Maria das Mercês preenche o papel da
mulher na ideologia dominante dos anos 60 do século XX em Portugal, simbolizado
pela povoação da Gafeira (metonímia).
Segundo a doutrina de Salazar, a
vida em sociedade deveria assentar em três princípios: Deus, Pátria e Família,
os quais se deveriam aplicar tanto a homens como a mulheres. No entanto, no
primeiro caso, bastava que mantivessem a fachada no que respeitava a Deus e à
Família, visto que da defesa da Pátria não podiam eximir-se, no contexto da
guerra colonial. Assim sendo, o peso das instituições recaía todo sobre as
mulheres e tudo era feito para que elas se mantivessem afastadas do pecado, ou
seja, da sua sexualidade, e presas à procriação, porque elas eram o esteio da
Família e, como havia guerra em África, deveriam apoiar incondicionalmente os
homens, sendo boa mãe, boa esposa, boa irmã, boa filha, etc. Maria das Dores é
a burguesa alienada, produto da ideologia do estado Novo, conforme se pode
comprovar através do seguinte quadro:
Deus |
Pátria |
Família |
a
Igreja |
a
retaguarda amável |
7
anos de casamento |
o
colégio de freiras |
o
serviço da esposa |
A
infertilidade só poderia ser feminina (vide Memorial do Convento) |
as
dádivas aos pobres |
o
sorriso à chegada |
a
obediência ao marido |
a
ceia de Natal com os trabalhadores |
|
o
ensino do criado |
O marido ausenta-se e deixa-a
sozinha, entregue a si própria: “… dias sem fim a fazer tricot, a odiar os cães…
fumando, cozendo bolos…”, “Sete anos de esposa, a passear de cá para lá”. A
libertação da sua sensibilidade contida ocorre através de pequenos prazeres
secretos como os passeios a cavalo e a masturbação.
Neste contexto, Maria
das Mercês aparece como inabitável, infecundo, incapaz de dar um filho ao
casal. É a voz do povo que se faz ouvir: a mulher podia arcar com a
exclusividade destas culpas, ao contrário do homem, que ficaria socialmente
diminuído se tal lhe acontecesse.
Chega um momento em
que ela não pode suportar mais a situação incongruente, pelo que alguma coisa
terá de mudar. O mesmo teria de suceder à sociedade portuguesa da época, que
vivia à margem do mundo, pelo que a mudança seria necessária, o que veio a
concretizar-se com o 25 de abril de 1974, acontecimento que teria grandes
repercussões na evolução do papel social da mulher.
Por último, a vida de
Maria das Mercês ficará marcada pelo «crime perfeito», como dizia o marido
sempre que se referia ao caso da Dama das Unhas de Prata, que provocara a morte
«post coitum», visto que ela causa o falecimento de Domingos ao relacionar-se com
ele sexualmente, já que este tinha “coração de passarinho”. O que a terá levado
a agir assim? O ciúme? A raiva de ser preterida? O desejo de vingança? O
despertar da sua sexualidade? Se, posteriormente, se suicidou, teve um acidente
durante a fuga ou foi assassinada pelo marido, ninguém o sabe.
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