Português: Caracterização de Maria das Mercês

domingo, 20 de novembro de 2022

Caracterização de Maria das Mercês


             Maria das Mercês preenche o papel da mulher na ideologia dominante dos anos 60 do século XX em Portugal, simbolizado pela povoação da Gafeira (metonímia).
            Segundo a doutrina de Salazar, a vida em sociedade deveria assentar em três princípios: Deus, Pátria e Família, os quais se deveriam aplicar tanto a homens como a mulheres. No entanto, no primeiro caso, bastava que mantivessem a fachada no que respeitava a Deus e à Família, visto que da defesa da Pátria não podiam eximir-se, no contexto da guerra colonial. Assim sendo, o peso das instituições recaía todo sobre as mulheres e tudo era feito para que elas se mantivessem afastadas do pecado, ou seja, da sua sexualidade, e presas à procriação, porque elas eram o esteio da Família e, como havia guerra em África, deveriam apoiar incondicionalmente os homens, sendo boa mãe, boa esposa, boa irmã, boa filha, etc. Maria das Dores é a burguesa alienada, produto da ideologia do estado Novo, conforme se pode comprovar através do seguinte quadro:
 

Deus

Pátria

Família

a Igreja

a retaguarda amável

7 anos de casamento

o colégio de freiras

o serviço da esposa

A infertilidade só poderia ser feminina (vide Memorial do Convento)

as dádivas aos pobres

o sorriso à chegada

a obediência ao marido

a ceia de Natal com os trabalhadores

 

o ensino do criado

 
            O marido ausenta-se e deixa-a sozinha, entregue a si própria: “… dias sem fim a fazer tricot, a odiar os cães… fumando, cozendo bolos…”, “Sete anos de esposa, a passear de cá para lá”. A libertação da sua sensibilidade contida ocorre através de pequenos prazeres secretos como os passeios a cavalo e a masturbação.
            Neste contexto, Maria das Mercês aparece como inabitável, infecundo, incapaz de dar um filho ao casal. É a voz do povo que se faz ouvir: a mulher podia arcar com a exclusividade destas culpas, ao contrário do homem, que ficaria socialmente diminuído se tal lhe acontecesse.
            Chega um momento em que ela não pode suportar mais a situação incongruente, pelo que alguma coisa terá de mudar. O mesmo teria de suceder à sociedade portuguesa da época, que vivia à margem do mundo, pelo que a mudança seria necessária, o que veio a concretizar-se com o 25 de abril de 1974, acontecimento que teria grandes repercussões na evolução do papel social da mulher.
            Por último, a vida de Maria das Mercês ficará marcada pelo «crime perfeito», como dizia o marido sempre que se referia ao caso da Dama das Unhas de Prata, que provocara a morte «post coitum», visto que ela causa o falecimento de Domingos ao relacionar-se com ele sexualmente, já que este tinha “coração de passarinho”. O que a terá levado a agir assim? O ciúme? A raiva de ser preterida? O desejo de vingança? O despertar da sua sexualidade? Se, posteriormente, se suicidou, teve um acidente durante a fuga ou foi assassinada pelo marido, ninguém o sabe.

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