Português: Contexto
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terça-feira, 9 de julho de 2019

O classicismo francês: a época de Luís XIV

            Em França, as guerras de religião haviam rematado no século XVI pelo Edicto de Nantes (1598) e o advento da dinastia bourbónica. Deste compromisso precário entre a burguesia huguenote e a aristocracia católica resulta, como fiel da balança, a política absolutista de Richelieu, Mazarino e Luís XIV, profundamente diferente, no seu significado social, do absolutismo peninsular. A coroa sustenta, além da nova burocracia do absolutismo, a velha aristocracia de sangue, que, domesticada depois do esmagamento da Fronda, faz uma vida ociosa de corte. A burguesia ascende, em parte, à categoria de cargo, prevalece na administração central, enriquece com os fornecimentos e arrematações dos impostos da Coroa, impõe a política mercantilista que permite o desenvolvimento da manufatura (indústrias de luxo, mineração, construção naval, têxteis, etc.). Batidos os Filipes na Paz dos Pirenéus de1659, a França torna-se a potência hegemónica da Europa. Mas a «guerra do dinheiro», de conquista surda dos mercados e do ouro, conduzida por Colbert e as suas Companhias contra as outras potências, empurra Luís XIV a uma série de lutas armadas que desprestigiam o absolutismo e dão lugar ao agravamento da situação económica das massas populares.
            Sob o ponto de vista cultural, o grande foco é ainda então a corte, que deve à corte madrilena a iniciação em muitos requintes. No campo literário, Honoré d’Urfé, com o início da Astrée e, 1608, introduz na corte francesa o formalismo da alegoria pastoral anteriormente consagrada pela Diana de Montemor, dando o modelo para as damas preciosas dos salões da marquesa de Rambouillet e de M.lle. Scudéry; e Corneille, com o Cid (1636-37), adapta o drama espanhol ao gosto francês, inaugurando o teatro clássico em França. Mas a um estado de coisas político e social mais estável e a um nível já superior corresponde um espírito mais analítico e racionalista, um sentimento de vida mais confiante, mais equilibrado e menos patético que o prevalecente em Espanha. Há uma enorme floração de doutrinadores e preceptistas literários, cheios de ponderação sensata, entre os quais se destacam o poeta Malherbe, à entrada do século, e Boileau, cerca do último quartel (Arte Poética, 1674). Ao mesmo tempo a Academia Francesa (1635) e vários gramáticos racionalistas desempenham o seu papel de codificação e apuramento linguísticos.
            No terreno filosófico, a figura dominante do século XVII francês é Descartes, também um dos criadores da álgebra, da geometria analítica e da mecânica. A sua filosofia, como a do seu contemporâneo inglês Bacon, centra-se no problema da metodologia científica (Discurso do Método, 1637). Em última análise, o método cartesiano reduz-se a interpretar os fenómenos segundo esquemas mecânicos, geométricos e algébricos. Descartes, por outro lado, acautela o idealismo tradicional e a teologia, e não discute as instituições políticas e sociais do tempo; sustenta a imaterialidade e eternidade do espírito, mas concebido como simples consciência das leis mecânicas do mundo, e afirma a existência de Deus, mas como garantidor da realidade objetiva das leis científicas – um Deus, aliás, que (pelo menos sob certa leitura de Descartes) é a negação mesma do milagre.
            Com Newton, Pascal e Leibniz, além do método experimental, integram-se no pensamento científico os conceitos de energia e de infinito. A preocupação da infinidade e da omnipotência divinas, agora que a ciência impunha uma conceção infinitista e energética do mundo, sente-se nos Jansenistas de Port-Royal, de que Pascal foi a figura dominante.
            À ascensão do absolutismo em França corresponde o teatro de Corneille (Horácio, Cinna, 1640), em que se apresenta sempre a vitória da autodisciplina cívica do protagonista sobre as paixões pessoais mais veementes. Com Racine, os conflitos da tragédia já lisonjeiam mais as paixões, e a noção de dever desloca-se do clima cívico para o clima familiar (Fedra, 1677). Um e outro levam à maior perfeição o esquema das três unidades (ação, lugar e tempo), que ao teatro clássico francês uma grande densidade psicológica e ideológica. Entretanto, a comédia de caracteres de Molière, fundindo o racionalismo francês com a experiência de palco da Commedia dell’Arte, critica penetrantemente a hipocrisia e a fatuidade do sistema feudal remodelado sob o absolutismo, atingindo ao mesmo tempo a caça ao lucro, ou ao prazer e várias deformações psicológicas, típicas não só da nobreza mas também da burguesia dirigente, com um poder de apreensão que os ideólogos burgueses perderão mais tarde no seu propagandismo revolucionário (Preciosas Ridículas, 1659; D. João, 1665; Tartufo, 1669; As Sabichonas, 1672, etc.).
            Os sintomas de dissolução ideológica do regime de Luís XIV começam por se fazer sentir nos meios aristocráticos. Tal como na aristocracia tory inglesa, desenvolve-se o ceticismo galante dos libertinos, que transvasa para as obras de um estilo seco e cínico (Máximas de Rochefoucauld, 1665, Caracteres de La Bruyère, 1688, Fábulas de La Fontaine, 1668); os espíritos volvem-se para as pequenas coisas, registam efemérides e ditos, redigem memórias, correspondência literária, mantêm o tom racionalista, mais virado para o mundo psicológico ou para uma perspetiva pessimista do mundo social (Memórias do cardeal de Retz e do duque de Saint-Simon; Cartas de M.me de Sévigné; Princesse de Clèves, romance de M.me de Lafayette, 1678). Entre 1680 e 1715 decorre o período que Paul Hazard denomina de «crise da consciência europeia», no qual se confirma o descrédito das instituições e formas culturais da época de Luís XIV.

O papel da Inglaterra seiscentista

            Na França e na Inglaterra, o capitalismo comercial e a cultura burguesa não dominam tão livremente, mas, por vias mais sinuosas, impõem a sua influência.
            Na Inglaterra, o absolutismo dos Tudors elimina desde Henrique VIII a alta aristocracia feudal e o clero regular, mas a nobreza que ascende com as secularizações (gentry) e a burguesia de Londres mantêm o controlo do fisco pelo Parlamento. Os filhos segundos da gentry, vedado o acesso à carreira do clero regular, das armas ou do funcionalismo, em resultado das secularizações e da moderação do fisco régio, ingressam por isso na burguesia. A Coroa garante o monopólio, a que se associa, das companhias criadas para fazer o corso às frotas hispânicas e conquista os entrepostos do Báltico, do Mediterrâneo e depois do Índico e da América do Norte. O reinado de Isabel (1558-1603) e ainda o do primeiro Stuart, Jaime I, correspondem por isso, não apenas ao desenvolvimento de uma cultura amaneirada de corte, em que se salientam a poesia para canto e o pastoralismo convencional (Sidney, Spenser, John Lily, autor do romance Euphues, 1579-80, donde derivou o nome de eufuísmo para o estilo culto inglês), mas também ao surto de uma riquíssima escola teatral em que se fundem o naturalismo renascentista, a cultura universitária de muitos dramaturgos, a ânsia de aventura e domínio, as inquietações ideológicas da burguesia, o estilo floreado da corte (Marlowe, Shakespeare, Ben Jonson, Fletcher, etc.).
            O desenvolvimento posterior da burguesia e o endurecimento da sua ideologia puritana, por um lado, a reação correspondente por parte dos monarcas Stuarts e da aristocracia mais exclusivamente agrária, por outro lado, precipitam depois as revoluções de 1648 e 1688, cujo saldo final é uma vitória sobre o absolutismo por parte de uma coligação tácita entre a burguesia londrina menos puritana e a aristocracia Whig, que lhe está estreitamente ligada. Estas duas camadas vão realizar durante o século XVIII uma dupla revolução: a revolução agrária da enclosure, eliminação do pequeno campesinato feudal, já iniciada em começos do século XVI, e a revolução industrial. Através das vicissitudes seiscentistas, o puritanismo revolucionário exprime-se literariamente pela obra de Milton (Paraíso Perdido, 1667) e Bunyan (Caminhada do Peregrino, 1678); a aristocracia opõe ao zelo puritano um teatro e um lirismo profundamente cínicos e intelectuais (Wycherly, Congreve, Lovelace, etc.).
            Por meados do século XVII, a Sociedade Real de Londres, ilustrada por figuras como Roberto Boyle e Newton, torna-se o foco mundial da investigação científica, onde se lançam as bases de uma nova disciplina da física, a dinâmica, articulada com o também recente cálculo infinitesimal. No desenvolvimento do empirismo e sensualismo inglês, Hobbes e Locke sucedem a Francisco Bacon, que em 1620, com o Novum Organum Scientiarum, dera o primeiro tratado de metodologia científica experimental. Locke, o filósofo da revolução de 1688, que escreve em inglês para toda a gente, e não já em latim escolástico, é o pensador que mais influência exerce na Europa por todo o século XVIII. Este conjunto de circunstâncias sociais e culturais explicam que a Inglaterra, país onde a revolução burguesa, embora menos radical e rematando num compromisso que dura até à época vitoriana (reforma eleitoral de 1832), se antecipa de um século à da França e, em geral, do Continente, seja no início do século XVIII a herdeira imediata das criações holandesas de inícios do século XVII: jardins, conforto do lar, pintura de paisagem, de retrato e de interiores, jornalismo, filosofia progressiva, livre-cambismo, teoria dos direitos fundamentais do homem e da divisão dos poderes do Estado.

O papel precursor da Holanda

            Enquanto os domínios ultramarinos permitiam à aristocracia peninsular um reagrupamento defensivo em torno da Coroa, mantendo na sociedade e na cultura de Portugal e Espanha certas características feudais, e propiciavam depois uma hegemonia política mundial da Espanha que atinge o apogeu sob Filipe II (1556-98), e se prolonga até ao desfecho da Guerra dos Trinta Anos (1618-48) – em alguns países da Europa Ocidental, não sujeitos ao seu domínio, a estrutura social e política sofre consideráveis alterações. É que, afinal, a Bolsa de Antuérpia (1531), centro do comércio continental das especiarias portuguesas, e os banqueiros da Alemanha do Sul, principais financiadores das Coroas peninsulares, apesar das sucessivas falências individuais, tinham exercido o real controlo da nova economia mundial recém-nascida. Os recursos dos reinos de Portugal e Espanha esgotavam-se já no século XVI, cada vez mais incapazes de ocorrer aos gastos da oligarquia administrativa e militar e de satisfazer os juros de dívidas astronómicas. A nova aventura cavaleiresca em Marrocos afunda-se em Alcácer Quibir (1578); a Casa da Áustria acrescenta o império português aos seus domínios, mas em 1588 vê a sua «Invencível Armada» batida pelos Ingleses. O século XVII vai assistir ao triunfo de um grande capitalismo mercantil, constituído em companhias de acionistas particulares que pertencem, indiferentemente, a vários credos ou nações e que utilizam um Estado nacional como garantia do seu monopólio.
           A inovação parte dos Holandeses, cujos armadores, associando-se a capitais internacionais (em grande parte dos Marranos, ou Cristãos-Novos expulsos da Península), criam, a partir de 1592, as célebres Companhias das Índias, primeiro para fazer a guerra de corso às frotas filipinas, e depois para desalojar o império Habsburgo dos seus principais entrepostos da Indonésia, Índia, África do Sul e Central. A expansão colonial holandesa é facilitada por um tolerantismo comercialista, próprio de um Estado federativo, descentralizado, dir-se-ia que ele próprio imagem de uma empresa por ações. A Banca de Amesterdão (1611) torna-se o centro do capitalismo internacional. O calvinismo, dominante entre a burguesia holandesa, reabilita o juro e a especulação bancária.
            A Holanda torna-se na primeira metade do século a estante giratória com prateleiras para as heresias que minam os estados monarco-feudais: refúgio dos judeus peninsulares, dos dissidentes ingleses fugidos aos Stuarts, dos huguenotes franceses. Giordano Bruno, Galileu, Descartes editam lá as obras que teorizam a mecânica celeste e geral; impressores holandeses, como os Elzevir, erguem a arte tipográfica a um novo nível; nasce das informações bolsistas a imprensa periódica, com as Gazetas; o naturalismo renascentista prolonga-se ali. Trata-se do culto da ciência experimental e algébrica (Huyghens), que através da ótica e da criação do microscópio lança a microbiologia com Leeuwenhoek; um judeu de origem portuguesa, Bento de Espinosa, identifica Deus com a Natureza, critica a autoridade de quaisquer Escrituras Sacras e do poder monárquico, concebe a liberdade moral como não passando de uma consciência interiorizadora da causalidade universal, considerando comportamento ético apenas aquele que só obedece a razões – depois de armado com o conhecimento das causas. Grócio fundamenta o direito internacional em regras que julga existirem, não por decreto sobrenatural, mas na natureza humana (direito natural). A escola holandesa de pintura inovadoramente naturalista, substitui a iconografia religiosa por retratos, interiores burgueses e paisagens (Franz Hals, Hooch, Vermeer, Hobbema, Ruysdael). Rembrandt, como veremos, representa já algo para além desse naturalismo.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Classicismo

         O Classicismo é uma estética que estabelece um rigoroso sistema de regras próprias dos vários géneros literários: o épico (representado entre nós pel' Os Lusíadas); o lírico (com as suas formas fixas, como o soneto e o seu verso decassílabo, a canção, a écloga, a elegia, a epístola, o epigrama, a ode, a sextilha, o epitalâmico e o ditirambo); dramático, representado pela tragédia e pela comédia.

         As suas principais características são as seguintes:

. Exaltação do Homem (antropocentrismo), em contraste com o teocentrismo medieval.
. A verdadeira Arte tem por base a imitação, ou seja, deve haver a imitação da Natureza pela Arte, sendo a paisagem sempre amena ("locus amoenus"), idealizada, convencional e artificial, excluindo o insólito ou acidental, a fim de poder refletir o intemporal, o eterno, o essencial.
. Predomínio da razão sobre o sentimento, evitando-se os voos da imaginação e os caprichos da fantasia.
. Imitação dos autores gregos e latinos, adotando temas, usando a mitologia, criando formas poéticas e introduzindo géneros literários.
. Valorização da Arte como expressão de cultura, estudo e bom gosto.
. Sujeição a regras rígidas de conteúdo e forma.
. Justa proporção, equilíbrio e comedimento, de tal forma que as personagens se comportassem de harmonia com a sua condição social, se omitissem expressões e vocábulos grosseiros, não se tratassem assuntos escabrosos, se proscrevessem cenas violentas e cruéis.

Humanismo

         O Humanismo parte do estudo da cultura antiga e, com base nela, valoriza tudo o que é humano e exalta os valores do Homem como centro do Universo (antropocentrismo). O Homem é a "medida de todas as coisas", ou seja, passa a ser encarado como o pólo central, o valor máximo. O Renascimento representou uma viragem decisiva em relação às conceções medievais, que podemos sintetizar opondo a conceção antropocêntrica (o Homem no centro das preocupações) à conceção teocêntrica da Idade Média (Deus é o centro de universo).
         Reagindo ao período da Idade Média, os humanistas voltam-se para a Antiguidade clássica greco-latina, centrando a sua atenção no Homem (antropocentrismo), em substituição do teocentrismo tradicional.
         De facto, a ação dos humanistas, nome que designa os intelectuais deste período, correspondeu a um desejo de abandono dos padrões medievais e à instauração de uma mundividência nova.
         O homem medieval tinha uma visão pessimista da existência, encarando-a como uma penosa passagem que encarava o encontro com Deus após a morte como a realização única. Já o homem renascentista acredita em si mesmo e na sua realização terrena, dado que se realiza na sua obra. Seguindo a máxima de Protágoras, os humanistas defendiam que “o Homem é a medida de todas as coisa”.
         Deste modo, as qualidades mais valorizadas no ser humano deixam de ser apenas a religiosidade, o heroísmo e a honra cavaleiresca, para passarem a ser a inteligência, o saber e o mérito, veículos para a realização de obras para a posteridade. Através delas, o artista liberta-se da “lei da morte”, tornando-se imortal. Em simultâneo, imortaliza os seus mecenas, ou os heróis e os seus feitos da sua pátria.
         A confiança nas capacidades humanas e a busca do saber e da cultura implicavam a valorização da razão e da experiência. Ao espiritualismo medieval, o homem renascentista prefere o racionalismo, à crença em verdades impostas, prefere a certificação da verdade através da experimentação. Assim sendo, o saber resulta do estudo conjugado com a experiência, configurando este dado as bases do conhecimento científico.
         Neste contexto, os Descobrimentos portugueses desempenham um papel central no Renascimento por causa de:
. descoberta de novas terras e povos desconhecidos;
. descoberta de nova fauna e flora;
. inovações tecnológicas exigidas pelas viagens marítimas (ex.: o astrolábio);
. conhecimento dos ventos e das correntes marítimas;
. surgimento e adaptação de embarcações;
. desenvolvimento da cartografia;
. etc.

Fontes:
     . Manual Plural 12;
     . A. J. Saraiva, Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa

Renascimento

         O Renascimento pode definir-se como a "adoção das formas artísticas greco-latinas e a assimilação do espírito que as anima". O Renascimento é, portanto, uma aceitação e não uma ressurreição das formas greco-latinas, pois a ressurreição supõe a morte e as formas greco-latinas nunca morreram.
         Nos finais do século XV e princípios do século XVI, a literatura portuguesa começou a registar algumas ténues influências da literatura italiana, nomeadamente ao nível da poesia produzida em contexto palaciano, nas cortes de D. João II e depois, mais acentuadamente, de D. Manuel. Esses poemas, da autoria de muitos nobres para quem a arte de versejar era um atributo muito importante, eram portadores, com assinalável frequência, de uma atitude amorosa e poética que revelava a influência do poeta italiano Petrarca, o precursor do Renascimento.
         Em 1516, Garcia de Resende publicou a compilação desses poemas palacianos numa obra intitulada Cancioneiro Geral, dedicada ao príncipe e futuro rei de Portugal D. João III, afirmando no Prólogo que o objetivo do seu trabalho era contrariar a natural tendência de os portugueses não registarem, para o futuro, as suas obras. Publicado no ano de inauguração do Mosteiro dos Jerónimos e no período de florescimento do teatro de Gil Vicente, o Cancioneiro revela a valorização já renascentista que a cultura começara a merecer.
         Em 1521, Sá de Miranda, um dos poetas presentes no Cancioneiro de Resende, empreende uma demorada viagem a Itália, durante a qual contactou com a cultura e a arte da Renascença. Cinco anos mais tarde, de regresso a Portugal, trouxe consigo o gosto pelo novo estilo – o dolce stil nuovo – e introduziu na nossa literatura, entre outras composições poéticas, o soneto, com os seus versos decassilábicos.
         Por outro lado, a literatura renascentista redescobrira os clássicos e a Poética de Aristóteles, uma obra que regulamenta e hierarquiza os géneros literários, considerando a epopeia e a tragédia os géneros mais nobres. Não é, pois, de estranhar que a o desejo de elaboração de uma epopeia se tenha disseminado, vindo a ser concretizado por Luís de Camões, e António Ferreira tenha escrito a tragédia Castro, inspirada nos amores trágicos de D. Pedro I e D. Inês de Castro.

Manual Plural 12

A Contra-Reforma e a união com a Espanha

         Cerca de 1550 ocorreram alguns acontecimentos decisivos, que coincidem com a crise geral então vivida. Em 1547, é definitivamente estabelecida a Inquisição em Portugal, após esforços que datavam de 1531. Naquele mesmo, ano sai o primeiro rol de livros proibidos, sucessivamente acrescentado em 1551, 1561, 1564, 1581, 1624. Em 1550, o grupo de professores trazido a Portugal por André de Gouveia (já falecido em 1548) é posto à margem após um processo movido por inimigos do Colégio. Em 1555, o rei entrega este colégio, rebatizado como Colégio das Artes, à Companhia de Jesus, que domina os Estudos Menores (hoje diríamos secundários) em Lisboa e Évora, e que no mesmo ano funda uma universidade sua nesta última cidade. A partir de 1557, ano da morte de D. João III, a principal personagem do reino é o cardeal-infante D. Henrique, inquisidor-geral, que alterna a regência com a rainha-viúva. Em 1564, as decisões do Concílio de Trento são promulgadas em Portugal sem restrições, caso único entre os reinos da Europa Ocidental. Desde cerca de 1550, foram silenciados mesmo os mais estrénuos erasmistas, como André de Resende, Damião de Góis e Diogo de Teive, e por 1580 está extinta a geração dos letrados e gramáticos antiescolásticos que tinham campeado por altura das grandes reformas escolares do início do reinado de D. João III.
         Entre os autores proibidos ou amputados pela Censura contam-se Gil Vicente, Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda, João de Barros, Jorge Ferreira de Vasconcelos, Jorge de Montemor, António Ferreira. Nenhum livro podia sair, na segunda metade do século XVI, sem três licenças: a do Santo Ofício, a do Ordinário eclesiástico na diocese respetiva e a do Paço. O relator do Santo Ofício examinava o livro em manuscrito e obrigava o autor a alterá-lo, amputá-lo ou acrescentá-lo, antes de lhe conceder a fórmula «nada contém contra a nossa Santa Fé e bons costumes». E, assim, desde a segunda metade do século XVI até à reforma pombalina da censura, não podemos afirmar que conhecemos o texto original de uma obra impressa, mas somente um texto ao qual os censores anuíram. A impressão, a venda, a herança e a entrada de livros vindos do estrangeiro estavam sujeitas a apertada vigilância, incluindo inspeções domiciliárias, declarações periódicas obrigatórias e as mais graves penalidades, com recompensa de denúncias secretas à custa dos bens confiscados.
         Aos efeitos da Contra-Reforma vieram juntar-se, a partir de 1581, os da união com Espanha. Do primeiro resultou murcharem as promessas do Humanismo. O segundo teve como consequência o desaparecimento da corte de Lisboa, o foco literário mais estimulante do País. Os homens de letras e artistas, que até então viviam sobretudo da munificência régia, procuraram a proteção da corte de Madrid, ou acolheram-se ao mecenato das maiores casas senhoriais, como as dos condes de Vila Real e dos duques de Bragança. Outros viveram à sombra das ordens religiosas a que pertenciam, tratando uma temática predominantemente devota. O teatro, o grande género das cortes monárquicas do século XVII, decaiu após as criações de Gil Vicente e António Ferreira. Na lírica e na épica, os padrões renascentistas mal se renovaram. Na prosa, o primeiro plano da cena é ocupado pelos cronistas das diversas ordens religiosas, quer se ocupem da história do Reino, quer da dos conventos e santos respetivos. Tirante os discípulos dos quinhentistas refugiados em várias «cortes na aldeia», o clero reforça a posição predominante na produção literária.
         A Universidade de Coimbra é dominada pelos Jesuítas, embora as outras principais ordens religiosas tenham acesso às suas cátedras. Durante o século XVII atinge o seu apogeu a «escola conimbricense», que é uma tentativa para adaptar a Escolástica e o Aristóteles dos Escolásticos à problemática mais recente. A universidade jesuíta de Évora é outro foco importante de Teologia escolástica.
         O ensino universitário jesuíta, de início razoavelmente actualizado e eficiente, decai à medida que se aproxima e avança o século XVII, convertendo-se os tratados universitários em manuais, e estes em postilas sem autoria responsável, equivalente às sebentas no nosso tempo.
         Além do ensino universitário, os Jesuítas dominam, em geral, com os seus colégios de Artes, os Estudos Menores, ou preparatórios, em toda a extensão do império da Casa da Áustria, através de numerosas escolas onde se educam tanto a aristocracia de sangue como a burguesia. Nesses colégios, entre os quais se destacam o Colégio das Artes de Coimbra e o de Santo Antão de Lisboa, além de noções de Matemáticas e Geometria necessárias à construção ou manobra naval, à vida militar, etc., ministra-se principalmente uma cultura geral que, embora adoptando as formas da erudição humanística, era escolástica na sua inspiração mais profunda. A Ratio Studiorum, regulamento pedagógico de todas as escolas jesuítas (1599), tem em vista desenvolver a expressão oral e escrita em latim, a capacidade de disputa e de exibição literária em público, através de sabatinas, concursos de emulação escolar, récitas, representações teatrais, proscrevendo expressamente todo o magistério ou prática escolar que favoreça a curiosidade intelectual, o gosto da novidade, o espírito crítico. Aristóteles, base de todo o ensino, deve ser interpretado segundo os comentadores consagrados, especialmente S. Tomás.
         Diferentemente do que sucede em Espanha, o papel cultural das outras ordens religiosas é em Portugal, nesta época, modesto em comparação com o dos Jesuítas. Devem-se no entanto aos Cistercienses de Alcobaça, aos Dominicanos, aos Franciscanos e a outros, numerosas hagiografias, histórias monásticas, histórias nacionais, que constituem o grosso da produção impressa em língua portuguesa no século XVI.
         Convém ter bem presente que sob o governo dos Filipes são, mais do que nunca, bilingues não só os autores como o público português. Significativo é que o Quijote de Cervantes tenha duas edições em Lisboa no próprio ano da sua primeira edição; e que a primeira edição do Guzmán de Alfarache, 2.ª parte, de Mateo Alemán, seja igualmente lisboeta. Esboça-se desta forma uma tendência a dar ao castelhano, língua geral da Península, preponderância no teatro e nos géneros de grande circulação, como o romance, ficando o português reduzido à condição de língua regional. Tendência passageira, resultante da ausência de uma corte régia em Lisboa, e que pode ter contribuído para a decadência ou falta de continuidade do romance e do teatro em língua portuguesa.

A. J. Saraiva, Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa (adaptado)

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

O Renascimento em Portugal - Generalidades

         Apesar da dinâmica que se fez sentir na sociedade portuguesa a partir do século XV, do impacto dos Descobrimentos na mudança das mentalidades e da contratação de humanistas estrangeiros por parte de monarcas portugueses a partir do reinado de D. Afonso V, o Renascimento chegou tardiamente ao nosso país. Observe-se, por exemplo, como a arquitetura nunca se chegou a impor verdadeiramente, em razão da influência do estilo gótico, que se prolongou até ao reinado de D. Manuel e esteve na origem do estilo manuelino, uma espécie de modernização renascentista do gótico. Somente no reinado de D. João III (1521 – 1557) se constituíram edifícios marcadamente renascentistas, como a Igreja de Nossa Senhora da Graça em Évora, a Misericórdia de Beja, as sés de Miranda do Douro, Leiria e Portalegre e um dos claustros do Convento de Cristo em Tomar.

         Politicamente, durante o período de vida de Camões (1524 ? ‑ 1580), reinaram em Portugal D. João III, D. Sebastião e D. Henrique. Camões assistiu ao fim do ciclo dos Descobrimentos, que foram anteriormente, simultaneamente, uma das causas e consequências do espírito renascentista. Contribuindo para a abertura de novos horizontes ao homem europeu, os Descobrimentos determinaram um conjunto de transformações:


         Aproximadamente doze anos após o nascimento de Camões, surge em Portugal o Tribunal da Inquisição. Em 1531, regista-se um grande terramoto no reino, ficando destruídas povoações inteiras. A desproporção entre a escassez de recursos humanos e a vastidão geográfica das terras descobertas, a sucessão de naufrágios (o de Sepúlveda foi em 1522), a derrota em Alcácer Quibir em 4 de agosto de 1578 contribuíram fortemente para a queda do nosso império. Em suma, é lícito concluir que o tempo biográfico de Camões corresponde à trajetória política portuguesa, que culmina com a perda da independência em 1580.

Renascimento - Contexto português

         Acentua-se, após a descoberta do caminho marítimo para a Índia, o processo de concentração do poder político e económico sob a chefia do rei, iniciado com as campanhas do Norte de África e a exploração do ouro da Mina. A exploração económica do ultramar faz-se grandemente em regime de monopólio da Coroa. Apesar dos progressos da burguesia rural e comercial desde o século XIV, ela não conseguiu evitar que as novas expansões económicas fossem na maior parte absorvidas como renda feudal, sob formas variadas (rendas da colonização insular e brasileira, monopólios dos "resgates" e "tratos" ultramarinos, monopólios de produção interna sujeita a direitos "banais", e, finalmente, administração da Coroa a favor duma oligarquia), o que dificultou a acumulação do capital propriamente dito e seu posterior investimento na agricultura e, em geral, na produção interna.
         Esta espécie de monopólio comercial ultramarino a favor da nobreza palaciana encontra dificuldades: vícios internos do seu funcionamento, ataques vindos de Holandeses, Franceses, Ingleses, aliados por vezes no Oriente a populações locais, que dificultam cada vez mais o domínio militar das estradas e feitorias. O sistema entra em crise por meados do século XVI. D. João III é obrigado a evacuar algumas praças marroquinas. Realizam-se tentativas para descobrir novas minas de ouro ou prata na América e na África, mas volta-se depois ao projecto da guerra africana, tendo em mira a ocupação do reino de Fez. O desastre de Alcácer Quibir vem agravar a bancarrota económica com o colapso militar e político. A união com Castela apareceu finalmente à maior parte da camada dirigente como uma saída. E, assim, a Coroa portuguesa integra-se, desde 1580, no sistema de hegemonia espanhola, que se mantém até finais da Guerra dos Trinta Anos, cerca de meados do século XVII, como uma extensa coligação de coroas, distintas mas acumuladas sobre a mesma cabeça imperial ou ligadas entre si pela consanguinidade dos monarcas Habsburgos.
         No entanto, mesmo dentro de Portugal e Espanha, a burguesia mercantil não deixava de progredir, desafiando o monopólio do Estado e o poder da nobreza. Pouco a pouco domina a praça de Lisboa e o comércio entre o ultramar e a Europa. Grande parte destes homens de negócios descende dos judeus convertidos à força em 1496 e efetivamente assimilados. Daqui tiram pretexto os círculos dirigentes para instituir a Inquisição (1536), em teoria dirigida sobretudo contra a prática clandestina do judaísmo. Graças ao Santo Ofício, estabeleceu-se a discriminação contra os «Cristãos-Novos», verdadeiros ou supostos descendentes dos Judeus, que eram grande parte dos "homens de negócios", e tentou-se impedir o acesso deles a postos de direção no Estado, na Igreja e até na Universidade; ao mesmo tempo que, através do fisco inquisitorial, se expropriava uma parte dos seus bens. Esta perseguição foi contraproducente, pois teve, entre outros resultados, o de que muitos cristãos-novos emigraram e constituíram uma rede internacional com núcleos na Holanda, na França, na Inglaterra, no Brasil, no Peru, na África e na Índia, pelas malhas da qual passava uma grande parte do comércio mundial. Através destas relações, a burguesia mercantil portuguesa tende a ganhar um carácter cosmopolita.

 Fonte: História da Literatura Portuguesa, A.  J. Saraiva e O. Lopes

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Renascimento - Origem

·         O Renascimento é «um movimento cultural que, articulado com fatores sociais, económicos, políticos e religiosos, criou uma profunda de dinâmica de mudança na Europa dos séculos XV e XVI». É um movimento de recuperação da cultura greco-latina, cuja designação se ficou a dever a uma certa oposição à Idade Média, considerada, erradamente em parte, como uma «época de trevas» pelos homens do Renascimento. Nas palavras de António José Saraiva e Óscar Lopes, o Renascimento é o período que caracterizado pela «adoção das formas artísticas greco-latinas e a assimilação do espírito que as anima», o que sugere que estamos perante uma aceitação e não uma ressurreição das formas clássicas, visto que a ressurreição supõe a morte e as formas greco-latinas nunca morreram. Com efeito, durante a Idade Média leram-se Homero e Virgílio, comentaram-se as obras de Aristóteles e Platão, estudaram-se as línguas grega e latina.
     ·         O berço do Renascimento foi a Itália do século XV, nomeadamente cidades como Florença, Génova e Veneza, não obstante alguns sinais de mudança se terem começado a sentir no final da Idade Média, em determinados centros intelectuais europeus.
     ·         Esta origem explica-se pelo facto de, sobretudo em Florença, se ter formado uma elite de políticos e intelectuais que, enriquecida pelo comércio, esteve na génese de um movimento profundo de renovação cultural.
     ·         Ainda em Florença, é de destacar o papel da família Médicis ao longo do século XV, família essa que governou a cidade e se constituiu como mecenas de inúmeros artistas, o que fomentou o desenvolvimento das letras e das artes. Durante o século XVI, membros dessa família dominaram o papado, o que fez com que Roma se tornasse o novo centro de irradiação do Renascimento.
     ·         O movimento renascentista acabou por e expandir por toda a Europa – tendo como base a Itália e a Flandres, outro centro de comércio e desenvolvimento artísticos ‑, tendo atingido o auge nas primeiras décadas do século XVI.
     ·         Por outro lado, durante o período do Renascimento, a Europa assistiu ao surgimento de cortes luxuosas, de estados poderosos e de forte centralização do poder. Reis e papas interessaram-se pela cultura, pelo que se rodearam de artistas, edificaram palácios e igrejas que ornamentaram com pinturas e esculturas, muitas vezes contendo o retrato do patrono e / ou de familiares seus.
     ·         A riqueza, aliada ao desejo de promoção e notoriedade, possibilitou o investimento na arte por parte de ricos comerciantes e de altos dignitários da Igreja. Em simultâneo, o mecenato alastrou a diversas cortes europeias.
     ·         A difusão do Renascimento pela Europa ficou a dever-se, em larga medida, às viagens e à troca de correspondência encetadas pelos artistas e intelectuais da época, favorecendo assim a difusão de ideias.
·         Esse grupo de letrados desenvolveu uma intensa atividade intelectual distribuída por diferentes áreas:
·         Pedagogia ‑ propunham:
·        a leitura e o comentário dos textos de autores clássicos para apreensão do seu significado preciso;
·        a introdução de matérias novas, como a História, no conjunto das disciplinas existentes;
·        a introdução, nos estudos, das obras de autores científicos da Antiguidade.
·         Sociedade ‑ defendiam:
·        a escolha dos dirigentes segundo o saber e a capacidade;
·        a condenação da guerra;
·         Literatura:
·        adotaram como modelos os géneros literários, as formas poéticas, os recursos estilísticos cultivados pelos antigos autores gregos e romanos;
·        adaptaram as línguas modernas ao estilo antigo.
     ·         Por outro lado, foram vários os fatores que contribuíram para a difusão deste novo espírito:
·         O desenvolvimento do comércio, das atividades industriais e das cidades e, portanto, de uma sociedade mercantil;
·         A descoberta da tipografia, graças a Gutenberg, que se constituiu como um meio prodigioso para a difusão das ideias e da informação, associada ao crescimento de um público a quem já não satisfazia a reprodução manuscrita do livro, com todos os constrangimentos que acarretava;
·         A descoberta do caminho marítimo para a Índia e para a América;
·         O encontro de civilizações desconhecidas, como a chinesa, facto que levou à modificação das conceções acerca do planeta, dos costumes e das crenças;
·         As invenções e aperfeiçoamentos técnicos, como a artilharia ou os novos processos de navegação ou de exploração das minas.
·         Verifica-se, por isso,
·         o alargamento da curiosidade a vários aspetos do património cultural antigo (o saber prático ou especulativo, o lucro e a operosidade mercantil, a inteligência e o corpo humano, a vida terrena);
·         a difusão da cultura clássica pelas novas técnicas de produção do livro, por meio da edição dos clássicos greco-latinos e das obras de análise e interpretação dos humanistas.

Bibliografia:
» Manual Plural 12,
» Manual Português +, Areal Editores
» História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes;
» História da Literatura

Aspetos culturais: Renascimento, Humanismo e Classicismo

         O desenvolvimento do comércio, das atividades industriais e das cidades relaciona-se com o grande movimento que se designa pela palavra Renascimento em sentido lato. A velha cultura clerical não consegue satisfazer as novas necessidades e aspirações culturais. E alguns grandes acontecimentos, aparentemente súbitos, mas na realidade preparados por um longo processo, transformam rapidamente o horizonte mental dos grupos sociais mais dinâmicos.
         A descoberta da tipografia e a invenção da imprensa em meados do século XV, atribuída a Gutenberg, é estimulada pela existência de um público em crescimento, para o qual já não bastava a reprodução manuscrita do livro. Essa invenção acelerou prodigiosamente a difusão dos livros, das ideias e das notícias, e constituiu-se em poderoso fator de transformação ideológica.
         O descobrimento do caminho marítimo para a Índia e o da América ‑ ambos rapidamente divulgados pela imprensa ‑, assim como o encontro de civilizações desconhecidas, como a chinesa, modificam as concepções multisseculares do europeu acerca do planeta, dos costumes e das crenças.
         Outras invenções e aperfeiçoamentos técnicos, como a artilharia, os novos processos de exploração de minas, etc., mostram as possibilidades de domínio da natureza, abrindo caminhos para a ciência conexamente matemática e experimental, que será um facto no final do século XVI com os trabalhos de Galileu.
         Não surpreende por isso que, sobretudo antes de começarem e depois de terminarem as lutas religiosas que ensanguentaram os meados do século XVI, principie a esboçar-se um moderno ideal de sociedade, sob a alegoria, por exemplo, de uma distante cidade quimérica e racionalizada, sem tribunais nem violência ‑ a Utopia de Tomás Morus (a que se seguiram, mais tarde, a Cidade do Sol, escrita em 1602 na prisão por Campanella, e a Nova Atlântida, 1627, de Francisco Bacon).
         É neste contexto que se torna possível uma assimilação mais ampla da cultura greco-latina. Embora alguns autores latinos não fossem ignorados antes do século XV (especialmente Séneca, Cícero e Ovídio) e muitos lugares-comuns literários da Antiguidade tivessem feito caminho até à literatura cortês através das obras do clero medieval, certas facetas da cultura clássica eram inassimiláveis pelo mundo feudal e agrário. O desenvolvimento da sociedade mercantil e de toda uma cultura ligada à sua experiência põe em causa a síntese doutrinária lentamente elaborada pelo clero das universidades nos séculos imediatamente anteriores, e um dos efeitos desta situação é o alargamento da curiosidade a outros aspetos do património cultural antigo em que, contrariamente à Escolástica, se dignificassem as atividades civis, o saber prático ou especulativo em diretrizes teológicas, o lucro e a operosidade mercantil, a inteligência e até o corpo humano, a vida terrena. Pouco a pouco, o esquema teológico da Criação, Queda e Redenção serve de modelo a este outro: Luzes greco-romanas, Trevas "góticas" e monaicas. Daqui a designação de Renascimento, que só mais tarde se começou a usar explicitamente em relação ao Quattrocento (século XV italiano) e a uma parte do século XVI europeu de demarcação problemática.
         Os promotores deste movimento são os Humanistas, letrados cuja actividade se exerce geralmente fora da hierarquia clerical, e que constituem um grupo cada vez mais numeroso. A palavra humanismo com que se designou este movimento, inspirada pelo conceito de humanitas (o da humanidade, ou qualidade humana, como cultura e estrutura moral) de Cícero, exprime a crença num conjunto de valores morais e estéticos universalmente humanos, os quais se achariam definidos tanto nas Escrituras e na Patrística como na cultura profana da Antiguidade.
         Já Petrarca, herdeiro da poesia provençal, viaja incansavelmente em busca de códices latinos. Boccaccio (1313-1375), Poggio (1380-1459), Alberti (1404-1472) e outros letrados italianos descobrem e dão a conhecer textos ignorados de Tácito, Cícero, Quintiliano, Tito Lívio. Prelados bizantinos fixados em Itália por ocasião dos concílios quatrocentistas, outros intelectuais de Bizâncio, posteriormente fugidos aos Turcos, e eruditos italianos, como Filelfo, e Lorenzo Valla (1405-1457), criador da filosofia clássica ‑ , contribuem para a revelação da língua e da literatura helénicas, quase completamente ignoradas no Ocidente medieval.

Renascimento - A Europa - Aspetos sociais

         Do final do século XV a meados do século XVI, a indústria desenvolve-se para além dos quadros corporativos das cidades e há um surto de invenções e melhoramentos técnicos, favorecidos pela procura crescente de mercadorias. Os senhores feudais apropriam-se tanto quanto podem de terras comunais, reduzindo muitos servos ou colonos a assalariados e produzindo para o mercado. O aumento do volume de trocas, implicando o da circulação monetária, traz como resultado a procura de ouro, prata e outras mercadorias preciosas. Intensifica-se o trabalho mineiro e buscam-se minas, quer dentro quer fora da Europa. O descobrimento da prata na América e do caminho marítimo para a Índia vêm ao encontro desta necessidade de acréscimo dos meios de troca, e provocam uma alta de preços, ruinosa para os que apenas vivem de foros e serviços feudais.
         Tornam-se possíveis grandes acumulações de capital e operações bancárias à escala de toda a Europa e respetivos interesses ultramarinos. Formam-se grandes casas financeiras, como os Fugger e os Welser. Descobrem-se meios de drenagem de capitais, como o empréstimo público.
         Estas formas de concentração e mobilização dos meios monetários servem de base aos grandes estados nacionais e até supranacionais, como o reino de França, o império de Carlos V (dependente da casa Fugger e das minas de prata) e o império português (dependente do ouro da Mina e da pimenta). Os monarcas, recorrendo largamente ao empréstimo, consumindo em massa material de guerra, onde já figurava a artilharia, oferecendo garantias de diversa ordem, estimulam fortemente o crescimento do capitalismo mercantil. Por vezes a realeza favorece a burguesia mercante; outras vezes, ajudada pela concentração do poder económico e político, atua como vértice de uma aristocracia militar e administrativa, na sua maior parte oriunda da aristocracia agrária.
         Os bens feudais da Igreja dão origem a constantes conflitos entre a Igreja e os príncipes, que tendem a chamar a si, no todo ou em parte, o poder religioso e os bens eclesiásticos, quer separando-se de Roma, como Henrique VIII de Inglaterra, quer arrancando-lhe, como o rei de França, concessões importantes.
         Com o incremento do volume da produção, sob o estímulo do comércio europeu e intercontinental, acelera-se o ritmo de desenvolvimento de algumas cidades, especialmente no Reno, no Báltico e na Flandres. A burguesia industrial e comercial destas cidades resiste às tentativas de dominação empreendidas por Carlos V e por outros príncipes. Ao mesmo tempo, o aumento da exploração agrícola, em que se lançam alguns senhores feudais, agrava a situação dos camponeses e provoca insurreições como a de 1525 na Alemanha.
         Estas circunstâncias facilitaram a propagação da heresia religiosa desencadeada pelo protesto de Lutero contra a venda de indulgências, em 1517, que inicia o movimento de contestação da Igreja de Roma que ficaria conhecido por Reforma e que acabaria por dividir os países europeus em católicos e protestantes. Os escritos de Lutero e outros protestantes tornaram-se rapidamente conhecidos, graças à recente invenção da imprensa. Relembremos que uma das suas ideias mais polémicas foi a preconização da livre interpretação dos textos bíblicos (é sob a sua direção que sai a primeira tradução da Bíblia em alemão). A burguesia das cidades, desejosa de se libertar da tutela eclesiástica, apoiou, em grande parte, o movimento. O mesmo fizeram os príncipes alemães, que cobiçavam os bens feudais da Igreja. Massas de camponeses, artesãos e assalariados das cidades insurrecionavam-se em nome do Evangelho contra a complexa formação social ‑ senhoria e mercantil ‑ que os oprimia. Mas Lutero condenou os levantamentos populares.
         A Igreja atravessa então um momento difícil. O rei de Inglaterra separa-se do Papa; o de França toma uma atitude ambígua; e mesmo os príncipes favoráveis ao Papa desacatam a Santa Sé, como Carlos V, cujo exército em 1527 saqueia Roma, saque que revelou até que ponto a religião se sujeitara a interesses dinásticas e, em geral, políticos e sociais.
         A necessidade duma reforma é geralmente admitida, até por alguns cardeais. Existe uma grande corrente que, sem pôr em discussão a autoridade do Papa, preconiza a emenda dos abusos e a interiorização do sentimento religioso. Essa corrente, que tem o seu intérprete máximo em Erasmo de Roterdão, chegou a aparecer como um compromisso possível entre Luteranos e «Papistas».
         Entretanto, a cultura e o saber científico desenvolvem-se. Exemplo desse desenvolvimento é a defesa, em 1543, na Polónia, pelo astrónomo Copérnico, da teoria do heliocentrismo, ignorada, porém, durante 72 anos, até Galileo a confirmar.
         Após uma época de anarquia e de indecisão, define-se a nova fisionomia política e religiosa da Europa. No concílio de Trento (1545-63), cortam-se as pontes entre os dois fragmentos da antiga cristandade: a Península Ibérica torna-se o mais forte baluarte do mundo católico; as cidades do Reno, do Báltico e do mar do Norte, o eixo do mundo protestante. A França está dividida entre um e outro. No fragmento católico desenvolve-se uma reacção conhecida pelo nome de «Contra-Reforma», que consiste, sob seu aspecto negativo, numa repressão por meios coativos de todas as manifestações culturais suspeitas de heterodoxia, incluindo manifestações toleradas durante épocas anteriores; e sob o aspecto positivo, numa tentativa de recuperação da Escolástica e no desenvolvimento de formas exteriores de devoção. A Inquisição (romana, espanhola e portuguesa) torna-se o principal instrumento de representação ideológica. À Companhia de Jesus cabe o papel principal na difusão do novo catolicismo "tridentino". No mundo protestante, as condições foram, em geral, mais favoráveis à expansão da ciência, assim como à difusão de uma cultura laica.
         As duas mentalidades afrontar-se-ão nas guerras com que Filipe II tenta submeter a Inglaterra e as cidades da Flandres e Países Baixos. O império espanhol, abrangendo, além da Espanha, Portugal, domínios nas Índias Ocidentais, o Brasil, grande parte da Itália, etc., funcionará em benefício de uma aristocracia de sangue, servida por uma poderosa organização militar e que possui, além da maior parte da terra em Espanha, postos dominantes no comércio transoceânico e os saques e tributos de guerra ou domínio. A defesa da fé católica é o motivo mais frequentemente invocado por esta aristocracia feudal para as guerras no exterior e as confiscações ou perseguições no interior. Em contraste, os Países Baixos aparecem como uma federação de cidades burguesas invocando princípios que mais tarde se diriam democráticos, como o direito ao autogoverno e à liberdade de crença.

A. J. Saraiva, Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa
(Texto adaptado)

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

A Geração de 70 e a Questão Coimbrã


& O Realismo e a Geração de 70







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            1. A Geração de 70

            A segunda geração romântica, geração ultrarromântica, liga-se ao período da Regeneração, fase de estabilização aparente da vida social e política, conseguida através da:
. eliminação da ala esquerda do Liberalismo;
. criação duma oligarquia que deturpou as reformas sociais de Mouzinho da Silveira, degradou os ideais do Liberalismo e deu lugar a uma nova classe dominante.
            Esta geração romântica, despojada da pureza dos ideais que tinha caracterizado a primeira geração, vivia num compromisso assumido e proveitoso com o governo, ocupava cargos privilegiados, dominava a administração pública, a imprensa, a política e a literatura. Tudo parecia querer traduzir a vontade e os princípios orientadores do governo. A Literatura é mais do que nunca um fenómeno oficial, marcado pelo conservadorismo ideológico e pela deterioração duma estética cada vez mais estereotipada.
            O paternalismo / autoritarismo destes valores tem em Castilho o seu representante máximo. Este poeta ultrarromântico, com uma formação neoclássica e conservadora, é a figura venerada, o patriarca dos ultrarromânticos a cuja apreciação sujeitam toda a produção literária com o objetivo de obterem a sua adesão, a sua avaliação favorável, condição suficiente para os impor junto dos editores e do público em geral. Castilho alimentou este clima, este estado de espírito medíocre que nada tinha de promissor e de fecundo, tornando-se um dos grandes responsáveis pela decadência do Romantismo português e pela rutura polémica que lhe pôs fim.
            Esta situação literária, que tem como suporte o enfeudamento ao poder, o elogio mútuo, o protecionismo e a consequente falta de qualidade e de criatividade, dá azo a que um grupo de jovens intelectuais, ligados à Universidade de Coimbra assuma a coragem da "rebelião" contra os literatos de Lisboa e o seu mestre e protetor. Este grupo ficou a ser conhecido por Geração de 70.
            A Geração de 70 é, basicamente, um grupo de jovens intelectuais estudantes na Universidade de Coimbra, do qual fazem parte Antero de Quental, Eça de Queirós, Teófilo Braga, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro e outros, que surge a contestar os excessos do Ultrarromantismo, representados por uma plêiade de escritores sob a égide de António Feliciano de Castilho.



            2. Questão Coimbrã

            O primeiro sinal da renovação literária e ideológica foi dado na Questão Coimbrã, onde se defrontaram os defensores do statu quo literário e um grupo de jovens escritores estudantes em Coimbra, mais ou menos entusiasmados pelas leituras e correntes estrangeiras.
            O motivo da "Questão" foi aparentemente trivial. O conjunto de acontecimentos que a rodearam pode resumir-se da seguinte forma:
-» Publicação, em 1862, do poema D. Jaime, de Tomás Ribeiro;
-» A Conversação preambular, escrita, em 11 de Julho de 1862, por António Feliciano de Castilho, para apadrinhar o poema D. Jaime, ultrapassa todos os limites, traçando um confronto entre essa obra e Os Lusíadas, considerando-a uma epopeia superior à epopeia camoniana.
-» Leitura a Castilho dos poemas, até então inéditos, de Antero e Teófilo, que os acolheu com hiperbólica ironia.
-» Escaramuças jornalísticas entre Pinheiro Chagas, crítico dos «coimbrões», e Germano Meireles, seu apologeta.
-» Em agosto de 1865, Antero de Quental publica Odes Modernas, influenciado por escritores e filósofos franceses, afirmando no prefácio que “A poesia é a voz da Revolução”.
-» Em 27 de setembro de 1865, Castilho (uma espécie de padrinho oficial de escritores mais novos, tais como Ernesto Biester, Tomás Ribeiro ou Pinheiro Chagas, à volta do qual se constelou um grupo de admiradores e protegidos ‑ «escola do elogio mútuo», chamar-lhe-á Antero ‑ em que o academismo e o formalismo anódino das produções literárias correspondiam à hipocrisia das relações humanas, e em que toda a audácia tendia a neutralizar-se), em carta ao editor António Maria Pereira que serve de posfácio ao Poema da Mocidade, ingénua biografia lírica em quatro cantos, típica do saudosismo ultrarromântico, escrita por Pinheiro Chagas, aproveita a oportunidade para fazer o elogio deste escritor, recomendando Pinheiro Chagas ao rei D. Pedro V para a cadeira, então vaga, de Literaturas Modernas no Curso Superior de Letras, e censurar um grupo de jovens de Coimbra, acusando-os de exibicionismo livresco, de obscuridade propositada e de tratarem temas que nada tinham a ver com a poesia. Os escritores mencionados eram Teófilo Braga, autor dos poemas Visão dos Tempos e Tempestades Sonoras (futuro candidato a essa cadeira de Literatura); Antero de Quental, que publicara Odes Modernas; e Vieira de Castro, um jovem e verboso deputado.
-» Antero responde, em novembro de 1865, com um folheto intitulado Bom Senso e Bom Gosto (as duas virtudes que Castilho negara aos dois academistas). Nele defendia a independência dos jovens escritores; apontava a gravidade da missão dos poetas na época de grandes transformações em curso, a necessidade de eles serem os arautos do pensamento revolucionário e os representantes do «Ideal»: ridicularizava a futilidade, a insignificância e o provincianismo da poesia de Castilho. Estava despoletada a Questão Coimbrão e estavam também lançadas as sementes do Realismo em Portugal.

            Os sequazes de Castilho replicaram de imediato e os folhetos começaram a chover de ambos os lados. Quental arremeteu com novo opúsculos nesse mesmo ano, sob o título A dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais, enquanto Teófilo replicou com Teocracias Literárias (1866). Castilho não reagiu publicamente, mas teve como defensores figuras ilustres. Um deles foi Ramalho Ortigão, que mais tarde se haveria de integrar no grupo de Coimbra, mas que nesta altura saiu à liça como paladino de Castilho em Literatura de Hoje (1866), repreendendo Antero com ásperos adjetivos pelo seu desrespeito, o que provocou um duelo entre ambos. Note-se, porém, que nesse folheto Ramalho marcou uma posição de independência, criticando também a fuga de Castilho às lutas das ideias. Outro combatente das hostes de Castilho foi Camilo, que, em Verdades Irritadas e Irritantes (1866), com o seu temível sarcasmo polémico, veio atacar a nova geração.
            De notar que a Questão Coimbrã se alimentou de incompatibilidades literárias, que se foram juntando as sociais, políticas e filosóficas e, por último, as pessoais. Por exemplo, Antero e Teófilo não deixaram de causar estupefação com a brutalidade das alusões à idade e à cegueira de Castilho.



                        2.1. O significado da Questão

            A Questão, embora aparentemente literária, denunciava incompatibilidades mais profundas. De facto, os jovens universitários de 1865 reagiram contra a falsidade que representavam muitos outros aspetos da vida portuguesa, produto da adaptação das formas alienígenas do Liberalismo à velha estrutura tradicional do País. A revolta da Geração de 70 eclodiu num movimento político, filosófico e literário, cuja amplitude ultrapassou talvez a do próprio Romantismo.
            Este grupo que se sublevou contra Castilho era o mesmo que, acrescido de personalidades com tendências paralelas, havia de tratar, em 1871, nas Conferências Democráticas do Casino, de colocar Portugal a par da atualidade europeia, ligando-o "com o movimento moderno", estudando "as condições de transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa".
            Da ânsia de renovação cultural dos universitários dessa época dá Eça de Queirós uma boa ideia, ao relembrar a Coimbra do seu tempo: "Pelos caminhos de ferro que tinham aberto a Península, rompiam cada dia, descendo da França e da Alemanha (através da França), torrentes de coisas novas, ideias, sistemas, estéticas, formas, sentimentos, interesses humanitários. Cada manhã trazia a sua revelação, como um sol que fosse novo. Era Michelet que surgia, e Hegel, e Vico, e Proudhon; e Hugo tornado profeta e justiceiro dos Reis; e Balzac com o seu mundo perverso e lânguido; e Goethe, vasto como um universo; e Pöe, e Heine, e creio que já Darwin, e quantos outros!
            Naquela geração nervosa, sensível e pálida como a de Musset (por ter sido talvez como essa concebida durante as guerras civis) todas estas maravilhas caíam à maneira de achas numa fogueira, fazendo uma vasta crepitação e uma vasta fumarada!"
            De toda esta problemática, fácil se torna concluir que esta geração surgida à vida pública na famosa "Questão Coimbrã" avulta como uma das mais brilhantes constelações que a cultura portuguesa produziu em qualquer época.



            3. As Conferências do Casino

            Assim designadas por terem decorrido na sala alugada do Casino Lisbonense, as Conferências do Casino foram uma série de cinco palestras realizadas em Lisboa, na primavera de 1871, pelo chamado grupo do Cenáculo, constituído por jovens escritores e intelectuais de vanguarda (Geração de 70), que passaram a reunir-se em Lisboa depois de concluídos os seus estudos em Coimbra, restaurando a antiga fraternidade académica num Cenáculo com sede em casa de um deles. Do grupo faziam parte Antero, Teófilo, João Augusto Machado de Faria e Maia, Manuel de Arriaga, Eça de Queirós, e mais tarde Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, Adolfo Coelho, Augusto Soromenho, Guilherme Azevedo e Guerra Junqueiro.
            Das discussões do Cenáculo, em que se aliavam a literatura e a boémia, tinham saído de começo obras de pura ficção, como as últimas Prosas Bárbaras de Eça de Queirós e os «satânicos» Poemas de Macadam, atribuídos a um imaginário Carlos Fradique Mendes; a chegada de Antero vem disciplinar as leituras e os interesses e dar um objetivo mais preciso ao grupo.
            O grande impulsionador das Conferências foi Antero de Quental, que, a partir de 1871, regressando de viagens a França, América e à ilha de S. Miguel, logo começara a influir nos gostos e interesses do grupo, iniciando-o na leitura de Proudhon. A ideia das Conferências surgiu na Casa da Rua dos Prazeres, onde o Cenáculo reunia então. Antero e Batalha Reis alugaram a sala do Casino Lisbonense, no largo da Abegoaria, hoje de Rafael Bordalo Pinheiro. O jornal A Revolução de Setembro encarregou-se da propaganda. A 18 de maio surgiu naquele jornal um manifesto (que já fora distribuído em prospeto), assinado por doze nomes, onde se indicavam as intenções dos organizadores das chamadas Conferências Democráticas.



                        3.1. Programa das Conferências

       «Ninguém desconhece que se está dando em volta de nós uma transformação política, e todos pressentem que se agita, mais forte que nunca, a questão de saber como deve re­generar-se a organização social.
       Sob cada um dos partidos que lutam na Europa, como em cada um dos grupos que constituem a sociedade de hoje, há uma ideia e um interesse que são a causa e o porquê dos movimentos.
       Pareceu que cumpria, enquanto os povos lutam nas revoluções, e antes que nós mesmos tomemos nelas o nosso lugar, estudar serenamente a significação dessas ideias e a legitimidade desses interesses; investigar como a sociedade é, e como ela deve ser; como as Nações têm sido, e como as pode fazer hoje a liberdade; e, por serem elas as formadoras do homem, estudar todas as ideias e todas as correntes do século.
       Não pode viver e desenvolver-se um povo, isolado das grandes preocupações intelec­tuais do seu tempo; o que todos os dias a humanidade vai trabalhando, deve também ser o assunto das nossas constantes meditações.
       Abrir uma tribuna, onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam este momento do século, preocupando-se sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos.
       Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada;
       Procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam, na Europa;
       Agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna;
       Estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa;
       Tal é o fim das Conferências Democráticas.
       Têm elas uma imensa vantagem, que nos cumpre especialmente notar: preocupar a opinião com o estudo das ideias que devem presidir a uma revolução, de modo que para ela a consciência pública se prepare e ilumine, é dar não só uma segura base à constituição futura, mas também, em todas as ocasiões, uma sólida garantia à ordem.
       Posto isto, pedimos o concurso de todos os partidos, de todas as escolas, de todas aquelas pessoas que, ainda que não partilhem as nossas opiniões, não recusam a sua atenção aos que pretendem ter uma ação ‑ embora mínima ‑ nos destinos do seu país, expondo pública mas serenamente as suas convicções e o resultado dos seus estudos e trabalhos.

            Lisboa, 16 de maio de 1871 ‑ Adolfo Coelho, Antero de Quental, Augusto Soromenho, Augusto Fuschini, Eça de Queirós, Germano Vieira de Meireles, Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins, Manuel de Arriaga, Salomão Saragga, Teófilo Braga."



                        3.2. Significado das Conferências

            Encaradas no seu conjunto, as Conferências do Casino integram-se num largo, embora vago, plano de reforma da sociedade portuguesa e representam entre nós a afirmação dum movimento de ideias que contagiara os intelectuais portugueses, através dos livros vindos de fora. Era o historicismo, o interesse pelas ciências políticas e sociais, a crítica positivista à maneira de Taine, o evolucionismo de Darwin, um alvorecer de interesse pelas teorias de Marx e Engels, os ecos da Internacional, o realismo em Arte como expressão dum novo ideal de vida, a crença no progresso das sociedades, conseguido através das ciências ‑ das positivas, cujo prestígio crescia a cada instante. E, embora as preleções de Soromenho e A. Coelho se tenham mantido alheias a este espírito revolucionário, e apenas tenham marcado uma posição de ácido negativismo quanto às coisas portuguesas ‑ a verdade é que o espírito das Conferências do Casino foi este. Como Eça afirmava nas Farpas, «era a primeira vez que a Revolução sob a sua forma científica tinha em Portugal a sua tribuna».
            Para compreender todo o alcance das Conferências, convém notar que se estava então num ano de grandes acontecimentos ‑ 1871: remate da unificação de Itália, queda do II Império francês, guerra franco-prussiana, Comuna de Paris, que Antero e Guilherme de Azevedo aplaudiram publicamente. No plano interno, este é o ano em que a Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada em 1864, se estende a Portugal, com a cooperação de Antero. O principal promotor em Portugal desta organização, um empregado da livraria Bertrand, José Fontana, tem contactos com o Cenáculo, e participa, como organizador administrativo, nas Conferências.
            É fácil, desta forma, compreender a importância que lhe dedicaram as autoridades oficiais, até ao seu encerramento compulsivo por ordem do ministro do reino, António José de Ávila, após os ataques de jornais conservadores, que acusavam os conferencistas de intenções subversivas e de serem adeptos da Comuna. A motivação próxima da ordem de encerramento parece ter sido a de impedir a realização de uma conferência que ia pôr em causa a religião católica, constitucionalmente ligada ao Estado.

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