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sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Análise da Cena 7 do Ato II de Frei Luís de Sousa


 
O discurso de D. Madalena demonstra a sua preocupação e ansiedade: repetições, cortes nas frases, exclamações, mudança de tom de voz [“(Baixo a Doroteia)”; [“(Fala baixo da Doroteia que lhe responde baixo também: depois diz alto.)”], recomendações a todos que acompanham a filha.
 
Manuel de Sousa Coutinho e Maria consideram a hipótese de já não ir a Lisboa, tal é o choro de D. Madalena, que se despede dramaticamente do marido (“Adeus, esposo do meu coração!”) e, além dos muitos conselhos que dá (“Maria, minha filha, toma sentido no ar, não te resfries. E o sol… não saias de baixo do toldo do bergantim. Telmo, não te tires de ao pé dela.”), revista tudo o que a filha leva, para que não lhe falte nada.
 
Tendo em conta que a viagem é curta (de Almada a Lisboa e regresso) e breve (regressarão naquele mesmo dia), como se justifica todo o dramatismo de D. Madalena? Ela pressente que esta partida, esta despedida, não é momentânea, de horas, mas para sempre. As cenas seguintes comprovam que tem razão, já que, quando se reencontrar com o marido e com a filha, o seu casamento e a sua família presentes não são mais viáveis, pois está confirmado que D. João de Portugal está vivo através do seu regresso na pele do Romeiro. Assim sendo, esta é a última vez que se veem enquanto elementos da mesma família. Por exemplo, D. Madalena e Maria só tornarão a ver-se no momento em que a primeira se prepara para ingressar no convento.
 
D. Madalena, nesta cena, mostra-se muito carinhosa com Maria e zelosa e preocupada com o seu bem-estar, envidando todos os esforços para que nada lhe aconteça ou falte. Maria, por sua vez, procura acalmar a mãe, mas, na realidade, sente-se profundamente abalada com a tristeza e o sofrimento que D. Madalena deixa transparecer.
 

Análise da Cena 6 do Ato II de Frei Luís de Sousa


 
Esta é uma cena rápida, girando em torno de Maria, após a sua saída de cena para se preparar para a viagem a Lisboa.
 
Manuel argumenta em defesa da filha, afirmando que a ida lhe fará bem, pois ela necessita de se distrair, de sair de casa, mudar de espaço. Só assim se evitará que esteja sempre a pensar nos mesmos assuntos.
 
D. Madalena declara que quer que Telmo acompanhe Maria: “Telmo que vá com ela; não o quero cá.” Por que razão deseja ela tal coisa? D. Madalena não quer ficar sozinha com o velho aio de D. João de Portugal, pois teme que se repita o diálogo da cena II do Ato I  e que a atormente com os seus presságios, nomeadamente com as dúvidas em torno do regresso de D. Sebastião e D. João. Assim sendo, deseja que ele esteja longe, sobretudo naquele dia tão marcante para ela. Perante o marido, justifica-se dizendo que Telmo e Maria necessitam um do outro e que ele, estando velho, a põe a cismar: “… e entra-me com cismas que…”. Tal como sucede ao longo da peça, D. Madalena receia a presença de Telmo.
 
Nas falas de D. Madalena, assumem grande relevância as reticências, que indiciam a falta de argumentos de D. Madalena para explicar o desejo de que Telmo não fique em Almada. De facto, as reticências mostram que a personagem interrompe as suas frases, como se procurasse um argumento minimamente convincente. O seu discurso é o de quem fala movido pela emoção e não pela razão, por razões convincentes.
 

Crónica de D. João I: prólogo e Cap. XI


quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Análise da Cena 5 do Ato II de Frei Luís de Sousa


  Importância da cena no contexto da peça
 
            Esta cena repõe aparentemente a ordem e a tranquilidade na família. Como o marido já não precisa de se esconder, D. Madalena sente-se “curada” e Frei Jorge incentiva-os a usufruir da felicidade como uma dádiva divina.
            Contudo, a alusão a sexta-feira, um dia muito temido por D. Madalena, e a ausência do marido, da filha e do próprio Telmo indiciam a vulnerabilidade da personagem, que ficará confirmada com a chegada do Romeiro. O confronto, cara a cara, entre D. Madalena e o primeiro marido prepara-se.
 
 
Estado de espírito de D. Madalena

D. Madalena surge em cena restabelecida e bem-disposta, afirmando estar bem (“Estou boa já, não tenho nada…”), mas essa boa disposição é passageira, e logo parece regressar à profunda tristeza em que vive [“(Vai recair na sua tristeza).”], procurando, após as palavras de Frei Jorge, mostrar-se alegre [“(fazendo por se alegrar)”].
 
No entanto, ao saber que o marido tem de ir a Lisboa, fica inquieta e apreensiva (“A Lisboa… hoje!”). A referência àquele dia (sexta-feira), ao qual atribui uma conotação muito negativa e considera aziago, deixa-a abatida e aterrorizada[“Sexta-feira! (aterrada). Ai que é sexta-feira!”]. Após as palavras de Manuel de Sousa, parece entrar num estado de resignação [“(caindo em si) – Tens razão.”; “(fazendo por se resignar)”].
 
As razões apresentadas por D. Madalena para a filha (e, no fundo, também o marido) não ir a Lisboa são todas de cariz sentimental e exageradas. De facto, não apresenta qualquer argumento racional ou sólido; apenas se lamenta de ficar só, abandonada por todos, entregue aos seus terrores:

- o terror de ser sexta-feira (“Logo hoje este advérbio de tempo será repetido 24 vezes até ao final do ato, constituindo uma espécie de refrão -voz coral que previne o espectador da data em que irão justificar-se os constantes terrores de D. Madalena);

- o terror de ficar só, sobretudo neste dia;

- a sensação de desamparo;

- a aflição por nunca se ter separado da família (cena 7);

- as inúmeras recomendações e os inúmeros cuidados, sobretudo com Maria, revelam o seu amor maternal;

- as expansões amorosas em relação a Manuel mostram a sua paixão (ficamos mesmo com a impressão de que o amor dela é muito mais profundo, talvez por Manuel se deixar guiar mais pela razão do que pelo sentimento).

 
A preocupação, a inquietação, a apreensão e a ansiedade de D. Madalena crescem quando o marido lhe diz que tem de ir a Lisboa nesse dia (“A Lisboa… hoje!”), pois aquele dia
 
 
Retrato das restantes personagens
 
Manuel de Sousa sente-se apreensivo com o estado psíquico da esposa, que, embora procure disfarçar, está cada vez mais insegura, receosa e vulnerável.

Por outro lado, perante o crescimento da preocupação e da ansiedade de D. Madalena quando lhe diz que tem de ir a Lisboa nesse dia (“A Lisboa… hoje!”), pois aquele dia é aziago e muito receado por ela, enquanto homem racional, Manuel de Sousa apresenta-lhe argumentos racionais que justificam a viagem (e a da filha por arrasto). Assim, (1) explica-lhe que, por uma questão de gratidão, deverá deslocar-se à capital para acompanhar o regresso do arcebispo a Almada. Além disso, (2) acrescenta que estará de volta a casa ao anoitecer e que, posteriormente, não sairá de junto dela durante o tempo que desejar.

Além disso, mais uma vez fica patente o contraste que caracteriza o casal: Madalena é uma mulher sentimental/emotiva, perseguida pelos agouros e ligada ao passado, do qual não se liberta, com problemas de consciência, enquanto Manuel é um homem decidido e racional, íntegro e sem problemas de consciência que o atormentem.

 
Maria fica entusiasmada com a perspetiva de ir a Lisboa, mas fica desiludida e triste quando lhe dizem que não poderá ir para não deixar a mãe sozinha. A alegria e o entusiasmo regressam quando tudo se compõe de forma a permitir a sua viagem, no entanto, acaba por reconhecer, num aparte, que não consegue deixar de pensar e de se preocupar, daí que a sua cabeça nunca será «fria», isto é, racional. Tal só sucederá quando estiver «oca», ou seja, sem vida.
 
Frei Jorge é aquela figura sempre pronta para pacificar os espíritos atormentados, por isso oferece-se para fazer companhia à cunhada durante a ausência, de modo que Maria possa acompanhar o pai a Lisboa e visitar Sóror Joana.
 
 
Presságios
 
O advérbio de tempo «hoje» é repetido treze vezes nesta cena, constituindo um símbolo da desgraça, um mau augúrio. A sua repetição indicia que algo muito importante vai suceder nesse dia.
 
A referência à “santa freirinha” (Sóror Joana), “que tanto deixou para deixar o mundo e se ir enterrar num claustro.” antecipa o destino de D. Madalena.
 
A sexta-feira é um dia aziago, de mau agoiro.
 

terça-feira, 22 de novembro de 2022

A ação de Hamlet


             Hamlet retrata a indecisão e a incapacidade do protagonista escolher a forma adequada para vingar a morte do pai, pondo em jogo o contraste entre o destino e o livre arbítrio, entre agir de forma decidida ou deixar a natureza seguir o seu curso. Além disso, questiona se a ação do ser humano, no seu tempo de vida, têm algum impacto e fazem diferença. Assim que toma conhecimento que o tio matou o seu pai, o príncipe sente-se obrigado a tomar uma atitude, mas hesita acerca da sua situação e até sobre os seus próprios sentimentos, por isso não é capaz de decidir o que vai fazer. Deste modo, o conflito que faz mover a peça é de caráter interno: Hamlet luta contra a sua própria dúvida e incertezas em busca de algo que lhe dê força suficiente para agir. Os acontecimentos da peça são efeitos colaterais desse conflito interno. Por exemplo, as tentativas de Hamlet de reunir evidências da culpa de Cláudio alertam-no para as suspeitas do sobrinho e, à medida que a luta interna do protagonista se vai intensificando, ele vai agindo de forma impulsiva por frustração. Tudo isto culmina no homicídio de Polónia por engano, que mostra que este conflito nunca será resolvido, pois o protagonista não consegue, em última análise, decidir aquilo em que acreditar ou que ação desenvolver. Esta ausência de resolução torna o final da peça bastante horrível: quase todas as personagens estão mortas, mas nada de essencial foi resolvida.

            Por outro lado, a obra mostra-nos que Hamlet é percorrido por três crises: a sua não está debaixo de ataque, a sua família está a esfarelar-se e ele sente profundamente infeliz. O fantasma do antigo rei da Dinamarca faz a sua aparição nas ameias do castelo, e os soldados que o veem acreditam que constitui um presságio negativo para o reino. Eles discutem os preparativos para resistir à ameaça do príncipe norueguês Fortinbras. A cena seguinte aprofunda a sensação de que a Dinamarca vive uma crise política, enquanto Cláudio prepara uma estratégia diplomática para esbater a ameaça que Fortinbras constitui. Além disso, a família de Hamlet está também em crise: o pai está morto e a mãe casou-se com alguém que o príncipe desaprova. E o próprio Hamlet vive a sua própria crise.

            Estas três crises – no reino, na família de Hamlet e no espírito deste – estabelecem as bases para o incidente que está na génese da peça: a exigência do fantasma de que o filho vingue a morte de seu pai. Hamlet aceita imediatamente que é seu dever vingar a morte do pai, vingança essa que poderia ajudar a resolver as três crises da peça. Se matasse Cláudio, Hamlet poderia, com este gesto, remover um rei fraco e imoral, arrancara sua mãe do que ele acredita ser um mau casamento e tornar-se rei da Dinamarca. No entanto, desde cedo fica claro que a vingança de Hamlet será prejudicada pela sua luta interna.

            Durante o segundo ato, Hamlet retarda a sua vingança fingindo estar louco. De facto, Ofélia mostra que o protagonista se comporta como se estivesse louco de amor por ela. Porém, é só no final deste ato que ficamos a saber a razão da procrastinação de Hamlet: ele não consegue decifrar quais são os seus verdadeiros sentimentos sobre o dever de vingança. Inicialmente, afirma que não se sente tão zangado e vingativo quanto pensa que deveria. Depois, mostra-se preocupado que o fantasma não seja realmente um fantasma, mas um demónio que o tenta enganar. Por tudo isto, decide que necessita de mais evidências do crime e da culpabilidade de Cláudio.

            À medida que a ação se aproxima do clímax, o conflito interior de Hamlet aprofunda-se, até começar a mostrar sinais de estar realmente a enlouquecer. Ao mesmo tempo, Cláudio começa a suspeitar de Hamlet, o que cria uma expressão sobre si mesmo para agir. Hamlet, no início do ato III, debate-se entre mantar ou não matar Cláudio(“Ser ou não ser, eis a questão”). Momentos depois, dispara insultos misóginos contra Ofélia. Ele mostra-se aborrecido com o papel das mulheres no casamento e no parto, o que remete para o desgosto que sentiu com a sua mãe e o seu segundo casamento. Este pronunciamento misógino pode significar que o desejo de Hamlet matar Cláudio pode ser alimentado pelo seu ressentimento pela necessidade de vingar a morte do pai e pelo tio lhe ter tirado a mãe. Cláudio ouve o discurso de Hamlet e suspeita que a loucura do sobrinho constitui um perigo, por isso decide mandá-lo para Inglaterra. Assim, o jovem príncipe fica sem tempo e espaço para executar a vingança.

            O clímax da peça é atingido quando Hamlet encena uma peça para mexer com a consciência do tio e obter evidências claras da culpa de Cláudio. Nesta fase, contudo, Hamlet parece ter realmente enlouquecido. Finda a representação, o príncipe tem mais uma oportunidade de liquidar o tio, mas decide não agir, desta vez por causa do risco de Cláudio ir para o céu se morrer enquanto reza. Posteriormente, acusa gertrudes de estar envolvida na morte de seu pai, mas age de forma tão errática que a mãe pensa que o filho é simplesmente louco. Agindo impulsiva ou loucamente, Hamlet confunde Polónio com Cláudio e mata-o.

            O desenlace da peça centra-se nas consequências da morte de Polónio. Hamlet é enviado para Inglaterra, Ofélia enlouquece e Laertes regressa de França para vingar a morte de seu pai. Quando o protagonista volta a Elsinore, aparenta já não estar preocupado com a vingança, que praticamente não volta a referir após esta fase da peça. Porém, o seu conflito interior ainda não terminou. Agora Hamlet contempla a morte, mas é incapaz de chegar a qualquer conclusão sobre o significado ou propósito da morte. Mostra-se, todavia, menos melindrado em matar pessoas inocentes e descreve a Horácio como assinou as sentenças de morte de Rosencrantz e Guildenstern para salvar a sua própria vida. Por seu turno, Cláudio e Laertes planeiam matar Hamlet, mas o plano não resulta e as consequências são terríveis: Gertrudes é envenenada por engano, Laertes e Hamlet são ambos envenenados pela lâmina da espada e, quando morre, o príncipe finalmente mata Cláudio. A vingança não encerra o conflito interior de Hamlet, pois ainda tem muito a dizer, pedindo a Horácio que divulgue a sua história. Fortinbras, no final da peça, concorda com o pedido, o que significa que a vida do jovem terminou, mas a luta para determinar a verdade sobre si e sobre a sua vida não.

"Havia" ou "haviam"; "houve" ou "houveram"?



O verbo «haver», enquanto verbo principal, é sinónimo do verbo «existir». Por isso, pode ser substituído pela forma verbal correspondente:

- O Eusébio disse que havia muitos computadores estragados.

- O Eusébio disse que existiam muitos computadores estragados.

 
Quando o verbo «haver» é o verbo principal da frase, é defetivo impessoal (isto é, não tem sujeito) e apenas se conjuga na terceira pessoa do singular (em qualquer tempo ou modo), independentemente de o complemento direto estar no singular ou no plural.

- No estádio, havia muitos espectadores com a careca ao sol.

- No estádio, havia muita gente com a careca ao sol.

- O professor afirmou que há muitos alunos que não estudam.

- Se houvesse mais competência no governo, não estaríamos a atravessar uma crise tão aguda.

 
A mesma regra aplica-se também quando o verbo «haver», enquanto verbo principal, está acompanhado por verbos auxiliares.
 
Estes verbos auxiliares flexionam-se também apenas na 3.ª pessoa do singular, mantendo-se o verbo principal («haver») no particípio ou no infinitivo.

- Na minha escola, tem havido muitas atividades.

- Algum dia deixará de haver fome e guerra entre os homens.

 
Quando o verbo «haver» é usado como verbo auxiliar, conjuga-se em todas as pessoas, concordando com o sujeito:

- Quando o filme começou, os alunos já haviam acalmado. [Note-se que os verbos auxiliares dos tempos compostos são «haver» e «ter», pelo que a frase podia também ser Quando o filme começou, os alunos já tinham acalmado.].

- Quando a campainha tocou, o professor já tinha terminado a aula.

- Os vícios humanos hão de levar à sua extinção.

 
O verbo «haver», quando é auxiliar, acompanha o verbo principal no particípio passado ou no infinitivo.

- As minhas ex-namoradas ainda hão de descobrir que namorei com todas ao mesmo tempo.

 
 
Conclusão
 
É a subclasse do verbo «haver» que determina se se conjuga apenas na 3.ª pessoa do singular ou em todas as pessoas.
 
Assim, quando ocorre como verbo auxiliar, conjuga-se em todas as pessoas.
 
Porém, quando ocorre como verbo principal, como sinónimo de «existir», apenas se usa na 3.ª pessoa do singular.
 
            Resumindo, vamos deixar de ouvir dizer ou ler «Houveram muitos acidentes no verão passado.» e bacoradas semelhantes?

Análise da Cena 4 do Ato II de Frei Luís de Sousa


 
Frei Jorge abre a cena saudando efusivamente Maria: “Ora alvíssaras, minha dona sobrinha!” Esta expressão era usada quando alguém pretendia obter uma recompensa (“alvíssaras”) por trazer boas notícias. Neste caso, Frei Jorge usa-a metaforicamente, para anunciar à sobrinha que lhe traz uma boa notícia: os governadores perdoaram a seu pai o facto de ter incendiado o palácio.
 
Frei Jorge, de facto, traz a notícia do perdão dos governadores a Manuel de Sousa, pelo que este não terá mais de continuar escondido, dado que não corre o risco de retaliação. Poderá, assim, retomar a sua vida normal e movimentar-se livremente.
 
Frei Jorge aconselha o irmão a que o acompanhe a Lisboa, porque deseja que Manuel faça parte da comitiva que trará o arcebispo para Almada, como forma de lhe agradecer a intervenção no caso, persuadindo os demais governadores a perdoarem-lhe a afronta. Note-se como repetem a expressão «os outros», referindo-se aos que governam em nome do rei castelhano, mostrando que não os querem nomear. No fundo, é uma forma de mostrar desprezo por eles.
 
Manuel de Sousa concorda e anuncia que também tem necessidade de se deslocar a Lisboa para falar com a abadessa do convento das freiras no Sacramento. Maria decide acompanhá-lo para visitar a tia Joana de Castro, por quem nutre grande admiração. Tudo se prepara, pois, para que Madalena fique só, desprotegida e vulnerável, angustiada pelos seus terrores, para enfrentar a chegada do Romeiro. A atmosfera trágica adensa-se.
 
A referência à tia Joana de Castro constitui um presságio de desgraça (vide cena 8, Ato II), dado que, juntamente com o seu marido (D. Luís de Portugal, Conde de Vimioso), optou pela vida religiosa. De facto, este casara com D. Joana de Castro e Mendonça, depois de ter sido resgatado do cativeiro de África. O casal teve filhos. Subitamente, porém, foram tocados pelo tédio do mundo e da vida, e entrou cada um no seu convento.
 
Outra informação trazida por Frei Jorge diz respeito ao fim do surto de peste em Lisboa. Na realidade, ela começara em finais de agosto de 1599. Porém, só terminou de forma definitiva em fevereiro de 1602. Sabe-se hoje que Manuel de Sousa ajudou a debelar o mal, como guarda-mor da saúde, e por isso foi recompensado pelo rei castelhano, a quem servia com lealdade.
 

domingo, 20 de novembro de 2022

Caracterização de Domingos


             À semelhança do que sucede com o Delfim, Domingos surge rodeado de vários epítetos: Domingos, criado, ironicamente escudeiro, mestiço, etc., sempre em função das características profissionais ou físicas.
            Esta personagem surge muito próxima do patrão, no entanto consuma o adultério com a esposa daquele, de quem também parece estar dependente. É verdade que procurou o Padre Novo dois dias antes da consumação do ato para fugir dali. Tratar-se-ia de uma tentativa desesperada para evitar qualquer desgraça?
            Domingos tem várias razões para odiar o patrão: tem de tratar dos cães, por quem não parece ter grande afeto; por outro lado, a sua própria deformação física constitui razão suficiente para tornar amargo um homem «mestiço», que não se pode identificar por completo quer com a etnia branca quer com a negra. Apesar de tudo isso, não detesta Tomás Manuel, antes mantém com ele uma relação quase filial e de fidelidade, baseada no medo, demonstrando, assim, não possuir qualquer consciência de classe.
            Domingos é “maneta e mestiço… a assopear palavrões, cortado pelo sol e a balançar o braço decepado (…) diante das feras (…) tornou-se frio (…) falou-lhes em tom comedido (…) com força e tão curto (…) movimentos precisos e eficazes da mão. Mão arguta (…) mão controlada.”, é uma figura que domina as situações, ou pelo menos há frieza, domínio, argúcia e controlo que chegam para dominar completamente as feras. É possível que Domingos tenha atingido o seu limite e não esteja mais disposto a ser humilhado. Também se poderá levantar a hipótese de a personagem ter sido usada como um objeto por ambos os membros do casal.
            Por último, tendo em conta a época em que a obra foi escrita – ditadura salazarista e período colonial –, Domingos representa o africano que foi escravizado e usado durante séculos, até ao dia em que ganhou consciência da sua condição e do seu direito à autonomia.

Caracterização de Maria das Mercês


             Maria das Mercês preenche o papel da mulher na ideologia dominante dos anos 60 do século XX em Portugal, simbolizado pela povoação da Gafeira (metonímia).
            Segundo a doutrina de Salazar, a vida em sociedade deveria assentar em três princípios: Deus, Pátria e Família, os quais se deveriam aplicar tanto a homens como a mulheres. No entanto, no primeiro caso, bastava que mantivessem a fachada no que respeitava a Deus e à Família, visto que da defesa da Pátria não podiam eximir-se, no contexto da guerra colonial. Assim sendo, o peso das instituições recaía todo sobre as mulheres e tudo era feito para que elas se mantivessem afastadas do pecado, ou seja, da sua sexualidade, e presas à procriação, porque elas eram o esteio da Família e, como havia guerra em África, deveriam apoiar incondicionalmente os homens, sendo boa mãe, boa esposa, boa irmã, boa filha, etc. Maria das Dores é a burguesa alienada, produto da ideologia do estado Novo, conforme se pode comprovar através do seguinte quadro:
 

Deus

Pátria

Família

a Igreja

a retaguarda amável

7 anos de casamento

o colégio de freiras

o serviço da esposa

A infertilidade só poderia ser feminina (vide Memorial do Convento)

as dádivas aos pobres

o sorriso à chegada

a obediência ao marido

a ceia de Natal com os trabalhadores

 

o ensino do criado

 
            O marido ausenta-se e deixa-a sozinha, entregue a si própria: “… dias sem fim a fazer tricot, a odiar os cães… fumando, cozendo bolos…”, “Sete anos de esposa, a passear de cá para lá”. A libertação da sua sensibilidade contida ocorre através de pequenos prazeres secretos como os passeios a cavalo e a masturbação.
            Neste contexto, Maria das Mercês aparece como inabitável, infecundo, incapaz de dar um filho ao casal. É a voz do povo que se faz ouvir: a mulher podia arcar com a exclusividade destas culpas, ao contrário do homem, que ficaria socialmente diminuído se tal lhe acontecesse.
            Chega um momento em que ela não pode suportar mais a situação incongruente, pelo que alguma coisa terá de mudar. O mesmo teria de suceder à sociedade portuguesa da época, que vivia à margem do mundo, pelo que a mudança seria necessária, o que veio a concretizar-se com o 25 de abril de 1974, acontecimento que teria grandes repercussões na evolução do papel social da mulher.
            Por último, a vida de Maria das Mercês ficará marcada pelo «crime perfeito», como dizia o marido sempre que se referia ao caso da Dama das Unhas de Prata, que provocara a morte «post coitum», visto que ela causa o falecimento de Domingos ao relacionar-se com ele sexualmente, já que este tinha “coração de passarinho”. O que a terá levado a agir assim? O ciúme? A raiva de ser preterida? O desejo de vingança? O despertar da sua sexualidade? Se, posteriormente, se suicidou, teve um acidente durante a fuga ou foi assassinada pelo marido, ninguém o sabe.

Caracterização do Delfim


             O Delfim é Tomás Manuel da Palma Bravo, a personagem principal da obra, o Engenheiro, a figura em torno da qual gira a narrativa e que é o elemento que possibilita o retrato da situação que se vivia em Portugal na época.

            Ele é o herdeiro das tradições machistas, não só da família, mas também do homem português, característico da burguesia salazarista. De acordo com as normas da época, Tomás Palma Bravo deveria ser superior a tudo e a todos, deveria ser o protetor, o primeiro em qualquer ocasião, o chefe, o sábio, o forte, superior aos trabalhadores, fossem eles camponeses-operários, criados, criadas, mas sobretudo em relação às mulheres, incluindo a própria esposa, dado que era inaceitável que qualquer mulher fosse considerada igual ao homem. De facto, na época o género feminino era encarado como um português de segunda, cuja existência se deveria resumir a atender aos desejos e necessidades do homem. Assim, este jamais se poderia mostrar fraco. Mesmo que o fosse, teria de encobrir a sua fraqueza, mesmo que através dos seus mastins, como é exemplificado pelo excerto seguinte: “o engenheiro anunciado por dois cães…”.

            Ao longo da obra, tomamos conhecimento dos vários epítetos com que é tratado: o nome próprio completo, o Engenheiro, o Amo, o Infante, Tomás Manuel (como todos os seus antepassados), membro do casal Palma Bravo, Tomás Manuel Undécimo. Seja qual for a denominação, ele é o Delfim, o centro das atenções da Gafeira e de todos os seus habitantes.

            Tomás Manuel é o chefe incontestado cujos suportes são a mulher e o criado. De facto, Maria das Mercês deveria acompanhá-lo perante o povo da Gafeira, enquanto Domingos o deveria fazer durante as suas visitas a bares e prostíbulos, tudo de acordo com a sua vontade e sem terem o direito de exigir ou sugerir o que quer que fosse, desde logo porque não eram considerados seus iguais. Só ele sabia tudo, ele era o senhor de ambos. Nada deveria ser discutido e nunca seria contestado. Só ele detinha o poder.

            Na realidade, nem sequer tem a coragem de se submeter aos exames necessários para esclarecer a origem da infertilidade do casal, isto é, determinar quem era estéril: ele ou a esposa, questão que ficará por esclarecer: “… não o vejo a ir à porta do médico e sujeitar-se a um atestado de esterilidade.” Tomás Manuel esconde o problema através das suas deambulações noturnas e do desprezo pela ciência e pelos seus avanços: “Esperma em ampolas, ao que a malta chegou. Mandarem-nos pares de cornos devidamente esterilizados e ainda por cima ficarmos muito agradecidos à Ciência.” Tudo isto demonstra uma grande falta de segurança e de confiança em si próprio. Tal como sucede, por exemplo, em Os Maias, no célebre episódio das Corridas de Cavalos no Hipódromo, vemos aqui o contraste entre o ser e o parecer em torno desta personagem, que insiste no culto das aparências. No final, tudo se desmorona em seu redor, desde logo porque nada nem ninguém pode parar a evolução do tempo e das mentalidades.

            A relação que mantém com Domingos é semelhante à que teria com um animal de estimação. Tomás Manuel diverte-se ao ver a falta de desenvoltura do criado em certas áreas, procurando iniciá-lo nos vícios e desinteressando-se completamente por saber sequer se isso dizia alguma coisa ao outro. Tudo se justifica pelo paternalismo do Delfim, que pretende fazer de Domingos um bom machista como ele, o que não se concretiza, dado que o criado depende completamente do Engenheiro, a única pessoa com quem convive, daí as suas falas sistemáticas com os cães e o entendimento especialíssimo com as máquinas.

Conceção das personagens em O Delfim

             Como não se trata de uma obra tradicional, as personagens são objeto de um tratamento diferente do habitual num romance.

            Em O Delfim, as personagens representam diferentes tipos sociais, planas, dado que não apresentam evolução interior, os seus comportamentos não se alteram ao longo da narrativa. A única exceção será Maria das Mercês, uma personagem redonda ou modelada, e talvez Domingos. Ambos ganham força interior e mudam o seu percurso existencial.

sábado, 19 de novembro de 2022

Símbolos do tempo em O Delfim


             Um dos elementos que está associado ao tempo é a lagartixa, descrita como “brasão do tempo”, da transição da posse da lagoa e da própria lagoa.
            A lagartixa, aparentemente inerte no seu muro de pedra, simboliza o tempo, a humildade e a pequenez. Ela simboliza a inércia, a preguiça sábia e familiar, a vigilância tranquila (dado que tem consciência de que a mudança é inevitável), daí a sua presença vigilante e constante nos muros e umbrais das portas. Como gosta de estar ao sol, simboliza também a procura da luz, aqui interpretada como busca do saber. A sua ação, em perseguição de um novo saber, de uma nova luz, de uma mudança, dá-se sem chamar a atenção. As únicas figuras que reparam na sua atividade são os “bons portugueses”.
            Outro símbolo do tempo é a transição da lagoa, que passa das mãos do Engenheiro e dos seus antepassados para as do Regedor e dos Noventa e Oito que ele representa. Esta alteração representa a mudança dos próprios tempos, do poder e da ordem, que se opera de forma subversiva.
            Um último símbolo é a lagoa, que representa a vida e constitui uma fonte de alimento para os camponeses-operários. Para o Engenheiro, a lagoa é somente mais um símbolo do poder inútil que, nas mãos do Noventa e Oito, passará a simbolizar evolução e progresso, quer do tempo, quer das estruturas sociais, económicas e ideológicas.

O tempo psicológico em O Delfim


             Para os camponeses-operários, o tempo passa lentamente, mas de forma incisiva, enquanto para Maria das Mercês ele demora a passar e está intimamente ligado à sua solidão: “Sete anos de esposa a passear de lá para cá (…). De vez em quando a jovem esposa julga ouvir o telefone. Outras vezes o motor de um automóvel; noutras o portão a girar nos gonzos, como se isso fosse possível sem que os cães dessem sinal. Esses malditos. Mas o telefone morreu há muito, porque as amigas jogam na vila, em casa umas das outras (…).” Para Tomás Manuel, o tempo parou para dignificar os antepassados e ele o fará parar quando e se for sepultado na lagoa, o símbolo perpétuo do seu poder sobre ela e que já se adivinha ameaçada pela nova ordem: “Bem enterrado no fundo do lodo que é para a miuçalha dos peixes não me chega (…). O que me admira é o orgulho daqueles peixes (…) saberem que entraram em agonia e puxarem pelo resto das forças para cumprir a última vontade.”
            Tal como o tempo mítico-histórico é simbólico pela lagartixa, a referência constante aos peixes e à lagoa remete para o tempo mitológico absoluto, aquele em que a casa da lagoa e a respetiva comarca constituíam marcos da presença e do poder dos ungidos Palma Bravo: “(…) se até agora foi a minha família quem governou a lagoa, não hei de ser eu quem a vai perder.”
            Por outro lado, o Regedor e o narrador simbolizam o tempo da mudança. O Regedor lidera a lagoa e o grupo dos Noventa e Oito, passa licenças e olha em frente do fundo da sua loja, sempre atento a todos os movimentos e a todas as mudanças. Relativamente à personagem-narrador, observa o largo e a muralha a partir da sua janela, que forma o seu posto de vigia, e reflete criticamente sobre os acontecimentos que decorreram no tempo em que esteve ausente.
            Durante uma longa noite de insónia, que antecede a caçada, revive o convívio do ano anterior com os Palma Bravo, relê a Monografia, cedida pela estalajadeira, analisa todas as informações que o Velho-Dum-Só-Dente, o Regedor, o Batedor e a estalajadeira lhe deram. O narrador formula os seus próprios juízos sobre os acontecimentos, mas questionando-os sempre.
            Seja como for, o foco da sua atenção é, claramente, a agitação da lagartixa e dos camponeses-operários: é sobre eles que tece os comentários mais subversivos, é a partir deles que as suas divagações se aprofundam, são as suas ações que desnudam as mudanças que se deram durante o tempo em que este fora da Gafeira.

O tempo histórico em O Delfim


             Em O Delfim, o Tempo transmite a ideia de mudança, operada nas estruturas e revolução económico-social. Deste modo, temos o retrato fiel de uma época e da sua atmosfera conturbada.
            As personagens da obra refletem estas posições: de um lado estão o Engenheiro e Maria das Mercês, que fazem parte da elite que dominara até então e cuja história se perdera no tempo e cujos antepassados, todos de nome Tomás Manuel (este facto atesta a circularidade do tempo, isto é, a história que se repete de geração em geração), tinham um denominador comum: o poder. Do outro lado encontram-se os camponeses-operários que vão passar a usufruir das riquezas da lagoa, algo que já faziam, embora de forma clandestina, o que é exemplificado pelo festim das enguias. Note-se ainda que quanto mais ganham consciência da mudança mais se embrenham na clandestinidade, uma característica da década de 60 do século XX, e mais anseiam pela sua chegada, o que se reflete numa grande consciencialização, a qual se transmite por saberem que, juntos, conseguirão manter a posse da lagoa, dominando os seus destinos.
            Deste modo, poderemos concluir que O Delfim constitui a metáfora da situação que se vivia em Portugal na época (anos 50 e 60), visto que a Gafeira se multiplica pelo país fora, e o desejo premente de mudança. Esta noção só está, porém, ao alcance dos “bons portugueses”, dos que sabem jogar constantemente ao “olho vivo”, com a vida e com o Sr. Escritor (o tratamento de “senhor” é uma autoironia a propósito da condição de um indivíduo que é menosprezado por uma sociedade anticultural), dos que sabem ler nas entrelinhas o texto e a História. Por outro lado, não é uma casualidade a narrativa situar-se numa zona rural e que o camponês é associado ao operariado. De facto, é esta associação que vai fazer do camponês-operário alguém com consciência e vontade próprias em termos políticos, que se espera que alastre por toda a Gafeira.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Imagem que vale mais do que mil palavras


    Este senhor, utente de um lar, aguarda, à porta do edifício, a chegada do filho que o vem visitar. 

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