afastamento da sociedade, a convivência com a natureza purifica o homem – mito do bom selvagem, de Rousseau.
O rouxinol.
O pôr do sol.
A sensação do misterioso (a janela meio aberta).


Características clássicas
A harmonia patente no texto.
O sentimento de paz e bem-estar.
O locus amoenus.


Tipos de discurso
» Descrição: frases longas, verbos de estado, enumerações, nomes e adjetivos.
» Monólogo interior: frases curtas, interrogativas e exclamativas, repetições.
» Diálogo: discurso direto, língua oral, frases incompletas, frases-feitas.


sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Análise do conto "George"


1.º parágrafo

George encontra-se a caminhar numa “larga rua”, num dia de muito calor, rua essa que já percorrera há vinte anos. Ela é uma mulher de 45 anos (como viremos a descobrir mais à frente) que regressa à sua terra natal, mais de 20 anos de ter partido. A sua caracterização será feita em simultâneo com a de Gi.

A dupla comparação («Andam lentamente, mais do que se pode, como quem luta sem forças contra o vento, ou como quem caminha, também é possível, na pesada e espessa e dura água do mar.») traduz a lentidão da aproximação das duas personagens e, mais ainda, a dificuldade, o esforço para prosseguir o caminho. Por outro lado, sugere o quão difícil é caminhar contra elementos adversos e prepara a atmosfera pesada da vivência para a qual se encaminha a personagem.

▪ O ambiente que se faz sentir «na longa rua» é marcado pelo calor e por uma aragem de «forno aberto», o que significa que esse ambiente é incómodo e asfixiante.

A convocação de Gi cumpre um objetivo claro: George evoca o seu passado, materializado na figura daquela, representante da sua fase jovem, e perspetiva o seu futuro, criando uma imagem mental de si na velhice, Georgina.

A metáfora da bússola significa o seguinte: George sente que perdeu o rumo, o sentido orientador da sua vida, bem como muitas outras coisas, o que sugere que a personagem se sente desorientada, perdida.

A oração coordenada disjuntiva (“Perdeu ou largou?”) e a interrogação é bastante significativa. De facto, se a personagem «perdeu», poderá ter sofrido e lamentar a sua sorte ou o seu excesso de sonho e esperança. Se, por outro lado, «largou», então fê-lo voluntariamente, algo que pode ser ainda mais doloroso ou frustrante por depender, não do acaso, mas da sua própria vontade e capacidade de decisão. George aprecia a liberdade, por isso evita criar vínculos com objetos e lugares, o que acentua a possibilidade de as perdas serem deliberadas.

▪ Por outro lado, o recurso à conjunção coordenada disjuntiva traduz a incerteza e a ambiguidade do narrador no que à descrição que faz e ao seu discurso diz respeito.

O uso do plural (“caminham”) indica a existência de duas personagens: George e a outra.


2.º parágrafo

As duas personagens vestem vestidos brancos e caminham em sentido contrário, o que significa que se irão encontrar como num espelho. É esta característica física que aproxima o retrato de ambas.

▪ Nota para a referência do narrador ao facto de George ter querido, e quase conseguido, esquecer o nome da «outra», ou seja, o seu passado.


3.º parágrafo

Retrato da personagem: jovem, rosto vago e sem contornos; feições incertas e pálidas (comparação com os mortos). De facto, as feições de Gi começam por ser pouco nítidas e esfumadas, mas a sua voz «é muito real e viva».

Como o encontro com Gi ocorre no espaço interior da memória, a figura dificilmente aparece como visão, mas vai-se desmaterializando, permanecendo apenas como voz que possibilita o estabelecimento de um diálogo, à medida que esse contacto interior se prolonga.

Como se verá, a narração do encontro alterna com outros pensamentos de George sobre o seu passado, o que demonstra que o encontro se dá também em pensamento, por isso de forma fragmentada, como é característico da memória.

▪ Referência à “fotografia que tem corrido mundo numa mala qualquer, que tem morado no fundo de muitas gavetas”: personagem muito viajada.


4.º parágrafo

▪ Retrato da personagem:
- físico: olhos largos, semicerrados; boca fina; cabelos escuros e lisos; pescoço alto de Modigliani;
- socioeconómico: pobre, origens humildes.

▪ Pais de Gi / George: eram gente de trabalho, pobre e inculta, com pouca instrução; olhavam o interessa da filha pela cultura com um misto de superioridade característica dos adultos perante as crianças e de indignação ou vergonha por aquilo que, pensavam eles, faria ria as outras pessoas.

▪ Intencionalidade crítica do parágrafo: a pouca instrução dos pais da personagem está associada ao interesse do poder político em manter o povo na ignorância e afastado do conhecimento de outras realidades para além das que correspondiam ao seu espaço social, à sua mundividência. Desta forma, não desenvolviam o seu espírito crítico, o seu poder de reivindicação, algo que constituía um perigo para o regime de ditadura.


5.º parágrafo

▪ George partiu da vida “à descoberta da cidade grande”, porém, naquela época, não era aceitável uma mulher sozinha fazer isso, pois a cidade era considerada um local de perdição.

▪ George era filha de uma família sem grande cultura e vivia numa pequena vila do interior, com as perspetivas próprias de tal contexto: casar, ter uma casa e família/filhos, ser uma esposa e uma mãe exemplares (“… que hei de um dia ser uma boa senhora da vila, uma esposa exemplar, uma mãe perfeita…”) – ou seja, encarnar o papel tradicional reservado às mulheres –, mas sacrificar o gosto pela pintura e desenho que desde sempre manifestara e que a família sempre desvalorizara. Daí a sua decisão de partir, deixando para trás os pais, o noivo, as perspetivas de casamento e a própria vila, indo para longe e desligando-se de tudo.

▪ Que razões existem para a partida de George? A protagonista partiu para descobrir novas realidades, novas experiências, uma nova vida, em suma, com liberdade de escolha. A sua partida da vila foi motivada, portanto, pela vontade de romper com a vida convencional que lhe estava destinada, mas que ela não desejava.

▪ Note-se como vários dados biográficos da personagem surgem concentrados em poucas linhas, o que mostra que os factos não têm, atualmente, grande ou nenhum significado para si. Ou seja, como muitas outras pessoas, George quis mudar, teve várias experiências amorosas (umas grandes, outras casuais/superficiais), casou-se, divorciou-se e viajou muito, aquém e além-mar.

▪ Essa mudança espacial repercute-se no seu físico, nomeadamente no cabelo, cuja cor está sempre a alterar. Aliás, a sua caracterização física foca-se precisamente nas alterações que a sua figura sofreu ao longo do tempo.

▪ George quis distanciar-se da sua juventude, da sua vida com os pais, do seu primeiro namorado (Carlos), isto é, de tudo o que a ligava àquela terra, daí ter partido à descoberta da cidade grande «por além terra, por além mar».

▪ A vida de George acaba por se tornar vertiginosa, o que fica bem visível na sucessão de verbos (“casou-se, divorciou-se, partiu, chegou, voltou a partir e a chegar”), que nos dá a ideia de movimento constante, de procura também constante, de instabilidade emocional.

▪ Atualmente, vive em Amesterdão.


6.º parágrafo

▪ O sexto parágrafo introduza temática da habitação. Nos primeiros tempos após a partida da vila, George passou por dificuldades, tendo vivido em “quartos alugados mais ou menos modestos, depois em casas mobiladas mais ou menos agradáveis”.

▪ A protagonista esconde da mãe estas questões. Com ela comunica através de cartas, escassas (não gostava de escrever) e pouco minuciosas.

▪ As duas últimas notas biográficas do parágrafo são dedicadas à morte dos pais.


7.º - 10.º parágrafo

▪ Estes parágrafos continuam a focar-se na temática habitacional, focalizando o facto de George só habitar casas mobiladas, como já havia sido referido no parágrafo anterior.
   Nesta passagem do conto, destaca-se a necessidade ou o desejo de a personagem não criar ligações, afetos, não estar presa a nada emocionalmente. Só assim é completamente livre para viver, “senhora de si”.

▪ No entanto, esta forma de vida tem consequências negativas para a personagem. Por exemplo, causa-lhe sofrimento e dor (“fazes isso, enfim, toda essa desertificação, com esforço, com sofrimento”). No fundo, estamos perante uma forma de vida que propicia o vazio, a solidão, o desencanto (“os amigos que julga sinceros, sê-lo-ão?”).

▪ O desejo de ser livre subordina tudo o mais: “Queria estar sempre pronta para partir sem que os objetos a envolvessem, a segurassem, a obrigassem a demorar-se mais um dia que fosse. Disponível, pensava. Senhora de si. Para partir, para chegar.”.

▪ Psicologicamente, George caracteriza-se pelo desapego («viveu sempre em quartos alugados» ou «em casas mobiladas»), pela instabilidade afetiva («Teve muitos amores […], casou-se, divorciou-se, partiu, chegou, voltou a partir e a chegar, quantas vezes?»), pelo desejo intenso de liberdade («Queria estar sempre pronta para partir sem que os objetos a envolvessem, a segurassem, a obrigassem a demorar-se mais um dia que fosse.»).

▪ As constantes viagens representam o espírito de liberdade de George. A sua permanente itinerância relaciona-se com o desprendimento das coisas e das coisas, visto que queria estar sempre pronta para partir sem estar presa a nada nem a ninguém. É esta filosofia de vida que a leva a viver em quartos e casas mobiladas em que não conserva quase nada de seu, exceto alguns livros e poucos amigos.

▪ Este desapego das coisas é o mesmo que justifica o abandono da família e a manutenção com ela de contactos superficiais (as escassas cartas escritas à mãe) e que a leva a vender a casa dos pais, mesmo que Gi «talvez ainda [lá] more», isto é, mesmo que a própria George ainda mantenha ligações afetivas com ela e a venda comporte algum sofrimento.

▪ Em suma, a personagem (Gi) deseja ser livre, por isso evita criar vínculos com objetos e lugares, o que nos permite concluir que as perdas na sua vida serão deliberadas.


11.º parágrafo

▪ Os pais, de outro tempo e com outra mentalidade, não compreendiam o desejo de liberdade sentido pela filha.

▪ A referência às malas mostra a mudança do estatuto social da protagonista. De origens humildes, partiu de casa “com uma velha mala de cabedal riscado”, alcançou um bem-estar económico que lhe permite adquirir artigos mais caros e sofisticados (“E as suas malas agora são caras, leves, malas de voar e com rodinhas.”).


12.º parágrafo

▪ As duas personagens encontram-se, finalmente, cara a cara, depois de caminharem devagar uma em direção à outra.

▪ No início, a personagem com quem George depara é envolta em grande mistério. O seu rosto é uma memória esbatida conservada numa fotografia (3.º parágrafo) e vai ganhando nitidez de traços – olhos, boca, cabelos, pescoço (4.º parágrafo). Quando, agora, se encontram, o rosto está novamente esfumado, até o rosto do presente – George – encontrar o rosto do passado, a jovem Gi, uma “rapariguinha frágil, um vime, que ela tem levado a vida inteira a pintar”.

▪ O diálogo que se segue é, na verdade, um encontro de George com a jovem que foi naquela vila, por isso recorda detalhes como o do alfinete de ouro, e na despedida “não se tocam”, nem tal seria possível, e começam a mover-se ao mesmo tempo, lentamente, como quem anda na água ou contra o vento. A cada instante vão-se distanciando cada vez mais. E nenhuma delas olha para trás. “O esquecimento desceu sobre ambas.”.

▪ Em suma, Gi é George e mora na sua memória.


15.º parágrafo

▪ Este parágrafo marca a mudança (a evolução) operada de Gi para George: a juventude, a fragilidade física, as dificuldades económicas e a pobreza (simbolizadas pelo pregador de oiro que penhorou em Lisboa) de Gi → a pintura à maneira de Modigliani > a criação de um estilo próprio, a fama e o sucesso enquanto pintora, de George.


16.º parágrafo e seguintes – o diálogo entre Gi e George

▪ Motivo do regresso de George: vender a casa dos pais.

▪ Simbolismo da venda da casa: a rutura definitiva com o passado.

▪ Retrato de Gi:
- muito jovem
- quieta
- olhar esquecido e vazio
- não espantada com a venda da casa

▪ Projetos futuros de Gi:
1.º) Partir da vila, mesmo sabendo que não terá o apoio e a aprovação da família; sozinha, pois o namorado tem outros projetos que não envolvem sair da região.
2.º) Continuar simplesmente a pintar.

▪ A revelação dos projetos é feita através da memória de George, que, face à imagem de si mesma enquanto jovem, relembra os projetos que então tinha: deixar tudo, partir e pintar.

▪ Esses projetos colidem com os do seu namorado de então, Carlos, que deseja comprar uma terra e construir uma casa, financiados por uma herança recebida.

▪ Também os «outros» fazem projetos para Gi: ser “uma boa senhora da vila”, uma esposa exemplar, uma mãe perfeita, uma boa dona de casa, “com muito jeito para o desenho”, que será como que tolerado, podendo até “fazer retratos das crianças quando tiver tempo”. Espera-se, em suma, que case (a mãe já lhe está a fazer o enxoval), tenha filhos e cuide da casa.

▪ George tem pressa (tem de apanhar o comboio para regressar; no dia seguinte seguirá para Amesterdão, onde tem um ateliê).

▪ A despedida entre ambas é extremamente significativa: dão um beijo rápido, no ar, sem se tocarem; começam a mover-se ao mesmo tempo, devagar; afastam-se, sem nenhuma delas olhar para trás.

▪ Simbolismo da despedida: como a nota ”ambas dão um beijo rápido, breve, no ar, não se tocam, nem tal seria possível” deixa entender, este encontro é, na realidade, o encontro de George consigo mesma, com a recordação de um passado que não deixou saudades, a que não quer voltar, mas onde havia uma jovem, Gi, que nunca deixou de a acompanhar, isto é, que nunca se apagou da sua memória. Por se tratar de uma mera memória, a despedida não causa dor, visto que Gi permanecerá no passado, sempre jovem e sempre presente na memória de George. Por se tratar de uma mera memória, “não seria possível”, de facto, que as duas se tocassem: uma era apenas memória.

▪ A aproximação e o afastamento destas duas personagens revestem-se de mistério, de estranheza e ambiguidade. Alguns elementos fantásticos determinam estes efeitos: as feições incertas do rosto de Gi comparadas ao que acontece com o rosto das pessoas mortas, o rosto esfumado de Gi quando chega perto de George, a estranheza de Gi continuar jovem cerca de 23 anos depois, o beijo dado por Gi e George em que «não se tocam, nem tal seria possível».

▪ Em suma, Gi representa a imagem de George quando tinha 18 anos que esta imagina encontrar no seu regresso à terra onde nasceu e se criou.


38.º parágrafo

▪ No comboio, George tem consciência de que o passado ficou definitivamente para trás. Ao vender a casa dos pais, não lhe resta qualquer motivo para regressar. Nem ela o quer.

▪ No entanto, sente uma certa nostalgia pelo seu passado, por tudo o que ficou para trás na sua vida.

▪ Não obstante, uma parte de si mantém-se distante, livre de emoções: “uma simples lágrima no olho direito, o outro, que esquisito, sempre se recusa a chorar. É como se se negasse a compartilhar os seus problemas, não e não.”.

▪ As lágrimas simbolizam precisamente essa fragmentação de George: a lágrima nostálgica do olho direito e a recusa dessa nostalgia através do olho esquerdo, que recusa a emoção.


39.º - 40.º parágrafos

▪ A partir do 39.º parágrafo dá-se o encontro de George com Georgina.

▪ Este segundo encontro é semelhante ao primeiro: gradual, pouco nítido, visto que ambas surgem com contornos indefinidos e difusos que, gradualmente, se tornam mais nítidos.

▪ Note-se que George resiste ao aparecimento de Georgina, dado que fecha os olhos e tenta dormir. Parece mesmo encará-la com alguma hostilidade, visível nas expressões «velha» e «atirar à cara», bem como na forma como decide terminar o encontro, aludindo a uma dor de cabeça.

▪ Retrato da figura misteriosa (Georgina):
- senhora de idade (eufemismo), uma mulher velha
- mãos enrugadas
- uma carteira preta, cara, italiana – sinal exterior de riqueza
- sorri, um sorriso diferente do de Gi
- cabelo pintado de acaju
- rosto pintado de vários tons de rosa, discretamente mas sem grande perfeição
- boca esborratada

▪ A interrogação “porque havia de ter?” aponta para a metamorfose da figura feminina, salientando a sua evolução e transformação: o sorriso de uma mulher velha não é igual ao seu enquanto jovem.


41.º parágrafo e seguintes – diálogo entre George e Georgina

▪ Retrato de Georgina:
- quase 70 anos
- só
- vive de recordações
- sabe que George vive numa casa mobilada
- adivinha o que George sente

▪ Caracterização de George:
- 45 anos
- sente-se velha por vezes
- está a chorar
- gosta do seu trabalho
- irritada, não quer assumir a tristeza que, involuntariamente, sente

▪ Simbologia de Georgina e do encontro com George:

1.º) Georgina é fruto da imaginação de George. Aparece do nada e, quando George abre os olhos, já lá não está, “desapareceu”. Fala sem ter voz, mas George consegue ouvi-la. Estes dados permitem concluir que Georgina não existe, é imaginada por George, pelo que corresponde ao que ela supõe que poderá ser no futuro, daí a cerca de vinte e cinco anos.

2.º) Georgina, enquanto projeção da personagem, sabe tudo sobre George: (a) que só vive em casas mobiladas, (b) que está triste, (c) mas no dia seguinte terá esquecido o encontro com o passado, (d) que um dia será velha e sentir-se-á só, € que sentirá a falta de ligação à família e aos amigos, (f) que irá sentir a falta do afeto de que fugiu durante toda a vida, como simples fotografias, por exemplo.

3.º) Georgina simboliza a voz da experiência, o saber empírico que alerta George para os problemas com que se deparará no futuro, quando for velha. Dado que é um produto da imaginação de George, podemos considerar que a figura de Georgina representa o medo inconsciente do futuro por parte da protagonista do conto.

4.º) Georgina lembra a George que, embora as pessoas novas não pensem no assunto, a velhice chegará inevitavelmente e com ela os sentimentos de perda, solidão e abandono. É então, nesse momento, que se valorizam a família, os amigos e tudo aquilo que se perdeu ou abandonou. Daí que Georgina tenha tentado obter as fotografias que George nunca guardou.

▪ Na fase final do diálogo entre ambas, George queixa-se de uma dor de cabeça: «Dói-me simplesmente a cabeça.».
A causa desta dor é o facto de a protagonista estar a pensar o futuro, pois ela prevê que poderá ficar só, visto que não cultivou laços de amor ou de amizade. Por outro lado, essa situação poderá acarretar um grande vazio na sua vida perante a falta de raízes no que a rodeia.
Esta dor de cabeça poderá constituir também uma espécie de desculpa de que George se socorre para dar por indo o encontro com a sua imagem da velhice.


Penúltimo parágrafo

▪ George fecha os olhos e procura pensamentos mais agradáveis para fugir a essa dor: uma nova exposição, o quadro vendido que lhe rendeu muito dinheiro, a próxima viagem.

▪ George crê que a fuga a essa dor, a essa preocupação com o futuro, a esse vazio que tanto teme, reside no dinheiro e no êxito enquanto pintora, que lhe trará mais dinheiro. Para ela, quem tem dinheiro nunca está só.

▪ George tenta convencer Georgina, o seu «eu» futuro dessa verdade, porém ela já lá não está. Esfumou-se.

▪ Só nesta parte do conto se fica a conhecer o nome de George com quase 70 anos: Georgina. Desta forma, o narrador clarifica a dinâmica do conto, entre a realidade da personagem, a sua memória e a sua imaginação.


Último parágrafo

▪ A sensação de asfixia desaparece: «O calor de há pouco foi desaparecendo e agora não há vestígios daquela aragem de forno aberto.».

▪ George sente-se agora «tranquilizada». Depois das suas viagens ao passado e ao futuro, a protagonista sente-se tranquila, pois vai voltar a casa e, por outro lado, convence-se de que, graças ao seu dinheiro, na velhice, não será uma pessoa só, ao contrário do que Georgina prognosticara.

▪ Além disso, em breve estará de novo em casa, em Amesterdão, onde «vai morar com o último dos seus amores. No entanto, fica sempre no ar a dúvida, a incerteza: «durante quanto tempo?».

▪ O comboio constitui a representação real da viagem do passado para o futuro.

▪ Findo o conto, pode concluir-se que George desvalorizou a mensagem de Georgina, traduzindo isto, talvez, a incompreensão da velhice por parte dos mais novos, «pois esta idade só é verdadeiramente compreendida e sentida por quem a atinge e vive as limitações e o sofrimento que ela implica.». (Manual Palavras 12, p. 170)

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Resumo do capítulo VIII de Viagens na Minha Terra

O autor contempla a charneca, uma vegetação épica situada entre o Cartaxo e Santarém, descrevendo-a de forma poética como um lugar ímpar, quase chegando ao ponto de versejar. Não obstante, nega que seja romântico.
Para se distanciar do romantismo indesejado, conta que o companheiro de viagem lhe chamou a atenção para o facto de ali ter ocorrido a última revista do imperador D. Pedro ao exército liberal. Esta referência fá-lo recordar a guerra civil, e todas as guerras, reconhecendo que nenhuma delas tem um vencedor. De seguida, nega que seja um filósofo (que basicamente se opõe a qualquer guerra), e afirma que apenas sente tristeza ao pensar nesse assunto.
Desanimado pelos últimos temas focados, chega à ponte da Asseca.

Resumo do capítulo VII de Viagens na Minha Terra

O autor compara um passeio pelas ruas de Paris, com os seus monumentos e o seu movimento, dentro de um carro motorizado e suspenso por molas – o que já considera uma grande experiência, à sua chegada ao Cartaxo montado numa mula, e sustenta que esta é superior àquela. Explica que é um erro dos que não viajam, que não saem de Lisboa, acreditar que todas as praças são iguais às da sua cidade, ressaltando a singularidade do Cartaxo.
Ao chegar a um café discorre sobre as qualidades da bebida, afirmando que, de acordo com o tipo de café, é possível saber em que género de país está. Ironicamente, descreve o «magnífico» estabelecimento, do tamanho do seu quarto, com utensílios pendurados e moscas pousadas. Mantém um breve diálogo com o dono do espaço, que, quando questionado sobre as novidades da região, responde que só são novidades as notícias provenientes de Lisboa.
Enquanto passeia pelo Cartaxo, ressalta a sua importância – e de Portugal – pela produção de bebidas alcoólicas, como influenciadora de grandes acontecimentos, guerras e revoluções, pela Europa.

Resumo do capítulo VI de Viagens na Minha Terra

Neste capítulo, Garrett enceta um outro tipo de viagem, pelo mundo das ideias.
Assim, começa por ressaltar a sua identificação com Camões, que considera um escritor à frente do seu tempo, valorizando a mistura que fez da cultura cristã com a mitologia grega n’Os Lusíadas, nas suas palavras «a Ilíada dos povos modernos».
A seguir, compara outras obras grandiosas, como a Divina Comédia, de Dante, ou Fausto, de Goëthe, ao poema épico de Camões, destacando as semelhanças que contêm: a fé em Deus, no ceticismo e na pátria, respetivamente. Neste contexto, decide então que a sua se norteará pela sua fé em Camões e lamenta que os autores contemporâneos, vivendo numa época de maior liberdade, não sejam tão despojados quanto os que citou, que viveram em tempos de trevas e, não obstante, produziram obras grandiosas.
De seguida, toma a decisão de viajar para o inferno, ou melhor, para a região dos Elísios, da Estige e do Cócito citando Dante , onde «se pode parlamentar com os mortos sem comprometimento sério», visto que deseja fazer algumas perguntas ao Marquês de Pombal, figura controversa da política portuguesa e adepto do despotismo esclarecido. Lá encontra-o num jogo de cartas com aqueles que, antes, tinham sido seus inimigos políticos. Isto fá-lo observar que não há amigos ou inimigos políticos a partir sua entrada na «eternidade». O autor fracassa na sua tentativa de questionar o Marquês, que desconversa e sai.
Volta então ao mundo real e à sua viagem a Santarém, a qual está agora na região do Cartaxo.

Resumo do capítulo V de Viagens na Minha Terra

O autor e os seus companheiros de viagem chegam ao pinhal da Azambuja, cuja visão o deixa surpreendido, pois tudo era bastante diferente do que imaginara para aí colocar os seus heróis romanescos. De facto, a vegetação era rala e ocupava pouco espaço, o que iria comprometer a escrita do seu livro. A este propósito, perde-se numa tentativa de explicar ao leitor como eram construídos os livros na época, denunciando a sua falta de originalidade e o seu artificialismo. De facto, a literatura romântica seguia uma espécie de receita: uma ou duas damas, um pai, dois ou três filhos, um criado velho e um vilão eram as personagens; de seguida, utiliza-se um pouco do que existe nas obras antigas e está pronto o livro. Em contraste, argumenta que um romance construído de outra forma, mais detalhada e realista, implicaria um trabalho porfiado de pesquisa, algo e, que os escritores não teriam interesse. Trata-se, em suma, de uma forte crítica à literatura romântica cultivada em Portugal, que constituía uma imitação caricatural da má literatura europeia.
Posteriormente, enumera algumas hipóteses pelas quais o pinhal teria ido embora dali, concluindo que estava «consolidado», num óbvio trocadilho com o termo financeiro usado nos orçamentos públicos.
O choito (isto é, o trote de passo curto) de uma mula fá-lo recordar a figura excêntrica de um marquês que gostava desse movimento animal, tanto que, mesmo em Paris, abria mão do conforto de transportes com molas para «choitar» num veículo menos moderno, alegando que nele encontrava «propriedades tonipurgativas».
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