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quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Mito pelásgico da criação


    O mito pelásgico da criação é uma versão da origem do mundo e dos humanos de acordo com os pelasgos, um povo que habitava a Grécia antes do surgimento dos gregos.

    De acordo com esse mito, no início havia apenas o Caos, uma massa informe e escura. Dele brotou, nua, Eurínome, a deusa de todas as coisas, que se separou do Caos e criou o Oceano. De facto, não vendo substância em seu redor onde formar os pés, apartou o mar do céu, dançando solitária sobre as suas ondas. Ao dançar em direção a sul, gerou o Vento Norte (que se soltava por trás dela a cada passo que dava). Movendo-se, ondulante, em torno dele, estreitou-o nos braços, deixou-o deslizar-lhe por entre as mãos e, subitamente, viu diante de si Ofião, a grande serpente. Eurínome continuou a dançar, com crescente frenesim, para se aquecer, o que levou Ofião, lúbrico de natureza, a enrolar-se naqueles membros divinos e unir-se-lhe, cheio de desejo. Daí em diante, o Vento Norte, também chamado Bóreas, fecunda e, porque assim é, as éguas oferecem as suas garupas ao vento e geram potros sem a necessidade de um garanhão. O mesmo sucedeu para que Eurínome ficasse pejada.

    Abra-se aqui um parêntesis para observar o seguinte. Este mito enquadra-se ou reflete um sistema religioso arcaico, no qual não existem deuses nem sacerdotes, surgindo-nos apenas uma deusa universal e as respetivas sacerdotisas. Quem domina são as mulheres, cabendo ao homem apenas o papel de sua vítima amedrontada; os conceitos de pai e de paternidade são praticamente inexistentes, ou pelo menos não eram objeto de veneração, já que se atribuía a conceção ao vento, à ingestão de feijões, ou mesmo a um inseto, engolido por incauto. Na esteira destes princípios, as heranças e a sucessão eram transmitidas pelo lado materno. Por seu turno, as serpentes eram encaradas como incarnação dos mortos. Neste contexto, Eurínome, “a grande nómada”, seria o título atribuído à deusa enquanto lua visível, e que entre os Sumérios tinha o nome de Iahu, a “pomba exaltada”, honra que mais tarde passaria para Jeová, enquanto Criador. E é efetivamente sob a forma de pomba que Marduk a divide simbolicamente em duas, no Festival da Primavera babilónio, quando inaugurava a nova ordem do mundo.

    Findo o parêntesis, retornemos ao mito. Eurínome transformou-se numa pomba e pousou sofre Ofião, que se enrolou no seu corpo e a fecundou, indo ela incubar sobre a superfície das águas e, cumprido o tempo, pôs o Ovo Universal. Por ordem dela, Ofião enrolou-se sete vezes em torno desse ovo, que se rompeu e dividiu em dois. Dele nasceram, de forma desordenada, todas as coisas: o sul, a lua, as estrelas, os planetas, a terra, as plantas, os animais e os seres humanos.

    Posteriormente, Eurínome e Ofião foram morar para o Monte Olimpo e reinaram sobre a criação, porém ele tornou-se arrogante e quis igualar-se-lhe, ao dizer-se o autor do Universo. Ela castigou-o, calcando-lhe a cabeça com o pé e banindo-o do Olimpo para as profundezas do Oceano.

    Ofião, ou Bóreas, é o demiurgo-serpente das mitologias hebraica e egípcia, o que se reflete no facto de a imagem da deusa acompanhada por ele se encontrar na arte mediterrânica primitiva. Os pelasgos – os nascidos-da-terra –, que reivindicavam ter vindo dos dentes de Ofião, pode ser o povo, na sua origem, autor das pinturas do período neolítico, que atingiu a Grécia continental a partir da Palestina por volta do ano 3500 a.C., e que os primitivos Heládicos – imigrantes vindos da Ásia Menor através das Cíclades – foram encontrar ocupando o Peloponeso setecentos anos mais tarde. Por outro lado, o termo «pelasgos» acabou por se aplicar a todos os habitantes pré-helénicos da Grécia. É por isso que Eurípides afirma que os pelasgos adotaram o nome de «Dânaos» depois de Dânao ter chegado a Argos acompanhado pelas suas cinquenta filhas. Estrabão, por seu turno, afirma que os habitantes em redor de Atenas eram conhecidos pelo nome de Pelargi («cegonhas»), provavelmente devido ao facto de estas serem as suas aves totémicas.

    Depois se expulsar Ofião do Olimpo, Eurínome passou a governar sozinha o universo, auxiliada pelas suas ninfas, as Cárites. A seguir, criou as sete potências planetárias, pondo à cabeça de cada uma delas um Titã ou uma Titânide: Teia e Hiperião reinavam sobre o Sol; Febe e Atlas sobre a Lua; Dione e Crio sobre o planeta Marte; Métis e Ceos sobre Mercúrio; Témis e Eurimedonte sobre o planeta Júpiter; Tétis e Oceano sobre Vénus; Reia e Cronos sobre Saturno.

    É possível que os Titãs («senhores») e as Titânides, que tinham as suas réplicas na astrologia primitiva da Babilónia e da Palestina, onde vamos encontrar também divindades a governar os sete dias da semana sagrada planetária, tenham sido introduzidos pelos Cananeus ou pelos Hititas, que se haviam estabelecido no Istmo de Corinto nos inícios do segundo milénio a.C., ou mesmo pelos Heládicos primitivos. No entanto, quando o culto titânico é abolido na Grécia e que a semana de sete dias deixou de figurar no calendário oficial, alguns autores passam a referir-se a doze, talvez para corresponderem aos signos do Zodíaco. Quanto aos seus nomes, há versões contraditórias. Na mitologia babilónica os governantes dos planetas da semana, nomeadamente, Samas, Sin, Nergal, Bel, Beltis e Ninibe, eram todos varões, à exceção de Beltis, a deusa do amor. Por outro lado, na semana germânica, que os Celtas terão ido buscar ao Mediterrâneo Oriental, o domingo, a terça e a sexta eram governados por Titânides, contrapondo-se aos restantes dias, sob o domínio dos Titãs. Quando o sistema chegou à Grécia, foi decidido acasalar cada uma umas Titânides com um Titã, para salvaguardar os interesses de Níobe. Passado pouco tempo, dos catorze passou-se para sete potências planetárias: o Sol, para a iluminação; a Lua, para a magia; Marte, para o crescimento; Mercúrio, para a sabedoria; Júpiter, para a lei; Vénus, para o amor; e Saturno, para a paz. Na Grécia Clássica, os astrólogos seguiram o mesmo princípio dos babilónios, pelo que atribuíram os planetas a Hélio, Selene, Ares, Hermes (ou Apolo), Zeus, Afrodite, Cronos, cujos equivalentes latinos atrás referidos estão na base da nomenclatura dos dias da semana no francês, italiano e castelhano.

    Zeus devorou os Titãs e, com estes, ele próprio, na sua forma original.

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Análise da cena 1 do ato II de Hamlet


    Esta cena, que abre o segundo ato, pode dividir-se em duas partes. Na primeira, encontra os o diálogo entre Polónio e Reinaldo sobre Laertes e, na segunda, o diálogo entre aquele e Ofélia sobre Hamlet. Do conjunto, ressalta o desenvolvimento da personagem Polónio, que é apresentado como um manipulador astuto e um homem sem escrúpulos que quer espiolhar a vida de Laertes. Se é verdade que, frente a frente, Polónio o trata como alguém em quem se pode confiar, quando o jovem parte para França, desconfia do seu comportamento e chega ao extremo de ordenar ao seu espião que lance boatos desabonatórios sobre o filho, usando o engano e a artimanha falsa para o testar, não parecendo nada preocupado que a reputação do rapaz seja manchada e, indiretamente, a sua própria. Por outro lado, o modo como instrói Reinaldo é semelhante à forma coimo Cláudio, na cena 2 do ato I, procurou manipular a corte. Deste jeito, o discurso e as palavras tornam-se peça fulcral na tentativa de manipular os outros e controlar a sua visão dos factos e da verdade. Neste contexto, Shakespeare estabelece uma analogia transparente: se Cláudio assassinou o rei Hamlet derramando veneno no seu ouvido, também as palavras pode constituir um veneno para determinados ouvidos. Assim, as referências aos ouvidos e á audição constituem uma metáfora do poder das palavras na manipulação da verdade.

    O segundo diálogo – entre Polónio e Ofélia – também assenta nesta oposição entre a verdade e o engano, a aparência e a realidade. A relação entre Hamlet e Ofélia é caracterizada por mal-entendidos e suposições sem fundamento. Apesar de a rapariga ter prometido – e cumprido – que se afastaria do príncipe, tal não significa que ela pensasse que seria maltratada por ele. Apenas o faz, porque é uma irmã e uma filha obediente e dócil. Porém, após a mais recente atitude de Hamlet, a jovem fica mais convencida do que nunca que Hamlet sente alfo profundo por si, pois comporta-se como se estivesse terrivelmente apaixonado por ela. Na realidade, todavia, essa postura inscreve-se no plano de Hamlet para vingar a morte do pai, pois ele disse a Marcelo e a Horácio, após o diálogo com o fantasma, que poderia agir de forma estranha nos dias seguintes. Sucede, contudo, que Ofélia não sabe isso, pelo que se estará a iludir com algo que não corresponde à realidade: o príncipe está a comportar-se como um louco. Além disso, será que o casamento da sua mãe com o tio não alterou negativamente a sua opinião sobre as mulheres? Seja como for, por mais estranho que possa parecer. Há uma semelhança entre as duas personagens: Hamlet, de forma astuta, finge ser louco; Ofélia, por sua vez, ainda que forçada, finge desinteresse por ele.

    À semelhança do que sucede noutros momentos da peça, esta cena, articulada com as anteriores, mostra com toda a clareza que a sociedade em que as personagens se movimentam é uma sociedade patriarcal: Ofélia “tem de” obedecer ao pai e ao irmão, que possuem autoridade sobre ela. Apesar disso, tendo em conta o desenrolar dos acontecimentos, os conselhos que lhe dão parecem sensatos. De facto, sendo verdade que Hamlet está a usá-la para um fim que só ele conhece e sendo possível que sinta genuinamente afeto por ela, tudo parece indicar que a rapariga se tornou um peão no seu plano para se vingar de Cláudio.

Resumo da cena 1 do ato II de Hamlet

    De regresso ao castelo, Polónio envia Reinaldo, seu servo, a França, com dinheiro e instruções para seu filho Laertes. Antes de partir, instrui-o no sentido de investigar discretamente o comportamento e a vida pessoal de Laertes, misturando-se no círculo social do jovem. Para tal, deve fazer-se passar por um conhecido casual e espalhar alguns rumores negativos sobre o filho, nomeadamente sobre jogo, bebida, esgrima e linguagem. De seguida, o enviado deverá observar as reações dos amigos de Laertes para determinar se esses rumores correspondem ou não à realidade.
    Quando Reinaldo sai, Ofélia entra em cena, pálida e perturbada. Interrogada por Polónio acerca do seu estado, a rapariga conta que Hamlet foi ao seu quarto desgrenhado e confuso, a agarrou, segurou e olhou intensamente, sem, no entanto, lhe dirigir a palavra. Acreditando que Hamlet está louco de amor por Ofélia, sobretudo por a jovem o ter rejeitado e distanciado dele desde que o próprio Polónio ordenou que ela assim fizesse, pergunta-lhe se disse algo que o tivesse perturbado. A jovem responde negativamente, apenas lhe devolveu as suas cartas e negou-lhe qualquer tipo de contacto, seguindo as instruções de Polónio. De seguida, corre a contar ao rei o que está a acontecer.

Análise da cena 5 do ato I de Hamlet


    A revelação do fantasma de que o velho rei Hamlet foi assassinado pelo próprio irmão, Cláudio, mostra como a ambição pelo poder pode levar algumas pessoas a cometer os crimes mais hediondos. Por outro lado, revela que a corte e a nobreza dinamarquesas estão corruptas e degradadas, pois parece que a ascensão de Cláudio ao trono com base no crime foi bastante fácil e não obteve grande oposição ou objeto de questionamento. Tal como ainda hoje sucede, com os casos de compadrio, corrupção (ou da chamada cunha), que se acumulam por todo o lado, o sistema político e de governo da Dinamarca parecem ser particularmente vulneráveis a este tipo de atos criminosos. Assim sendo, Marcelo parece ter acertado no alvo quando afirmou, na cena anterior, que algo estava podre no reino da Dinamarca. De facto, algo está: o sistema político, a governação, o caráter e a integridade da monarquia.

    O pedido de vingança que o fantasma dirige ao jovem príncipe – justiça retributiva – levanta questões relevantes. De facto, tal pedido seria considerado, hoje em dia, um crime e um ato condenável a todos os títulos. Tal não era o caso na época em que a ação decorre, visto que o gesto de matar o assassino do próprio pai seria não só aceite, como até esperado, e estaria intimamente ligado às ideias de família, honra e dever. Deste modo, é evidente que o jovem Hamlet sentirá, a partir desta cena e do encontro com o espectro, a pressão de concretizar o seu pedido. Não o fazer mancharia a sua reputação e deixaria o nome da família por vingar.

    Juntamente com essa pressão, ou fazendo parte integrante dela, estão outras questões, como, por exemplo, quando e como executar a vingança. De facto, assassinar um rei não é uma tarefa simples e fácil de executar. Além disso, a revelação do fantasma vem confirmar as suspeitas do jovem príncipe, que sempre desconfiou da postura do tio. Teria ele pressentido desde sempre o seu caráter e a sua participação no crime? Seja como for, agora que ouviu da boca do fantasma do próprio pai a verdade, não lhe restará outra alternativa se não executar a vingança.

    Por último, as novas informações permitem estabelecer um paralelo entre Hamlet e Fortinbras, dado que ambos viram os seus pais morrer recentemente e, embora em circunstâncias diferentes, ambos se sentem pressionados a vingá-los.

    Como fica a rainha Gertrudes no meio deste imbróglio? Determinadas referências, ao longo da cena, ao incesto permitem concluir que, na ótica do fantasma do seu ex-marido, a monarca se está a comportar de forma imoral, desde logo pelo facto de ser casado com o irmão do próprio marido, portanto seu cunhado até ficar viúva. Além disso, há a considerar a questão de Gertrudes não ter esperado muito tempo desde a morte do primeiro esposo para voltar a casar. Podemos interrogar-nos: porquê? Desconfiaria ela do até então cunhado e recearia ser a próxima vítima se se opusesse aos seus intentos? Ou tratar-se-ia apenas do caso de uma mulher que vive no seio de uma sociedade governada por homens, que, portanto, não possui uma voz livre e independente e que é pressionada (ou, pelo menos, se espera tal) a casar novamente? Tendo tudo isto em conta, a fúria do fantasma dirigida a ela (que o leva a dizer ao filho que não estenda a vingança à mãe, para que seja ele próprio a exercê-la no Céu) ou é justificada porque o espírito sabe algo que mais ninguém conhece, ou não tem em consideração as pressões que uma mulher na sua situação e posição social sofreria e às quais seria difícil resistir.

    Por último, a finalizar a cena, Hamlet diz a Marcelo e Horácio que não estranhem o seu comportamento nos próximos dias, o que se justifica pela conversa que manteve com o fantasma e tudo o que dela resultou ou resultará. Quem agiria da mesma forma que dantes depois de ter recebido tais notícia?

Resumo da cena 5 do ato I de Hamlet

    Hamlet segue o fantasma até outra parte da muralha do castelo, mas eventualmente cansa-se e exige que lhe diga o que pretende. O espectro concorda e confirma que é o espírito do seu pai e que retornará, em breve, para o purgatório, mas tem algo importante para dizer ao filho. Assim, informa-o que foi assassinado de forma hedionda e antinatural, o que deixa o jovem príncipe horrorizado. O espectro prossegue a sua narrativa: afirma que a morte do rei Hamlet, supostamente causada pela picada de uma serpente, foi, na verdade, causada por Cláudio, que derramou veneno no seu ouvido enquanto dormia no jardim. Esta informação confirma os piores temores do príncipe relativamente ao tio. De seguida, o fantasma pede a Hamlet que o vingue, dizendo-lhe que o tio corrompeu a Dinamarca e Gertrudes, a rainha, tendo-a arrancado do amor puro que vivi no seu primeiro casamento, para a mergulhar na luxúria ignominiosa da sua união incestuosa. Porém, embora insista na exigência da vingança, o espectro diz ao príncipe para não agir contra a sua mãe, devendo “deixá-la para o céu” e para as dores com que a sua própria consciência a atormentará.
    Quando a manhã irrompe, o fantasma desaparece, deixando o príncipe simultaneamente triste, enraivecido e confuso com o que ouviu. É nesse estado que Marcelo e Horácio o encontram e o questionam, ansiosos, acerca do que aconteceu entre ambos. No entanto, abalado e muito agitado, hesita em revelar os detalhas da conversa, temendo uma traição. Assim, pede-lhes que não lhe façam mais perguntas e que mantenham em segredo os últimos acontecimentos, fazendo-os jurar pela sua espada. Além disso, Hamlet avisa-os que poderá agir de forma estranha e fingir-se de louco, mas que não poderão revelar qualquer conhecimento do fantasma ou do seu encontro. A voz do fantasma ecoa três vezes debaixo do solo, gritando-lhes que jurem. Marcelo e Horácio prestam juramento sobre a espada de Hamlet e os três regressam ao castelo. Ao partirem, o príncipe lamenta a responsabilidade que agora carrega nos seus ombros: vingar a morte do pai.

Análise da cena 4 do ato I de Hamlet


    Esta cena curta e de transição permite o primeiro encontro de Hamlet com o fantasma que se supõe ser do seu pai. Além disso, possibilita a mistura de elementos de diferentes cenários, contrariando a tendência verificada até então de se apresentarem cenários diversos separados e individualizados. Hamlet, por exemplo, tinha estado associado aos espaços interiores de Elsinore, porém agora surge enquadrado na escuridão do seu exterior. De modo semelhante, o ambiente de terror ficara circunscrito ao seu exterior e separado do que se passa no interior do castelo, porém, nesta cena, o som da festa de Cláudio rompe as paredes e chega ao exterior, aos ouvidos de Hamlet e dos seus companheiros durante a noite. Note-se que essa folia serve essencialmente para manchar o caráter de Cláudio, dado que está mais interessado em celebrar a sua ascensão ao trono do que em honrar a memória do irmão recém-falecido. Hamlet considera que este tipo de coisas prejudica a imagem da Dinamarca perante as outras nações e considera estas celebrações como um sinal da corrupção do Estado, acrescentando que o álcool leva a que os defeitos de caráter de algumas pessoas se sobreponham às suas qualidades. Apesar de Cláudio não ser o primeiro governante dinamarquês a entregar-se a tal folia, parece ser opinião do jovem príncipe que esta é excessiva.

    A cena muda drasticamente com o aparecimento do fantasma, que também é associado a uma imagem de decadência da nação, nomeadamente quando Marcelo faz a sua famosa afirmação, segundo a qual algo está podre no reino da Dinamarca. Por outro lado, a aparição do espectro permite estabelecer um contraste entre o relacionamento de Hamlet com o seu pai e com o seu tio, de quem está distante e tem uma visão muito negativa.

    Além disso, o episódio permite destacar a tristeza do jovem príncipe e o pouco valor que atribui à sua vida. Convém também ter presente que, como Hamlet não sabe o que existe para além da morte, não consegue ter a certeza se o fantasma é realmente o espírito do seu pai ou se é um demónio vindo do Inferno para o destruir. Essa incerteza condu-lo a tecer considerações dolorosas sobre a moral, já abordadas igualmente na cena inicial, quando se alude ao seu desejo de se matar.

    Por sua vez, o tema da loucura também está presente e é suscitado por Horácio quando procura demover Hamlet de seguir o fantasma e sugere que isso poderá privá-lo da razão e mergulhá-lo na loucura. Assim sendo, esta temática assume um papel relevante na peça, nomeadamente no que toca ao príncipe.

Resumo da cena 4 do ato I de Hamlet

    A cena desenrola-se à noite. Hamlet, Horácio e Marcelo esperam nas muralhas de Elsinore que o fantasma apareça. Do interior do castelo, pouco depois da meia-noite, chegam sons de folia: é o novo rei e os seus cortesãos que festejam e bebem, de acordo com os costumes dinamarqueses. Incomodado, o jovem príncipe mostra-se favorável ao fim desse costume, argumentando que tal celebração mancha a reputação da Dinamarca, tornando-a motivo de chacota junto das outras nações e diminuindo o valor e a importância das suas conquistas. E prossegue a sua fala, aludindo ao modo como as falhas de um indivíduo podem ofuscar as suas qualidades.
    O fantasma aparece e Hamlet questiona-o, perguntando-lhe se ele é o espírito do seu pai e quais são as razões que o levaram a deixar o túmulo e vir para Elsinore. O fantasma faz-lhe sinal para que o siga e, apesar dos avisos dos seus amigos para que não o faça, advertindo-o de que o espírito o pode conduzir ao perigo, Hamlet decide segui-lo alegando que nada teme, pois não valoriza a sua vida. Horácio e Marcelo tentam contê-lo, mas ele exige que o soltem e até desembainha a espada quando os amigos não obedecem e afirma-lhes que os transformará em fantasmas se não o deixarem seguir o espectro. Marcelo e Horácio cedem, Hamlet segue a aparição e desaparece na escuridão, enquanto os dois primeiros veem no acontecimento um mau presságio para a nação. Volvidos alguns momentos, os dois amigos seguem Hamlet e o fantasma. Marcelo comenta, então, que algo está podre no reino da Dinamarca.

Análise da cena 3 do ato I de Hamlet


    A cena é constituída por diálogos entre os dois irmãos e depois entre o pai e os seus filhos. Se a cena II serviu para anunciar o contraste entre Hamlet e Laertes, esta acentua-o e clarifica-o. De facto, na cena anterior, o leitor fica a conhecer a profunda divisão existente no seio da família de Hamlet, em confronto com a normalidade que se faz sentir na casa de Polónio. Ao longo da peça, por outro lado, ficará bem patente a diferença entre Laertes e Hamlet, pois, enquanto este hesita em levar a cabo a vingança do seu pai, Laertes não hesita e mostra-se determinado em vingar a morte do seu. De um lado, temos um jovem príncipe contemplativo e hesitante e, do outro, um ativo, determinado, obstinado e afetuoso Laertes.

    Por outro lado, a cena permite que o leitor fique a conhecer as personagens da família de Polónio. Assim, Laertes, quando questiona a irmã acerca do seu relacionamento com Hamlet e a aconselha, mostra ser o irmão mais velho atento, carinhoso e preocupado com a sua jovem irmã. Além disso, mostra-se confiante e prático, possuidor de um raciocínio direto e uma forma de ser e agir gentil. Sendo mais velho e na qualidade de homem que já esteve para lá dos portões de Elsinore e das fronteiras da Dinamarca, é alguém mais experiente do que a irmã e que tem consciência das questões que a atenção de Hamlet pode causar à reputação de Ofélia.

    Por seu turno, esta última deixa clara a sua juventude e inexperiência, mas também sincera e transparente no que diz respeito ao seu amor pelo príncipe. De facto, quando questionada pelo irmão e pelo pai, Ofélia poderia mentir, porém ela revela o que está a acontecer e é sincera no seu amor por ele, acreditando igualmente na sinceridade do afeto do príncipe. Em contrapartida, esta postura revela uma certa ingenuidade e desconhecimento do lado mais sombrio que pode residir nas intenções de um jovem relativamente a uma mulher igualmente jovem.

    Já Polónio apresenta-se, no diálogo com o filho, como um pai conselheiro, atento, preocupado e paternalista, tendo a forma como o aconselha acerca do modo de se comportar em França. Este discurso permite também estabelecer um contraste entre o amor paternal de que Laertes desfruta e o sentimento de perda e estranhamento de Hamlet, em virtude sobretudo do falecimento de seu pai. Além disso, se os filhos parecem ser sinceros e diretos, Polónio parece ser um homem algo egocêntrico e com uma visão eminentemente político das coisas e da vida, mesmo em situações que envolvem Laertes e Ofélia.

    Por último, a cena releva o contraste entre a realidade e as aparências, a propósito das verdadeiras intenções de Hamlet relativamente a Ofélia. O que quer ele dela? Será sincero ou estará a enganá-la? Neste contexto, a postura e o pensamento de Polónio são muito interessantes. De facto, está mais preocupado com as repercussões que as ações da filha podem ter na reputação dele do que com a sorte dela. Motivações semelhantes parecem estar subjacentes aos conselhos que dá a Laertes: a preocupação essencial centra-se nas aparências exteriores e não no interior de cada personagem.

Resumo da cena 3 do ato I de Hamlet


    Em casa de Polónio, Laertes prepara-se para partir para França. Ao despedir-se da irmã, Ofélia, alerta-a para os perigos de se apaixonar por Hamlet, que, segundo ele, é temperamental e comprometido com as necessidades da Dinamarca. De facto, uma pessoa na posição do jovem príncipe não tem a liberdade de escolher a companheira que entender e o bem-estar de um país pode depender dessa escolha. Retribuir o afeto de Hamlet poderia comprometer a sua reputação, por isso aconselha-a a protege-la, preservar a sua virgindade e evitá-lo e ao perigo, que o desejo configura. Ofélia promete levar a sério o conselho do irmão, mas, atrevida, pede que não lhe dê conselhos que ele mesmo não adota, ao que Laertes retorque que saberá cuidar de si.

    A entrada de Polónio para se despedir do filho interrompe a conversa dos dois irmãos. O pai adverte-o para se apressar e correr para o seu navio, pois já está atrasado, nas acaba por o atrasar ainda mais, dando-lhe inúmeros conselhos sobre como se comportar com integridade e patriotismo. Assim, diz-lhe que deve conservar os seus pensamentos para si; que deve evitar agir de forma precipitada; que deve fazer amigos, mas confiar apenas naqueles que provarem a sua lealdade; que deve evitar envolver-se em disputas, mas lutar corajosamente se for necessário; que deve ouvir mais do que falar; que deve vestir-se bem, mas não de forma espalhafatosa; que deve abster-se de pedir emprestado ou emprestar dinheiro; e, finalmente, que deve manter-se fiel a si mesmo e aos seus princípios.

    Laertes despede-se novamente de Ofélia e do pai e parte, recordando a irmã dos seus conselhos. A sós com a filha, Polónio pergunta-lhe o que conversou com o irmão e ela responde-lhe que tinha a ver com Hamlet. O pai diz-lhe que, de facto, tem notado que Hamlet e Ofélia têm passado muito tempo juntos ultimamente e pede-lhe que lhe revele a natureza do seu relacionamento. A jovem responde-lhe que Hamlet lhe diz amá-la, o que leva Polónio a ecoar os conselhos de Laertes, mostrando-se muito cético relativamente às reais intenções do príncipe. Ofélia insiste na sinceridade de Hamlet, contudo o pai adverte-a de que aquele é muito jovem e a enganou no seu amor por ela e, por isso, deveria rejeitar o seu afeto. Ofélia promete obedecer ao pai e afastar-se do príncipe.

Análise da cena 2 do ato I de Hamlet


    Esta cena começa por nos fornecer uma primeira visão do novo casal real e do seu relacionamento tenso com o príncipe Hamlet. O novo monarca parece procurar vencer a atmosfera sombria que o falecimento do anterior rei instalou no seio da corte. No entanto, a alegria parece superficial, o que é perfeitamente compreensível, dado que Cláudio está a tentar harmonizar um clima de tristeza e dor pela morte do irmão com a felicidade de ter desposado a esposa dele.

    A impressão com que o leitor fica de Cláudio é negativa. Como explicar o conselho que dá a Hamlet no sentido de parar de lamentar a morte do pai e de se adaptar a uma nova vida. Sucede que o príncipe desconfia do tio e não quer os seus conselhos. Mais do que isso, ele olha com estranheza para a morte do pai, o que é acentuado quando fica a saber da aparição repetida do fantasma, pois há a crença de que os espíritos aparecem frequentemente em busca de vingança para as suas mortes. Por outro lado, a sua atitude e comentário hostis durante a conversa com Cláudio parecem indiciar o seu ressentimento e desconfiança relativamente ao tio.

    Outro aspeto interessante desta cena é a relação entre mãe e filho. Assim, por um lado, quando Gertrudes pede ao filho que não regresse à universidade e permaneça em Elsinore mostra que ela gosta de Hamlet e o quer perto de si. O facto de o príncipe acatar o pedido é revelador também da obediência e dedicação à mãe. No entanto, no seu solilóquio, Hamlet revela a deceção com a progenitora por se ter casado tão rapidamente após a morte do primeiro marido, ainda por cima com o homem que era seu cunhado e a imagem que tinha do matrimónio dos seus pais era marcado pelo amor e compromisso entre ambos. Deste modo, o príncipe não consegue compreender que ela possa ter consentido num relacionamento com Cláudio, que Hamlet considera não estar à altura do seu pai.

    Não obstante, Hamlet parece ignorar as circunstâncias que rodeiam a existência da mãe. De facto, Gertrudes, enquanto mulher, não tem nem de perto nem de longe o mesmo poder que o filho ou outros membros da corte. Apesar de ser a rainha da Dinamarca, vive numa sociedade dominada por homens, uma sociedade que esperava que ela casasse de novo. Isto significa que o olhar crítico que o príncipe dirige à mãe é injusto e precipitado, pois não tem em conta as pressões externas a que está sujeita. Estamos ainda bem distantes de um tempo de uma rainha Vitória ou Isabel II. 

    Seja como for, parece claro que Hamlet sente que é desonroso para a mãe ter casado com o ex-cunhado, o que é visível, por exemplo, quando associa esse matrimónio ao incesto, o que significa que viola um certo código de ética, visto que, em termos práticos, não há incesto, dado Gertrudes e Cláudio não serem parentes. Assim sendo, Hamlet critica, sobretudo, aquilo que considera uma falta de respeito para com o seu pai.

    Uma outra questão suscitada pela cena é a imagem da Dinamarca como nação. Tudo o que é exposto aponta para um clima de corrupção, fraqueza e decadência que se instalou na corte, não só a história em torno de Cláudio, mas também o facto de Fortinbras pensar guerrear a Dinamarca por considerar que esta se encontra vulnerável. Outro exemplo que contribui para a construção desta imagem é o facto de Hamlet pôr a hipótese de o fantasma ter algo sujo a revelar. Será por tudo isto que não se mostra disponível para participar na tentativa do tio de construir uma imagem saudável e feliz da corte.

    Por último, há um momento em que Hamlet parece contemplar o suicídio, porém tal não se coaduna com a ideologia cristã que caracteriza a peça. De facto, de acordo com a religião de índole cristã, o suicídio constitui um pecado mortal, logo condena o suicida ao sofrimento terno no Inferno.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Resumo da cena 2 do ato I de Hamlet


    Na manhã seguinte, Cláudio, o novo rei da Dinamarca, faz um discurso aos seus cortesãos, explicando o seu recente casamento com Gertrudes, viúva do seu irmão e mãe do príncipe Hamlet. Assim, afirma o seu luto pelo irmão, as esclarece que é necessário refletir e prevenir o futuro e acrescenta que foi por isso que desposou Gertrudes, sua ex-cunhada e se tornou rei, e que está a celebrar o seu matrimónio, estabelecendo um equilíbrio entre o luto e o ambiente de festa. De seguida, alude a Fortinbras, informando que este lhe escreveu, exigindo a devolução das terras que o rei Hamlet conquistara ao seu pai, e envia uma mensagem de resposta, através de Cornélio e Voltimand, dois cortesãos noruegueses, dirigida ao rei da Noruega, tio de Fortinbras, um homem idoso e doente que desconhece por completo os planos do sobrinho, pedindo-lhe que trave as intenções deste último.

    Concluído o discurso, Cláudio volta a sua atenção para Laertes, que deseja regressar a França, onde vivia antes de ter regressado à Dinamarca, para a coroação do novo rei. Polónio dá o seu assentimento ao desejo do filho e Cláudio faz o mesmo. Dirige-se, antão, a Hamlet, questionando o seu luto persistente e a sua dor. Gertrudes exorta-o a pôr de parte as vestes negras que persiste em usar, mas o filho responde de forma sarcástica. Cláudio intervém, afirmando que a morte é um facto inevitável e «comum», pelo que todos os pais eventualmente morrem. Assim sendo, quando um filho perde o seu pai, deve chorar a sua perda, mas prolongar o estado de sofrimento e dor por muito tempo é inapropriado sinal de fraqueza de caráter. Além disso, exorta-o a pensar nele como um pai, recordando-lhe que é o próximo na linha de sucessão após a sua morte, e incentiva-o a permanecer na Dinamarca, em vez de regressar a Wittenberg, onde estudava antes da morte do pai, como o jovem príncipe tinha pedido. Gertrudes ecoa as palavras do marido, exprimindo o desejo que o filho permaneça perto de si. Hamlet acaba por concordar. Cláudio fica encantado e convida a esposa a celebrar com ele, através de uma festa e tiros de canhão, um antigo costume dinamarquês chamado “despertar do rei”. Todos saem de cena, excerto Hamlet.

    Sozinho, Hamlet inicia um monólogo e expressa o seu descontentamento com o rumo da sua vida após a morte do pai, dois meses antes, bem como a sua indignação com o casamento célere e precipitado da mãe com o seu tio, que ele considera incestuoso. E recorda o modo como os pais pareciam apaixonados um pelo outro. A sua dor é tanta que chega a aflorar o desejo de morrer, de desaparecer e deixar de existir.

    Entretanto, Horácio, Marcelo e Bernardo entram no aposento e cumprimentam Hamlet. O segundo era amigo íntimo do príncipe na universidade de Wittenberg e Hamlet, feliz por o reencontra, questiona-o sobre a razão de ter saído da escola e se encontrar em Elsionre. O amigo responde-lhe que veio ao funeral do rei Hamlet, ao que o príncipe responde, sarcasticamente, que veio assistir ao casamento da sua mãe. Horácio concorda que se tratou de um matrimónio rápido e revela-lhe que, juntamente com Marcelo e Bernardo, viram o fantasma do seu pai. Chocado e atordoado, o príncipe quer mais informações sobre o espírito. Os três homens descrevem o fantasma, a sua armadura, a viseira levantada e aparência pálida. Hamlet afirma que se lhes juntará nessa noite, na esperança de que haja nova aparição e que possa falar com ela, e pede-lhes que não contem a mais ninguém o que viram.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Análise da cena 1 do ato I de Hamlet


    A peça Hamlet foi escrita por volta de 1600, na fase final do reinado da rainha Isabel I, que governou a Inglaterra durante mais de quarenta anos e estava, então, a caminho dos sessenta anos. Neste contexto, facilmente se percebe que as questões em torno da morte da monarca e da sua sucessão eram assuntos candentes e objeto de grande discussão, visto que Isabel não tinha filhos e a única figura que, legitimamente, tinha pretensões ao trono era Jaime da Escócia, filho de Maria, rainha dos escoceses e, assim sendo, representante de uma fação política contrária à da monarca inglesa. De facto, quando Isabel faleceu, em 1603, James herdou o trono, tornando-se Jaime I.

    Não será coincidência que várias peças de William Shakespeare desta época aludam a transferências de poder entre reis. Essas obras centram-se particularmente nas incertezas, traições e convulsões que acompanham esses tempos e essas mudanças de poder e no ambiente geral, caracterizado pela ansiedade e pelo receio do que esteja para vir. Ora, a situação que encontramos no início de Hamlet é a de um rei forte e muito amado, recentemente falecido, cujo trono foi herdado não pelo seu filho, como seria natural e expectável, mas pelo seu irmão. O povo, ainda de luto pelo bem-amado velho monarca, não sabe o que o futuro lhe reserva, ambiente que é espelhado pelos guardas do castelo, que se encontram desconfiados e com medo.

    Esta abertura da peça com uma cena intrigante atrai inevitavelmente o público para a sua ação, muito próxima da que vivia a Inglaterra na realidade: um rei recentemente falecido (a hora da morte de Isabel I aproximava-se) aparece sob a forma de um fantasma; há tensões militares no ar e a Dinamarca vive um clima de agitação geral, fruto do passamento do monarca e da tensão com a Noruega. Esse aparecimento parece implicar que o futuro da Dinamarca é sombrio e assustador. É isso que Horácio lê no aparecimento do espírito do velho monarca: um mau presságio de violência e turbulência, associando-o aos presságios que indiciaram o assassinato de Júlio César. Como se verão no desenvolvimento da peça, Horácio tem razão: o surgimento do fantasma pressagia as tragédias que terão lugar futuramente.

    Esta cena inicial serve também para apresentar uma das personagens centrais da obra, Horácio, um homem bem-humorado e educado, inteligente e cético relativamente a eventos sobrenaturais. Porém, esta personagem não é um racionalista cego e inflexível e, quando vê o fantasma, não nega o que vê; pelo contrário, fica aterrorizado. Esta sua reação ao aparecimento do fantasma permite que a descrença do público face a estes fenómenos seja superada. Com efeito, o facto de um homem racional, cético, inteligente e confiável como Horácio acreditar e temer o fantasma é muito mais convincente para o público do que o testemunho de um par de vigias supersticiosos.

Resumo da cena 1 do ato I de Hamlet

    Numa noite escura de inverno, no castelo de Elsinore, na Dinamarca, Bernardo apresta-se para substituir Francisco na tarefa de vigia. Na penumbra, os dois homens não se conseguem ver, por isso Bernardo, ao ouvir passos próximos de si, grita: “Quem está aí?” Ao ouvir a voz do colega, relaxa. Com frio e cansado pelas muitas horas de vigia, Francisco agradece a Bernardo e dirige-se para casa, para dormir.

    Pouco depois, chegam outro soldado, Marcelo, e um nobre chamado Horácio, amigo do príncipe Hamlet. Os dois vigias discutem acaloradamente a aparição, nas últimas duas noites, de um fantasma durante a sua vigília nas muralhas, que lembra o falecido rei Hamlet, pai do príncipe homónimo. Horácio mostra-se cético e desconfia do relato, crendo que tudo não passa de imaginação dos guardas, porém de repente o espírito surge subitamente diante dos três homens, vestido com as roupas e a armadura do falecido monarca. A pedido dos outros homens, Horácio pede ao fantasma que fale, no entanto este recusa e desaparece.

    Horácio fica aterrorizado e sugere que a aparição do espírito, que envergava a mesma armadura que usava quando lutou contra o velho Fortinbras, rei norueguês, conquistando-lhe terras que, anteriormente, pertenciam à Noruega, significa algo terrível para a Dinamarca. Horácio acrescenta que Fortinbras, neste caso o jovem príncipe norueguês, deseja agora reconquistar essas terras anteriormente perdidas.

    No final da cena, o fantasma faz nova aparição e Horácio tenta falar com ele, mas desaparece mais uma vez no momento em que o galo canta aos primeiros sinais do amanhecer. Horácio sugere que contem ao jovem príncipe Hamlet o que viram, pois acredita que, embora o espírito não tenha falado consigo, se for realmente o fantasma do rei Hamlet, não se recusará a falar com o filho.

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Análise das 8.ª e 9.ª partes da crónica 1 de Assassinos da Lua das Flores


    Tom White, a figura mais heroica do livro, é o protagonista da sua seção intermediária. O seu talento como detetive e o sentido de moral conduzem a investigação e permitem compreender como é que o Departamento de Justiça dos EUA ficou conhecido como o Departamento da Virtude Fácil. De acordo com White, uma cultura de corrupção compromete até os bons espíritos: qualidades pessoais admiráveis, levadas ao extremo, podem transformar-se em falhas, uma mutação que a corrupção acelera. Por outro lado, a escolha de William Burns, um detetive privado conhecido por ignorar a lei, para diretor do Bureau em 1921 levou a que o Departamento de Justiça ficasse intimamente conectado com a injustiça e um ethos que dava prioridade aos fins em detrimento dos meios.

    Tal como sucede no romance policial tradicional, os agentes da lei sabem que há um criminoso (ou criminosos), mas desconhecem a sua identidade e a sua tarefa consiste precisamente na descoberta da mesma, uma tarefa extremamente complexa, visto que que os crimes não seguem um padrão inequívoco, além de terem como alvos membros da tribo osage ou homens brancos que procuram ajudá-los. A preocupação de White passa por distinguir os factos das suposições, mesmo que o processo se revele demorado, em detrimento da obtenção de resultados rápidos. A finalidade primeira e última é chegar à verdade e fazer justiça. Nada mais importa. Mesmo que White esteja disposto a violar uma norma do Bureau – a proibição de os seus agentes portarem armas –, incute neles a noção de quão importante é manter os mais elevados padrões de investigação possíveis. Num contexto marcado pela ilegalidade e pelo crime, a hesitação de White em recorrer à violência, ainda que queira que os seus agentes sejam capazes de se proteger, é uma parte vital da sua estratégia de criar condições para resolver o caso.

    É curioso notar que a equipa reunida por White não corresponde àquilo que J. Edgar Hoover visionou como fundamental para a modernização do Bureau of Investigation e recuperação da sua reputação. De facto, o recém-nomeado diretor preferia ter a trabalhar para si investigadores profissionais com formação universitária, mas White opta por homens experientes nos assuntos da antiga fronteira e que, por isso mesmo, poderão operar disfarçados tanto junto das comunidades brancas como das nativas americanas, além de outros que o ajudarão publicamente. É uma espécie de conspiração para expor a conspiração criminosa. Sucede, porém, que este modo de agir não é isento de problemas. De facto, White corre o risco de levar os homens bons da sua equipa a deixar-se seduzir pela face do crime. De facto, é o que sucede com um dos informantes recrutados, que acaba por fornecer informações à conspiração criminosa. Não obstante, nenhum dos agentes incorporados por White se deixa corromper no condado, mas existe sempre a possibilidade de tal suceder a qualquer momento.

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