Português: Resultados da pesquisa para d. joão iii
A apresentar mensagens correspondentes à consulta d. joão iii ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens
A apresentar mensagens correspondentes à consulta d. joão iii ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Análise do poema "Reais Ausências", de Ana Luísa Amaral


             O sujeito poético aborda o tema da ausência das mulheres na História oficial e imaginária de Portugal e da Inglaterra, como fica bem evidente nos versos seguintes: “Não há rainhas, não. / Quando se fala em mitos, é sempre Artur / ou D. Sebastião”. Esta referência consecutiva aos reis Artur e Sebastião não é casual, dado que o mito construído em torno do soberano português se assemelha imenso ao do monarca de Camelot, na figura do rei que iria regressar para resgatar a pátria.

            Ao longo do poema, o «eu» enumera reis e rainhas, estabelecendo entre eles constantes conspirações, no sentido de evidenciar a escassa importância que é dada a elas, falemos da rainha santa Isabel – famosa pelo milagre das rosas –, comparada com Henrique VIII – famoso por ter casado seis vezes, por ter sido declarado soberano da nova Igreja Anglicana (fundada após a sua rutura com a Igreja Católica), por ter exercido o poder mais absoluto dentre os monarcas ingleses e pela peça homónima de Shakespeare –, seja comparando Maria da Escócia – uma soberana bela, instruída, culta e inteligente, condenada à morte pela filha de Henrique VIII, Isabel I, sua prima – a D. Dinis, marido da rainha portuguesa Isabel, famoso trovador e místico plantador do pinhal de Leiria, cuja madeira, de acordo com a Mensagem, serviria para construir as naus das Descobertas.

            Por outro lado, o sujeito poético parece sugerir que as figuras femininas teriam sido as responsáveis pela ruína dos reis míticos, Artur e Sebastião. De facto, de acordo com a História, Guinevere traiu Artur com Lancelot, um dos seus cavaleiros da Távola Redonda, enquanto D. Sebastião, por ser solteiro (correspondendo tal à ausência de uma mulher) e ter morrido em Alcácer Quibir, esteve na origem do fim da dinastia de Avis e da perda da independência nacional.

            A ausência da mulher assume particular relevância na já citada Mensagem, na qual são referidas unicamente D. Teresa, “Mãe de reis e avó de impérios”, e D. Filipa de Lencastre, o “Humano ventre do Império”, a que só génios concebia, o que equivale a dizer que as mulheres são importantes não pelos seus atos ou pelas suas qualidades, mas apenas pela função de mães, de terem concebido e dado à luz os reis de Portugal. Assim sendo, o papel das mulheres é reduzido à conceção, “como se a virtude da mulher pudesse ser medida pelas virtudes de seus filhos, como se esses filhos fossem uma continuação da mãe, não um começo em si.”(Rhea Willmer, in Ana Luísa Amaral e Ana Cristina César: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea em português, p.45).

            As rainhas deveriam ser, entre as mulheres em geral, especialmente férteis, visto que dependia delas o assegurar a descendência e os sucessores ao trono. Outra obra de referência, o Memorial do Convento, aborda, logo de início, esta premência de assegurar a sucessão. Com efeito, existe grande preocupação no círculo da corte por causa de a rainha, após quase dois anos de casamento, ainda não ter dado um filho a D. João V. A função da mulher é reduzida no romance, mais uma vez, a parir filhos, daí o narrador se referir a ela através de uma metáfora bíblica: “vaso de receber”.

            Voltando ao poema, a única figura feminina que assume relevância enquanto monarca é a rainha Vitória. É importante, neste contexto, salientar o facto de esta soberana ter assumido o trono unicamente pelo facto de, à época, não haver nenhum homem que sucedesse, por linha direta, ao rei George III, bem como a realidade de não ter assumido o poder em Hannover, onde vigorava a lei sálica (uma lei originária dos Francos Sálios, estabelecidos no Norte da França e da Bélgica atuais, que excluía as mulheres da sucessão à terra dos seus antepassados, por se considerar que, através do casamento, elas deixavam a sua família para integrar a do marido. Esta lei, que inicialmente se aplicava exclusivamente às sucessões privadas, graças a uma interpretação abusiva dos juristas, serviu mais tarde para as excluir da sucessão da coroa). Não obstante, o «eu» lírico destaca que “na forma de mandar, foi mais que homem”.

            É frequente, quando as mulheres que lideram governos exercem o poder de forma rígida e conservadora, compará-las a homens, como se fosse necessário que se masculinizassem para exercer esse poder. São exemplos disto a ex-primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher (apelidada de Dama de Ferro) e Golda Meir, em Israel. Esta comparação estará, eventualmente, relacionada com o facto de estas figuras não terem assumido, durante a sua governação, uma postura maternal relativamente ao seu povo nem “uma posição progressista esperada por muitos homens e mulheres que veem no conservadorismo uma forma de perpetuar as desigualdades, dentre as quais, as desigualdades entre homens e mulheres.” (Rhea Willmer, ibidem, p. 46). Deste modo, a rainha Vitória, mesmo não sendo uma monarca absolutista, acaba por ser comparada a um homem pela forma como exerceu o poder e pela rigidez em termos de normas sociais, vestuário e linguagem, traços evidenciados no poema por expressões como “toucados opressores” e “verso espartilhado e de costumes”.

            Perante isto, o sujeito poético parece procurar um modo feminino e diferente de exercer o poder num “reinado feminino e língua nova, / nariz torcido à guerra no saber ancestral / de entranhas próprias”, mas não encontra nenhum exemplo de tal: “não me lembro nenhuma”. Apesar de haver figuras como as rainhas Santa Isabel e Vitória, que exerceu o poder durante mais de sessenta anos, não existe nenhuma monarca mitificada pela maneira como exerceu o poder. Veremos como a História registará a longo reinado de Isabel II, de Inglaterra, recentemente falecida. A única exceção talvez seja Inês de Castro. Porquê? Em primeiro lugar, esta figura assumiu grande relevância literária (tal como os reis Artur e Sebastião, por exemplo), constituindo um dos mais importantes episódios de Os Lusíadas e servindo de base à escrita de uma tragédia, da autoria de António Ferreira. Em segundo lugar, foi coroada depois de morta. Em terceiro lugar, possui sobrenome próprio (Castro), dado que não chegou a casar com D. Pedro. Em quarto lugar, a sua mitificação não dependeu da sua função de mãe, visto que a conceção de filhos de um rei foi a consequência do seu amor por D. Pedro e das suas relações sexuais com o filho do rei (D. Afonso IV, que a mandou matar). Assim sendo, Inês de Castro é assassinada – e posteriormente mitificada – por não ter seguido o modelo de Nossa Senhora. Com efeito, esta concebeu o filho de Deus sendo virgem, para que o fruto do seu ventre fosse puro, sem a mancha do pecado do sexo, enquanto Inês satisfez os seus desejos sexuais femininos de um modo que só foi permitido às mulheres trazer a público e através de uma linguagem muito recentemente.

            Note-se, porém, que num outro poema, intitulado “Inês e Pedro: quarenta anos depois”, Ana Luísa Amaral traça um retrato muito cruel do casal. Assim, Inês é, quarenta anos depois, uma mulher velha e desdentada, enquanto o seu amado Pedro sofre de cãibras e o passado é mera fantasia ou imaginação. Um pouco à semelhança do que aconteceu com Diana de Gales, a morte prematura permite a Inês de Castro tornar-se um mito: ela está morta, mas permanece jovem e bela. Envelhecer e tornar-se um mito é algo extremamente difícil para as mulheres. Atente-se, por exemplo, no caso da atriz Greta Garbo, que abandonou a sua carreira em Hollywood, para ficar imortalizada no auge da sua beleza.

 

Bibliografia:

• FERNANDES, Maria Lúcia, As Palavras e as Coisas na Poesia de Ana Luísa Amaral.

• JUNQUEIRA, Maria Aparecida, Imagens: tempos espacializados na Poesia de Ana Luísa Amaral.

WILLMER, Rhea, Ana Luísa Amaral e Ana Cristina César: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea em português.
 

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Análise de "Meu senhor arcebispo, and'eu escomungado"

Assunto
 
            Esta é uma das três cantigas de que temos conhecimento que se focam na posição adotada pelos alcaides na célebre crise de 1245-1247 que levou à deposição de D. Sancho II.
            No caso vertente, o trovador associa-se àqueles que atribuíam à Igreja um papel determinante no que consideravam ser uma traição coletiva, a saber, a entrega dos castelos ao futuro D. Afonso III, colocando na boca do leal alcaide de Sousa a referência à excomunhão com que este teria sido brindado pelo arcebispo de Braga.
 
 
Tema: a sátira do arrependimento fingido de um ato de lealdade – a entrega do castelo sob ameaça de excomunhão.
 

Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª e 2.ª coblas) – Exposição do facto: a excomunhão do alcaide de Sousa.
 
2.ª parte (3.ª e 4.ª coblas) – Causa da excomunhão: a lealdade do alcaide, que entregou o seu castelo ao verdadeiro dono, D. Sancho II, e então finge-se arrependido do seu ato de lealdade e finge temer vir a morrer excomungado, procurando assim que lhe seja levantada a excomunhão.
 
 
Análise da cantiga
 
            O autor constrói o poema desenhando um caso hipotético em torno do alcaide de Sousa e do seu ato de contrição, onde manifesta o seu suposto arrependimento por se ter mantido leal aio seu soberano. Deste modo, o poeta critica, de forma mordaz, os que quebraram os laços de fidelidade vassálica, apontando o dedo ao clero por ter fomentado e protegido esse ato de traição para com o rei.
            A ironia percorre toda a composição, presente desde logo na súplica contrita e no arrependimento pelo ato de lealdade. É óbvio que só por ironia se pode suplicar absolvição por se ter sido leal. A lealdade constitui um ato de fidelidade aos compromissos assumidos e evidencia o sentido de retidão e de probidade do indivíduo que é leal, configurando um valor ético e um código em trono do qual se unem os elementos dos grupos feudais.
            Ao colocar a sua própria voz na voz do alcaide de Sousa, Diego Pezelho encena um discurso marcadamente sarcástico e impiedoso para todos os que traíram D. Sancho II e cederam às pretensões do Conde de Bolonha, coagidos pela ameaça da excomunhão por parte dos bispos.
            Assim, o sujeito poético da cantiga (o alcaide) dirige-se a um arcebispo (provavelmente o de Braga, D. João Viegas de Portocarreiro, um dos principais responsáveis pela deposição de D. Sancho II, integrando, por exemplo, a comitiva portuguesa que fora enviada a Lyon), pedindo-lhe absolvição, isto é, que lhe retire a excomunhão, por ter sido enganado pelo diabo a praticar um ato de lealdade. Ele tivera um castelo em Sousa, julgara agir corretamente, mantendo a fidelidade ao monarca, mas compreende agora que foi um pecado. No refrão, repetido quatro vezes, o alcaide roga ao bispo que suspenda a excomunhão. Para tal – socorrendo-se, neste ponto, do equivocatio – jurará que foi um traidor: “Soltade-m’, ai, senhor, / e jurarei, mandado, que seja traedor”. Porém, o facto de afirmar que jurará “mandado”, isto é, sob ameaça, livra-o da possível acusação de subserviência e deslealdade. Foi, por isso, que o trovador usou o conjuntivo «seja», em vez do indicativo «sou»: está implícita aí a ideia de subordinação e coação. Em contrapartida, pela expiação do pecado de lealdade e remissão da excomunhão, propõe-se jurar, «mandado», que é um traidor.
            A ironia é evidente: o que é afirmado no primeiro verso (“Meu senhor arcebispo, and’ eu excomungado”) é incongruente com o que surge nos seguintes: ninguém está à espera que alguém seja excomungado por ter sido leal nem que isso fosse um ato diabólico. Além disso, de acordo com o refrão, a absolvição derivaria de um ato de felonia que o alcaide encena ironicamente querer assumir.
            Por outro lado, é clara a intenção de criticar o ato de traição de quem alinhou com o clero e com as pretensões de D. Afonso, porque, ao fazê-lo, estaria a salvo da excomunhão. Neste contexto, assume grande relevância o primeiro verso da segunda estrofe (“Se traiçon fizesse”), que mostra como seria censurável a traição e como o poema se desenvolve em torno do arrependimento fingido do alcaide. Além disso, infere-se que a traição é um ato que se concretiza debaixo de um silêncio indigno e que, por ser tão censurável para quem o pratica, se procura emudecer: “nunca vo-la diria”.
            Nas restantes estrofes, o «eu» continua, irónica e dissimuladamente, a lamentar-se por ter sido excomungado, afirmando que defendeu e entregou o castelo ao seu legítimo «dono», convicto de que estava a fazer o que era correto (“gran cousa”), mas que, afinal, se arrependeu por não ter sido traidor.
            De acordo com Herlânder Gonçalves dos Santos (in D. Sancho II – Da deposição à composição das fontes literárias dos séculos XIII e XIV), «O escárnio explora a ambivalência irónica entre o fazer e o dizer, entre a conduta de um alcaide leal ao seu senhor, que se manteve fiel aos votos de vassalagem, que ignorou as resoluções eclesiásticas que incriminavam pela excomunhão essa fidelidade contrária aos interesses e deliberações da Igreja, e o dizer tão lamentoso quão desdenhoso da sua contrição: “Per meus negros pecados, tive um castelo forte / e dei-o a seu don(o), e ei medo da morte. / Soltade-m’, ai, senhor, / e jurarei, mandado, que seja traedor.” (vv. 13-16).
            Assim sendo, não custa concluir que um dos alvos da cantiga, se não o principal, é o poder eclesiástico, por forçar as consciências, neste caso dos alcaides, a aceitar as pretensões do futuro Afonso III. Note-se, todavia, que na composição não há qualquer referência explícita ao Conde de Bolonha, no entanto o tema e o assunto desenvolvidos focam, inequivocamente, o conflito de 1245 e a entrega dos castelos a D. Afonso, a coberto das deliberações do Concílio de Lyon.
            O outro alvo do poeta é a fidalguia militar que governava os castelos. Mais uma vez, as referências textuais a ela não são explícitas, contudo a referência ao alcaide de Sousa e à sua promessa (fingida e irónica) de traição para se libertar da pena de excomunhão não deixa dúvidas sobre quem está a ser visado: os nobres que se aliaram a D. Afonso e o clero que legitimou a traição a D. Sancho II.
 
 
Caracterização do alcaide
 
            O alcaide de Sousa apresenta-se como uma figura leal a D. Sancho II, recusando traí-lo e entregar o seu castelo a D. Afonso III. Astuto e irónico, finge-se arrependido da sua lealdade, procurando, deste modo, que lhe seja retirada a excomunhão. Ele coloca-se, pois, no papel de vítima, fazendo um discurso de aparente humildade e medo. Este mesmo discurso permite vislumbrar o do arcebispo, certamente autoritário.
            Assim, na sua figura confrontam-se duas situações: uma, de ordem religiosa: o alcaide não quer ser excomungado; outra, de cariz político: permanecer fiel e leal a D. Sancho II.
 
 
Classificação
 
            A composição poética é uma cantiga de escárnio, dado tratar-se de uma sátira direta (o alvo está identificado: o alcaide de Sousa), numa linguagem irónica e humorística, com uma finalidade moralizadora.
 
 
Forma
Estrofes: quatro quintilhas.
Métrica: versos de 12 e 6 (no refrão) sílabas métricas.
Rima:
- esquema rimático: aabb
- emparelhada
- consoante (excomungado”/”pecado”)
- rica (“excomungado”/”pecado”) e pobre (“Sousa”/”cousa”)
- grave (“excomungado”/”pecado”) e aguda (“senhor”/”traedor”)
Refrão: profundamente irónico, é através dele que o alcaide pede que o libertem da excomunhão, em troca de um arrependimento e juramento forçado e fingidos.
 
 
Recurso expressivos
Aliteração em s.
Pronomes e determinantes: sugerem uma reverência profundamente irónica pela autoridade eclesiástica (“Meu senhor arcebispo”).
Interjeição “Ai”: exprime um estado emotivo também ele fingido.
Vírgulas: permitem a bipartição do verso.
Paralelismo semântico e estrutural.
Verbos:
- tempos:
. presente: reflete a excomunhão e o pedido de libertação dela;
. pretérito: apresenta o ato que levou à excomunhão;
- modo: imperativo – traduz o pedido do alcaide no sentido de ser perdoado e libertado da excomunhão.
Ironia: figura predominante na cantiga, traduz o arrependimento fingido do alcaide pelo seu ato de lealdade. A ironia reside, pois, na interpretação às avessas das noções de fidelidade e traição.
Antítese entre lealdade e traição.
Apóstrofe: “Meu senhor arcebispo”.
 
 
Valor documental
 
            Esta cantiga assume grande importância, por causa das referências que contém a aspetos histórico-sociais do século XIII:
a) o ciclo dos castelos: conjunto de sátiras sobre a traição dos alcaides, durante o conflito que opôs D. Sancho a seu irmão, D. Afonso III, sátiras essas que defendem a fidelidade ao monarca deposto;
b) a deposição de D. Sancho II;
c) o poder da Igreja.
            A composição poética baseia-se em acontecimentos político-sociais contemporâneos: as lutas entre D. Sancho II e D. Afonso III. Embora se enchesse de prestígio na luta contra os mouros, D. Sancho II desgostou profundamente os membros do clero e alguns nobres. Em 24 de julho de 1245, o papa Inocêncio IV expendiu uma bula, pela qual o depunha do trono português e o atribuía a seu irmão, D. Afonso III, Conde de Bolonha.
            D. Sancho II lutou ainda durante algum tempo, ajudado por servidores leais, não obstante as excomunhões que contra eles lançaram o Arcebispo de Braga e os bispos de Coimbra e do Porto. No entanto, a maioria dos alcaides entregou-se a D. Afonso III, ato que, junto da opinião pública, foi considerado traição, sobretudo porque tal entrega andou de braço dado com avultadas somas de dinheiro, promessas aliciantes, medo e outros motivos menos dignos.
            A pena e a ironia dos trovadores da época não pouparam a suposta venalidade e cobardia dos alcaides que se entregaram a D. Afonso III. De facto, o trovadorismo nunca se ergueu contra a causa de D. Sancho e a favor do seu irmão. Pelo contrário, todos vituperaram a infame traição dos alcaides que entregaram os castelos do Bolonhês.
            Além disso, os trovadores denunciaram a corrupção do poder eclesiástico e da fidalguia militar, bem como o modo como a poderosa Igreja forçou as consciências esse serviu do seu poder para excomungar todos aqueles que se mantiveram leais ao seu monarca, D. Sancho II.
            Historicamente, a realidade diz-nos que boa parte do clero português, apoiado por nobres e pelo próprio papa, tomou parte na campanha cujo objetivo era a deposição de D. Sancho II. Afonso era, nessa altura, conde de Bolonha (daí o epíteto de o Bolonhês) e juntou-se às fileiras que hostilizaram o legítimo monarca. A 24 de julho de 1245, a bula Grandi non immerito depôs D. Sancho II e estabeleceu o seu irmão como regente do reino. A bula procurou justificar a deposição do monarca pelo caos generalizado em que o reino tinha caído, circunstanciando-se agravos a igrejas, mosteiros e clérigos, denunciando-se desleixo governativo e enfatizando-se resistências de D. Sancho II no que diz respeito a acolher as recomendações que a Cúria Romana lhe tinha feito até então. Assim, perante as infrutíferas tentativas de chamar o monarca à razão no sentido de manter a ordem e a justiça, e perante a sua reiterada negligência, o papa ordenou que o Bolonhês fosse o governador e curador que organizasse o reino.
            Neste contexto, Diego Pezelho coloca-se no lugar de um alcaide que entregou o castelo ao «verdadeiro dono» e, por isso, foi punido com a excomunhão.
 

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Análise da Dedicatória de Os Lusíadas

 
A Dedicatória não era um elemento obrigatório do género épico. Camões, contudo, faz questão de dedicar o poema a D. Sebastião, o rei que então governava Portugal e que o Poeta vê como garante da continuidade da grandeza de Portugal (dilatação da Fé do Império).

 
 
Estrutura interna
 
                A Dedicatória segue a estrutura típica do género oratório.

 
Exórdio (est. 6 a 8) – O Poeta dirige-se a D. Sebastião declarando-o:

- o enviado providencial para assegurar a independência de Portugal, continuando a sua grandeza através da dilatação da Fé e do Império (est. 6);

- o descendente de uma dinastia mais importante do que as mais importantes da Europa;

- o detentor de um império imenso e o baluarte contra os seus inimigos, os ismaelitas e os turcos.

 
▪ A transmissão da mensagem da 1.ª parte assente nos seguintes recursos estilísticos:

- o uso da segunda pessoa do plural «vós»;

- a utilização de apóstrofes e perífrases:

. “… ó bem nascida segurança, / Da lusitana antiga liberdade, / E não menos certíssima esperança / De aumento da pequena Cristandade…”;

. “… ó novo temor da maura lança, / Maravilha fatal da nossa idade…”;

- a metáfora: “Tenro e novo ramo” (I, 7, v. 1) – descendente muito jovem;

- a sinédoque:

. “maura lança” (I, 6, v. 5) – o exército dos mouros;

. “Do torpe Ismaelita” (I, 8, v. 6) – os mouros, descentes de Ismael, filho de Abraão e Agar, daí também o nome “agarenos”;

. “Do Turco oriental e do Gentio” (I, 8, v. 7) – os bárbaros, os infiéis

 
Exposição (est. 9 a 11) – O Poeta, recorrendo a verbos no imperativo (“inclinai”, “ponde”, “ouvi”), pede ao rei que atente na obra que, desinteressada e patrioticamente, elaborou e lhe dedica, na qual verá retratados os grandes feitos dos portugueses, reais e não fingidos, bem superiores aos narrados nas antigas epopeias (esses sim “façanhas, / Fantásticas, fingidas, mentirosas” – Orlando Enamorado, Orlando Furioso, Chanson de Roland), de tal forma que o rei se pode julgar mais feliz como rei de tal gente do que como rei do mundo inteiro.

 
▪ Da mensagem transmitida pelo Poeta a D. Sebastião, conclui-se que Os Lusíadas são fonte de glória tanto para Camões como para D. Sebastião. Por exemplo, nos primeiros quatro versos da estância 10, Camões afirma que foi levado a escrever a obra não pelo desejo de um prémio vil / material, mas de um prémio “alto e quase eterno”. Esse prémio é a fama de grande poeta entre os portugueses (“ser conhecido por um pregão do ninho meu paterno”). A obra é também fonte de glória para D. Sebastião, quando Camões afirma que aquele, ao ler nela os grandes feitos dos portugueses, poderá julgar que é melhor ser rei dos portugueses do que do mundo todo.

 
Confirmação (est. 12 a 14) – Camões concretiza o que disse anteriormente, contrapondo a cada herói antigo um herói português (est. 12 e 13), e elogia os mais conhecidos vice-reis da Índia e todos os que, pelos feitos cometidos “nos Reinos lá da Aurora” (Oriente), atingiram a imortalidade.

 
▪ A nível estilístico, é de salientar o recurso aos seguintes recursos:

- perífrase: “E aquele que a seu Reino a segurança / Deixou…” (I, 13 – vv. 5-6) – D. João I;

- hipérbole, prosopopeia e sinédoque: “… por quem sempre o Tejo chora” (I, 14 – v. 6).

 
Peroração (est. 15-17) – O Poeta elogia o novo rei (“Sublime Rei”) e incita-o a continuar a guerra contra os Mouros, na terra e no mar, na África e no Oriente, prevendo para ele tais vitórias que encherão de júbilo as almas dos seus avós (D. João III e Carlos V), ao verem as suas glórias renovadas.

 
Conclusão (est. 18) – Camões remova o pedido inicial de aceitação da sua obra (“novo atrevimento”), em que o Rei poderá observar a forma como os navegadores venceram os mares e imaginá-los como Argonautas e o que poderão vir a fazer sob o seu impulso.

 
 
NOTAS

 
1. Podemos concluir então que, nestas treze estâncias, o vocativo e a frequência do modo imperativo centrados na pessoa do destinatário (o rei D. Sebastião) condicionam o predomínio da função apelativa, sem dúvida a mais adequada à realização do principal desejo do emissor: a oferta dos seus préstimos para cantar os heróis do seu povo, isto é, que o jovem soberano aceite o seu canto heroico do “peito ilustre lusitano” como um contributo para a glória da Pátria e como um estímulo para, sob o seu impulso, novos grandes feitos virem a ser cometidos.

 
2. Por outro lado, novamente estabelece a comparação (a partir da estância 11) entre os Portugueses e os heróis da Antiguidade, com o objetivo de enaltecer e engrandecer os feitos lusos.

 
3. Também na estância 18 se pode constatar que a obra é fonte de glória para o poeta e para D. Sebastião, quando Camões imagina o rei a ver no seu poema os novos argonautas, como se fossem já os seus. Esta estância, assim como a última d’ Os Lusíadas (IX, 156), pressagiam uma grande glória para D. Sebastião e uma nova grande epopeia para cantar os seus feitos.

 
4. Nota-se uma estreita ligação entre o conteúdo das estâncias 11 a 14 e o conteúdo da Proposição. Com efeito, Camões afirma, nas três primeiras estâncias da obra, que os feitos dos portugueses suplantam os dos maiores heróis da Antiguidade (“Cesse tudo o que a musa antiga canta, / Que outro poder mais alto se alevanta”); também nas estâncias 11 a 14 da Dedicatória considera que os feitos dos lusitanos suplantam as antigas, ainda que fossem verdadeiras, contrapondo a cada herói antigo um herói português.

 
5. D. Sebastião é visto como monarca poderoso, como representante do povo predestinado pelo Fado ao cometimento de grandes feitos, num império já imenso, mas que ele acrescentaria ainda, dilatando a Fé e o Império.

      O louvor de D. Sebastião está, portanto, em ser apresentado como um jovem rei de quem o povo português tudo espera, rei que a providência faz surgir para retomar a grandeza dos feitos portugueses. A ideia do jovem rei como salvador da pátria reflete a crise em que a nação já se encontrava, mas estava tão arreigada no povo que não desapareceu da sua alma nem com a morte do rei. O sebastianismo é precisamente isso: a imagem de um rei fatalmente destinado a ser salvador de uma nação em crise.

 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Retrato de D. João de Portugal

▪ Nobre: família dos Vimiosos (I, 2).
▪ Cavaleiro: combate com o seu rei (D. Sebastião) em Alcácer Quibir.
▪ Evoca o nome bíblico de João, o apóstolo de Jesus Cristo.
▪ Ama a Pátria e o seu Rei.
▪ Representante da época de ouro portuguesa.
▪ Imagem da Pátria cativa.
▪ Ligado à lenda de D. Sebastião.
▪ Nos dois atos iniciais, é uma personagem abstrata: existe somente nos pensamentos de D. Madalena, Maria e Telmo (e até de Manuel de Sousa Coutinho e Frei Jorge); torna-se uma personagem concreta no ato III na figura de romeiro.
▪ Personagem simbólica: espécie de personificação da fatalidade, do Destino que vai precipitar o desenlace trágico.
▪ No final da obra, ninguém se compadece dele como marido ultrajado, mas das outras personagens.
O Romeiro apresenta-se como um peregrino, mas é o próprio D. João de Portugal. Os vinte anos de cativeiro transformaram-no e já nem a mulher o reconhece. D. João, de espectro invisível na imaginação das personagens, vai lentamente adquirindo contornos até se tornar na figura do Romeiro que se identifica como Ninguém. O seu fantasma paira sobre a felicidade daquele lar como uma ameaça trágica. E o sonho torna-se realidade.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

A viagem em Viagens na Minha Terra

A viagem constitui a ação central da obra. Iniciando-se no capítulo I e terminando no capítulo XLIX; constitui o nível em que de imediato se vai cumprindo o projeto de "crónica" anunciado pelo narrador. Trata-se, pois, de um percurso seguido por um viajante e pelos seus companheiros de jornada, percurso balizado, do ponto de vista temporal e espacial, pelo narrador da seguinte forma: em termos temporais, a viagem decorre desde 17 de julho de 1843, uma segunda-feira, sensivelmente até sábado; em termos espaciais, os marcos fundamentais da viagem serão Lisboa e Santarém, com regresso a Lisboa e com uma dupla paragem no Vale de Santarém. E já aqui a viagem começa a revelar-se algo mais do que um simples trajeto geográfico: é que o narrador segue até certo ponto o exemplo de Xavier de Maistre, mencionado logo no primeiro parágrafo, depois de ter sido citado nesse lugar estratégico que é a epígrafe, mas tende a superar esse exemplo, indo mais longe e refletindo em profundidade. A "circularidade" da viagem de X. de Maistre cumpre-se também, mas de forma mais alargada: ir a Santarém e regressar ao ponto de partida é levar a cabo um movimento circular, todavia muito mais amplo do que o permitido pelo espaço apertado de um quarto, assim se conferindo uma outra dimensão às alusões simbólicas que a circularidade pode sugerir (acabamento, perfeição, completude). Ao longo desta viagem, Garrett revela um grande amor pelas coisas nacionais e uma profunda angústia perante a degradação do património cultural às mãos de uma sociedade materialista insensível aos valores do espírito.
Há uma certa descontinuidade na apresentação dos vários locais de passagem (Alhandra, Vila Franca, Vila Nova da Rainha, Azambuja, Cartaxo, Charneca, Vale de Santarém e Santarém), que são descritos muito sumariamente ou apenas referidos. As primeiras localidades referidas são a Azambuja (a estalagem e o pinhal) e o Cartaxo (o café). Todavia, nenhum destes espaços é objeto de uma descrição pormenorizada e sistemática; são apenas genericamente esboçados e servem os objetivos de intervenção crítica de Garrett: através da descrição da estalagem (cap. III), denuncia o convencionalismo da literatura romântica da época; o desencanto da chegada ao pinhal da Azambuja (cap. V) vai motivar uma vigorosa crítica à falta de originalidade da literatura contemporânea e uma chamada de atenção para o estado de abandono em que se encontra aquele monumento nacional; a paragem no café do Cartaxo (cap. VII) é pretexto para criticar a autossuficiência e a tacanhez dos lisboetas, que não viajam, "cuidando que todas as praças deste mundo são como a do Terreiro do Paço, todas as ruas como a Rua Augusta, todos os cafés como o do Marrare".
No capítulo VIII, entra-se na charneca ribatejana, aproveitando o autor para reconstituir a beleza clássica de "uma jovem seara do Ribatejo nos primeiros dias de abril" e de "um campo minhoto de milho" em agosto, contrapor-lhe a solenidade romântica de "um bosque antigo e copado" e exprimir a sua emoção perante a charneca. Todavia, Garrett não se detém na contemplação do exterior; a paisagem é para ele, como para os românticos, a ponte para o sonho, o devaneio ou a meditação.
No final do capítulo IX, o narrador atinge o Vale de Santarém que, patrioticamente, considera "um dos mais lindos e deliciosos sítios da terra". A descrição da paisagem aparece logo no início do capítulo X, que funciona como prólogo da novela. Garrett começa por dar uma visão geral da beleza edénica da paisagem, para de seguida ir particularizando, parágrafo a parágrafo, até chegar à reconstituição de "um vulto feminino que viesse sentar-se" ao "balcão" da "janela meio aberta de uma habitação antiga", situada num "maciço de verdura", à esquerda do Vale.
A idealização da paisagem do Vale, em que se acentuam o caráter primitivo e a "harmonia suavíssima e perfeita", serve de enquadramento adequado à apresentação de Joaninha, a heroína da novela. Dir-se-ia que a inocência e a pureza ideais de Joaninha ditaram a idealização da paisagem.
A introdução do 1.º ato da novela interrompe a narrativa da viagem, que só é retomada no capítulo XXVII, com a chegada às proximidades de Santarém, aproveitando Garrett para novamente se insurgir contra o estado de abandono do património, representado pelos olivais de Santarém.
Chegado ao alto da vila, inicia-se a enumeração, mais ou menos descritiva, dos monumentos de Santarém (conventos, mosteiros, palácios, ruas mouriscas, casas senhoriais, etc.), que o narrador reencontra, na sua maioria descaraterizados por sucessivos restauros e transformações, no caminho para a Igreja de Santa Maria da Alcáçova, junto da qual mora Passos Manuel. São esses "reparos e transformações" que fazem com que só consiga identificar aquela velha igreja quando lha mostram.
Chega, finalmente, aos "palácios de D. Afonso Henriques", habitados pelo chefe do partido progressista, Passos Manuel. Ao jantar discute-se política, literatura, Santarém, "sobretudo das suas ruínas, da sua grandeza antiga, da sua desgraça presente".
Na manhã seguinte, acordado pelos sinos da Alcáçova, o narrador vem à janela e observa, extasiado, a paisagem do Tejo e povoações ribeirinhas (Almeirim, Alpiarça).
No capítulo XXIX, o narrador revela que "os sublimes espetáculos da natureza" o fazem "sonhar acordado" (característica romântica), aproveitando para novamente definir o âmbito, a natureza e os objetivos da obra. A metáfora "Santarém é um livro de pedra" constitui uma síntese de quanto Garrett admirava o seu património arquitetónico. Todavia, o seu estado atual merece-lhe violentas críticas às autoridades que, há mais de um século, têm permitido autênticas profanações.
Ao almoço recordam-se as grandes figuras da História de Portugal relacionadas com Santarém e, por fim, a "madrinha e padroeira desta terra", Santa Iria ou Santa Irene. A inserção da lenda ou romance desta santa, que teria dado o nome à vila, constitui uma interrupção da viagem; na parte final do capítulo XXIX, cita-se a versão popular, em trovas, e no capítulo XXX sintetiza-se a "História de Santa Iria" segundo os cronistas e procede-se à sua comparação com o romance.
No capítulo XXXI, inicia-se a visita "de relíquias, templos e monumentos" de Santarém: junto da igreja da Alcáçova, que já está fechada, o narrador interessa-se por algumas portas e janelas trabalhadas ao gosto moçárabe; mais adiante depara com um nicho que contém um antiquíssimo busto degradado de D. Afonso Henriques; chega depois às Portas do Sol, um miradouro "triste" sobre o Tejo. E é junto da muralha ali existente que o narrador prepara a transição para a "história da Menina dos Rouxinóis", cujo 3.º acto decorrerá entre os capítulos XXXII e XXXV, numa cela do convento de S. Francisco.
No início do capítulo XXXVI, o narrador interroga o companheiro de viagem sobre o destino das personagens da novela, com especial incidência em Carlos. Promete-se o fim da "história da menina dos olhos verdes" para o dia seguinte e prossegue a viagem:
. passagem pela porta de Atamarma, franqueada por D. Afonso Henriques, quando conquistou Santarém, já muito descaracterizada por inúmeras reparações e que alguns já pensaram destruir, facto que é mordazmente ironizado como uma ideia "digna da época";
. observação do exterior da capelinha de Nossa Senhora da Vitória, fundada pelo primeiro rei de Portugal, e entrada para lamentar a destruição da "solenidade do antigo";
. observação do "arrendado e elegante frontispício gótico" da Igreja e Convento da Graça, na impossibilidade de entrar para visitar o túmulo de Pedro Álvares Cabral e outras antiguidades, por não ter sido encontrada a pessoa que guardava as respetivas chaves;
. visita à Igreja do Santo Milagre, para admirar "quatro medalhões de pedra lavrada com bustos de homens e mulheres em relevo (...), relíquias da primitiva Igreja do Santo Milagre", que vários "melhoramentos" transformaram num "desgraçado e desgracioso templo";
. visita à Capela do Santo Milagre, em estilo filipino, local de "grande veneração", onde se terá operado o Santo Milagre de Santarém havido com os restos mortais da infanta D. Maria da Assunção, filha do rei D. João VI, e que hoje se encontra abandonada e em graves ruínas.
O narrador regressa à Alcáçova (casa de Passos Manuel) para "jantar" (= almoçar), continuando a sua visita de tarde, já no capítulo XXXVIII. Acabado o almoço, continua a viagem a cavalo para uma visita à Ribeira, um "subúrbio democrático", a "única parte viva de Santarém", em busca infrutífera da "tenda do Alfageme".
À noite, na alta de Santarém (Marvila), a elegância civilizada do chá em casa da Baronesa de Almeirim fá-lo-á esquecer o desconforto das ruínas suburbanas. A conversa será um pretexto para reflexões sobre a sociedade portuguesa dum modo geral, a "secante" vida na capital do "nosso pobre reino":
. espetáculos enfadonhos de S. Carlos;
. espetáculos da Rua dos Condes e o dramalhão romântico;
. o contraste com a província, onde "não há tal fastio".
Na manhã seguinte (capítulo XXXIX), continua a visita a Marvila de Santarém com passagem pelo Colégio dos Jesuítas, edifício agora convertido em sede de governo civil e que anteriormente fora estabelecimento de ensino criado pelo rei para formação dos infantes e da mocidade do distrito; agora as suas instalações abrigavam o governo dito civil, cuja tarefa era "corromper a moral do povo, sofismar o sistema representativo". E o autor aproveita para criticar a concentração de estabelecimentos de ensino em Lisboa e defender a criação da Casa Pia, Colégio Militar ou outra grande escola em Santarém.
Seguidamente, prossegue a viagem por Santarém com chegada ao mosteiro de S. Domingos, templo que tem vindo a servir de palheiro, como era fácil de verificar pela camada de palha podre e malcheirosa que ainda cobria o lajedo. Apesar disso, Garrett procura a capela e jazigo de S. Frei Gil de Santarém, evoca a sua vida lendária, os "negócios" com o Diabo e posterior salvação pelo arrependimento. Ao deparar com a minúscula e grosseira capela do Santo, sem quaisquer sinais de antiguidade e com o túmulo vazio de pedra pintada, fica completamente desiludido. Até o cadáver do santo tinha desaparecido!
No capítulo XL, recorda-se a chegada de três frades ao convento das Claras, em 1834, trazendo uma espécie de cofre com o corpo de S. Frei Gil, numa altura em que os liberais acabavam de expulsar do país as ordens religiosas. Esta evocação é aproveitada para uma chamada de atenção para a necessária tolerância liberal para com as freiras, socialmente muito úteis, ao contrário dos barões, social e politicamente parasitas.
No capítulo XLI, o narrador atinge o Convento de São Francisco de Santarém, de que fosse guardião Frei Dinis, um daqueles frades que tinham "roubado" o cadáver de Frei Gil para o entregar às freiras do Convento das Claras, a única forma de poupar os restos mortais do santo. Pouca atenção é prestada àquele convento, evocam-se as cenas finais da história de Joaninha que ali se desenrolaram e, depois da frustração face à degradação e descaracterização do património, decide-se pelo regresso a Lisboa. Mas vai ainda procurar o túmulo do rei D. Fernando (cap. XLII), sofrendo novo desgosto, porque o encontra esburacado e quase irreconhecível. Tal situação ilustra o grosseiro materialismo em que os barões mergulharam o país e leva-o a fazer previsões pessimistas sobre o destino nacional, restando-lhe somente a esperança do "povo povo", que ainda não está corrupto. Esta meditação é de extrema importância para a compreensão do significado global da obra, pois é aqui que, pela primeira vez, Garrett indica uma saída do impasse, ao contrapor às corruptoras abstracções da falsa sabedoria dos que detêm o poder, a integridade potencialmente salvadora de um concreto "povo" capaz "da síntese transcendente, superior e inspirada pelas grandes e eternas verdades, que se não demonstram porque se sentem".
Nessa sexta-feira, o narrador decide regressar a Lisboa. Volta a passar pela casa do Vale e assim se faz a transição para o epílogo da novela. Junto da casa encontra Fr. Dinis, única e última companhia da avó, que lhe dá a ler a carta de Carlos, cuja transcrição ocupará os capítulos XLIV a XLVIII.
A viagem é retomada no cap. XLIX, depois de um curto diálogo com Fr. Dinis a propósito de Carlos. A primeira parte do percurso é feita a cavalo, com pernoita no Cartaxo, onde o narrador sonha com eles e com barões. Este sonho está carregado de simbolismo e de ironia. As sugestões de irrealidade verdadeiramente surrealista ("céu de papel", "noite polar", e as notas de várias cores como "farrapos de neve"), a ironia e a hipérbole ("Eram milhões e milhões e milhões...") e a exploração do contraste com a realidade ("Acordei no outro dia e não vi nada... só uns pobres que pediam esmola à porta") concretizam, mais uma vez, a crítica do materialismo da "constelação de barões".
A segunda parte do percurso é feita de barco, com a chegada ao Terreiro do Paço a ocorrer às cinco horas da tarde.
Terminada a viagem, anuncia Garrett também o final da obra, admitindo-se, todavia, a possibilidade de novas viagens "por esse Portugal fora" (narrativa aberta). A obra finaliza com uma referência crítica aos caminhos de ferro que, por serem de metal e não de papel, os barões jamais construiriam. Garrett entendia que o caminho de ferro seria um melhoramento que apenas beneficiaria as classes privilegiadas e traria prejuízos às massas populares. Ao contrário das estradas "de pedra", cuja construção é vivamente recomendada.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Leituras interpretativas de Frei Luís de Sousa


1. Panorâmica de uma recepção interpretativa

            Empenhado política e culturalmente num processo de renovação do teatro nacional, com Um Auto de Gil Vicente (1838), Almeida Garrett tinha fundado o teatro português moderno, ao gosto da nova estética para o drama romântico. Cinco anos volvidos apresenta a sua obra-prima teatral: Frei Luís de Sousa.
            Várias datas significativas rodeiam a apresentação e representação desta obra:
· 1843, 6 de Maio: apresentando publicamente, pela primeira vez, a peça, Garrett lê uma Memória ao selecto auditório do Conservatório Real. Nessa ocasião, procede à primeira leitura do seu mais recente drama, apresentando explicações de natureza vária (sobre a génese da obra, o seu estilo, o género literário, etc.).

· 1843, 19 de Maio: Garrett faz nova leitura da peça, na intimidade da casa da sua amiga Maria Krus.

· 1843, 4 de Julho: em consequência da anterior leitura, o drama é apresentado, pela primeira vez, no pequeno teatro particular da Quinta do Pinheiro; nesta primeira representação, feita por actores amadores, o próprio Garrett desempenhou o papel de Telmo Pais.

· 1844: é publicada a 1.ª edição, em livro, da peça (Lisboa, Imprensa Nacional, cujo prefácio é datado de Dezembro de 1843)[1].

· 1847: dá-se a primeira representação da peça no modesto Teatro do Salitre, embora censurada, já que lhe fora amputada a última cena do Acto I, a fim de “evitar complicações diplomáticas”.

· 1850, 24 de Fevereiro: ocorre a representação da peça no teatro Nacional D. Maria II, instituição que Garrett ajudara a criar.

Entretanto, fazia-se uma hábil divulgação da peça na imprensa do tempo, com disfarçados auto-elogios do próprio autor e alguns ataques aos poderes de Costa Cabral que obstaculizavam a sua representação nos teatros do Salitre (1847) e de D. Maria II (1850).



2. Leituras críticas de Frei Luís de Sousa

2.1. Leitura histórico-genética

Uma das primeiras leituras críticas da peça relaciona-se com a indagação das suas fontes históricas e literárias, isto é: onde se inspirou o dramaturgo para conceber o enredo desta peça? Que relações tem a obra de ficção teatral com a realidade histórica? Que obras terá lido para se informar sobre o assunto?
De facto, Garrett inspirou-se num tema nacional, numa figura histórica para compor o seu drama. Ao dramatizar a vida de Manuel de Sousa Coutinho, o dominicano Frei Luís de Sousa, insigne historiador e prosador seiscentista, Garrett combina habilmente informação histórica e ficção. Esta recriação estava prescrita, aliás, pela teorização do drama romântico.
Na Memória ao Conservatório Real, o próprio Garrett enumerou as fontes que o influenciaram à escrita da obra, desde a representação da “comédia famosa” do teatro ambulante, na Póvoa de Varzim, até às fontes histórico-literárias mais ou menos recentes. Na livre composição da sua ficção dramática, aproveitava o essencial de uma fábula trágica, mas introduzia-lhe alterações justificáveis pela economia dramática e atmosfera romântica. Não podendo ser escravo da cronologia, para Garrett, a verdade dramática implicava uma consciente alteração da verdade histórica[2].
Além das influências que Garrett confessa, há outras igualmente importantes que ele conhecia, mas não menciona: 1.ª) o romance em prosa Manuel de Sousa Coutinho, de Paulo Midose, publicado n’O Panorama, em 1842; 2.ª) a comovente lenda de Frei Luís de Sousa, narrativa poética em rima oitava, do Romanceiro de Inácio Pizarro de Morais Sarmento.


2.2. Leitura biográfico-psicológica: a ficcionalização de um caso pessoal

Esta perspectiva procura relacionar o conteúdo do drama garrettiano com as circunstâncias da vida do autor, em particular com o caso pessoal de Garrett.
Deste modo, esta interpretação valoriza o drama íntimo da figura de D. Madalena, que amou ilicitamente o segundo homem da sua vida, Manuel de Sousa Coutinho, estando ainda casada com o primeiro. É precisamente este facto que atormenta a consciência desta mulher, confessando-o dolorosamente ao velho Telmo Pais. O regresso inesperado, mas sempre receado, do primeiro marido (D. João de Portugal) desfaz a nova família, tornando ilegítima a filha desta relação (Maria de Noronha). Sobretudo para D. Madalena, ao crime do adultério de pensamento, sucedeu o castigo da desagregação familiar, da morte da filha e da morte para o mundo (solução religiosa, tipicamente romântica).
À luz de um biografismo algo primário, este drama íntimo configuraria a projecção romântica do caso pessoal do próprio dramaturgo. Separado da primeira esposa, Luísa Midosi, mas casado com ela aos olhos da Igreja, Almeida Garrett conhecera e mantivera uma relação com a jovem Adelaide Pastor, de quem tivera uma filha, Maria Adelaide. Porém, esta mulher morrera inesperadamente em 1841, deixando o escritor com uma filha ilegítima nos braços, face aos olhos da sociedade conservadora do tempo. Quer na vida quer na ficção dramática, o inocente fruto de uma relação pecaminosa seria objecto de marginalização social e condenação moral.
Por conseguinte, a aflitiva situação existencial, vivida nos dois anos que antecederam a primeira apresentação da peça, teria alimentado a imaginação do dramaturgo durante a composição da sua obra teatral, pretendendo com ela exorcizar publicamente a sua culpa. É esta a posição de Teófilo Braga: “E Maria, a débil criança, que morre de vergonha vendo que se separam os seus progenitores, porque ainda está vivo o marido de sua mãe, surgia-lhe na mente, diante de sua filhinha Maria Adelaide de pouco mais de dois anos, que lhe ficara desses atormentados amores de Adelaide Deville, extinta aos vinte e dois anos. Esse pressentimento realizou-se; porque D. Maria Adelaide na adolescência veio a saber que D. Luísa Midosi, esposa de seu pai, estava viva em Paris, vindo a confinar-se na vida doméstica com a vergonha do seu nascimento.”
Esta tese é aprofundada por Costa Pimpão, para quem a história trágica de Frei Luís de Sousa surgiria, deste modo, associada ao drama pessoal do próprio Garrett. Assim se compreenderia o sacrifício final da jovem e inocente Maria de Noronha. Com esta morte de dor e de vergonha antes da cerimónia religiosa, despertava-se o terror e a piedade, e expiava-se a culpa dos seus progenitores, através da noção cristã de pecado e respectivo remorso. Deste modo, a peça seria um apelo patético a favor das inocentes vítimas da moral social, bem diversa da moral cristã. Pensando na filha, Garrett teria procurado ganhar para Maria a piedosa adesão dos espectadores. E essa seria, portanto, a personagem central.
No entanto, são vários os perigos redutores e os inconvenientes desta perspectiva, até porque as semelhanças entre a fábula dramática e uma dada fase da vida do autor são dispensáveis à compreensão da obra.


2.3. Leitura religiosa: entre a angústia, a revolta e a esperança cristã

Intimamente relacionada com a interpretação precedente, está uma leitura religiosa e metafísica. A fé católica e os seus princípios morais regem as consciências e a actuação das personagens centrais do drama, família “honesta e temente a Deus” (Memória ao Conservatório Real). Não faltam os ícones e signos representativos da Divina Providência (a Palavra de Deus, a Cruz ou a Igreja), nem o caso dos condes de Vimioso (que também entraram para a vida conventual), várias vezes convocado com uma função pressagiadora do próprio desfecho do drama. A enformar a tragédia estão pressupostos religiosos característicos da vivência portuguesa de Seiscentos: a visão católica da indissolubilidade matrimonial, o escrúpulo de consciências exigentes atormentadas pelo remorso do pecado, mesmo só quando praticado em espírito.
Nesta abordagem, destacam-se três ideias. A primeira diz respeito à angustiante consciência do pecado por parte de D. Madalena, existente desde a primeira cena. Atormentada pelos fantasmas do passado e pela sua consciência, D. Madalena vive em constante e profunda ansiedade. Não só teme o regresso do primeiro marido, como se sente uma mulher angustiada por ter amado ilicitamente o homem que viria a ser o seu segundo esposo, estando ainda casada com o primeiro (consciência de adultério em pensamento). Quem também a atormenta é Telmo Pais, quer quando conversa com Maria sobre o passado e a esperança sebastianista, quer quando afronta a sua ama, ousando dizer-lhe que Maria era digna “De nascer em melhor estado” (I, 2). Mais tarde, é a própria Madalena que, na cena anterior à aparição do Romeiro, confessa a Frei Jorge a razão da sua infelicidade que a sua consciência de cristã se encarrega de lhe lembrar.
A segunda ideia é a da desafiadora revolta de Maria nos instantes que precedem a sua morte por tuberculose. Ela irrompe pela Igreja de S. Paulo quando os seus pais se preparam para tomar o hábito, morrendo para o mundo e abraçando a mortalha da vida religiosa e os novos nomes (Frei Luís de Sousa e Sóror Madalena). Não a prepararam para tão duro golpe, nem lhe perguntaram a opinião; apenas a confrontaram com aquele violento abandono. Tenta ainda demovê-los de tão cruel resolução: “Esperai: aqui não morre ninguém sem mim. Que quereis fazer? Que cerimónias são estas?” (III, 11).
É neste contexto que surge a invectiva de Maria contra a falta de humanidade de um Deus justiceiro e vingador que assim lhe rouba os pais: “Que Deus é esse que está nesse altar e quer roubar o pai e a mãe a sua filha?” (Para os circunstantes.) Vós quem sois, espectros fatais?... Quereis-mos tirar dos meus braços? Esta é a minha mãe, este é o meu pai. Que me importa a mim com o outro?” (III, 11). O dramaturgo suscita assim a piedade para a única vítima inocente. As razões e os valores religiosos, sobretudo a indissolubilidade do casamento (ordem divina), vencem as razões do coração e o fruto de uma união apaixonada (plano humano).
Por último, cabe mencionar a resolução do casal (solução religiosa), tomada decididamente por Manuel de Sousa e aceite por D. Madalena. Acolhendo resignadamente os insondáveis desígnios de Deus, os dois decidem entregar-se à divina Providência. Recordando à esposa o caso dos condes de Vimioso, o marido é levado a reconhecer que a única solução (romântica) do drama familiar reside na “sepultura de um claustro”.
O mesmo sentimento de revolta de Maria fora momentaneamente partilhado pelo seu pai. Com efeito, no início do derradeiro acto, aparece-nos um Manuel de Sousa profundamente transtornado pela dor, invocando Deus na sua desgraça, dominado apenas por um doloroso sentimento: a perdição da sua filha no “abismo da vergonha”, vítima inocente do drama familiar. Recebe, então, os conselhos de resignação e acatamento dos desígnios da divina Providência, por parte de Frei Jorge, que lhe recomenda o abandono do mundo: “E Deus há-de levar em conta essas amarguras. Já que te não pode apartar o cálix dos beiços, o que tu padeces há-de ser descontado nela, há-de resgatar a culpa”. Deus velaria paternalmente pelo seu pobre anjo: “Deus, Deus será o pai de tua filha” (III, 1). Fora, aliás, a própria mãe, momentos antes da cerimónia religiosa, que a oferecera a Deus como uma espécie de cordeiro imolado para expiar o seu próprio pecado. A filha desonrada e perdida tinha sido também o motivo da explosão de dor perante a anagnórise incompleta (II, 13).
Depois da interrupção da cerimónia religiosa por Maria, a peça termina com um sentimento misto de resignação e esperança cristãs: ser transitório, o homem confia plenamente a sua existência na misericordiosa mão de Deus. Todos rezam pela alma daquele anjo inocente que acaba de falecer, comungando do sentimento expresso pelo celebrante dominicano: “Meus irmãos, Deus aflige neste mundo àqueles que ama. A coroa de glória não se dá senão no Céu” (III, 12). Ao pecado do adultério de pensamento e à ilicitude da relação matrimonial, impõe-se a solução religiosa, como forma de repor a desejada ordem moral – ao crime sucede a expiação, através da Cruz redentora. Consuma-se, deste modo, a anunciada catástrofe do “duplo e tremendo suicídio” (Memória ao Conservatório Real): suicídio moral dos esposos e morte física da vítima filha.


2.4. Leitura genológica: a discussão do género

O Frei Luís de Sousa é um drama romântico ou a renovação da tragédia antiga? A resposta é adiantada pelo próprio Garrett: drama de índole trágica (hibridismo genológico).
Por um lado, Frei Luís de Sousa não respeita todos os cânones poético-retóricos da tragédia clássica (assunto antigo, uso do verso ou a divisão em cinco actos), sem deixar de ser uma “verdadeira tragédia”. Embora optando por assunto português e relativamente moderno, a fábula é determinada por leis superiores (religião e moral social), personagens de perfil trágico. O leitor/espectador é ainda confrontado com a relativa observação da lei das três unidades (acção, espaço e tempo). Por último, mencione-se o facto de o coro da tragédia clássica ser desempenhado ora por Telmo, ora por Frei Jorge. Por outro, inspirando-se em temática nacional e em circunstâncias biográficas (ingredientes do drama moderno), a obra também não observa toda a moderna estética do drama romântico, o que leva Garrett a observar: “Só peço que a não julguem pelas leis que regem, ou vedem reger, essa composição de forma e índole nova; porque a minha, se na forma desmerece da categoria, pela índole há-de ficar pertencendo sempre ao antigo género trágico”.
A não observância da rígida lei das três unidades da tragédia antiga é compensada pelo aproveitamento de três procedimentos técnico-compositivos:
a) a estrutura interna:
‑ exposição do conflito (primeiras cenas do acto I);
‑ adensamento e clímax dramáticos (até ao final do acto II);
‑ desenlace trágico (morte simbólica dos pais – profissão religiosa – e morte física de Maria).
b) a concentração dramática:
‑ da acção que, da exposição inicial do conflito, caminha inexoravelmente para o adensamento trágico e anagnórise gradual, até ao desenlace final;
‑ do tempo, que se vai chegando gradualmente, até ao dia fatal de 4 de Agosto de 1599, vinte e um anos depois da batalha de Alcácer Quibir;
‑ do espaço, que se vai afunilando gradualmente até à austeridade do palácio de D. João de Portugal e do retrato, e depois da capela onde decorre a celebração religiosa final na sóbria igreja de S. Domingos;
c) o estilo e a arte do diálogo: o estilo da peça caracteriza-se pela sobriedade lexical e pela exploração de determinados recursos reveladores dos estados emocionais das personagens (alusões, exclamações, reticências, interrogações, etc.); por outro lado, Garrett adequa o estilo ao momento, perfil e ideologia de cada personagem – nervoso e angustiado em D. Madalena; emocionado e inquiridor em Maria; respeitoso e digno em Telmo; nobre e decidido em Manuel de Sousa.
Além disso, os dois primeiros actos são de índole mais trágica, enquanto que o terceiro, sobretudo com a melodramática morte de Maria, é mais sombrio e patético. Nos dois primeiros, sobressai um clima crescente de medo, em que uma família é ameaçada pelo pecado e ensombrada pela figura do ausente/presente D. João de Portugal, encarnação de um Destino fatal; no terceiro, mais declamatório, é o cristianismo romântico que impõe a morte de Maria, como uma espécie de expiação.
Por conseguinte, podemos concluir que o Frei Luís de Sousa é formalmente um drama romântico, servido por um enredo nacional de fundo trágico.


2.5. Leitura político-sociológica: relações especulares

Tão importante como o tempo da intriga recriado pela peça (finais do séc. XVI e início do séc. XVII) é a época da escrita (década de 1840). Lida à luz do contexto em que a obra foi escrita, apresentada e publicada, a peça configurar-se-ia como uma censura mais ou menos velada e simbólica da situação político-social portuguesa, das “violências palatino-cabralistas”, vividas sob o governo conservador e autoritário de Costa Cabral.
Assim sendo, não surpreende que a censura cabralista persiga a obra, amputando-lhe os actos ou falas de bravura revolucionária diante da tirania castelhana (incêndio do palácio de Manuel de Sousa Coutinho), argumentando com as consequências para as relações diplomáticas entre os dois estados peninsulares. Aliás, terão sido as ideias políticas mais revolucionárias de Garrett que, exonerado dos cargos políticos ligados directamente à reforma do teatro português, impediram, durante algum tempo, a representação do Frei Luís de Sousa.
Almeida Garrett terá, assim, explorado a similitude entre as duas épocas históricas: o moderno autoritarismo cabralista (do séc. XIX), sob a aparência de um regime liberalista, assemelha-se à despótica e opressora ocupação castelhana de finais do séc. XVI. Neste sentido, a obra não deixa de ser uma crítica à política vigente, ressaltando a revolta e sublevação de um homem (Manuel de Sousa) contra a tirania de um regime imposto e em prol do elevado valor da liberdade e da independência ideológica. O acto de Manuel de Sousa deve ser interpretado como um significativo acto de vontade por parte de um homem que preza a liberdade contra todas as formas de tirania.


2.6. Leitura psicocrítica e imagética: o conflito e a psicologia profunda

Segundo esta leitura, com a peça estaria em causa a dualidade do Homem, no seu conflito entre o ser e o parecer, entre o Eu profundo e o Eu de superfície.
António José Saraiva sustenta que Telmo, verdadeira personagem central do drama, simboliza a alma profunda e fragmentada do autor, no seu conflito de fidelidades (o culto sebástico e a crença no regresso de D. João, a par da profunda afeição por Maria), de impossível harmonização.
O dramatismo intensifica-se quando Telmo se consciencializa da passagem do tempo, dando-se conta de que a antiga admiração por D. João, que vive apenas na sua “lembrança”, é substituída por uma afeição bem real e viva por Maria. Mudam-se os tempos e as circunstâncias, mudam os corações, e a convivência de sentimentos torna-se impossível. Perante este dilema interior, o velho aio acaba por se transformar no anunciador da “morte do impostor” (D. João). Essa morte do passado é-lhe solicitada expressamente pelo antigo amo, mas esse pedido estava já entranhado no perturbado coração de Telmo.
Resumidamente, o Frei Luís de Sousa pode ser visto como um drama do Eu. Telmo exprimiria “a dor de não ser constante e inteiro no amor, a mágoa, a que se mistura algo de remorso, de viver repartido entre duas afeições inconciliáveis, dois compromissos, uma para com o passado (no caso de Telmo, a fidelidade a D. João) e outro para com o presente (no caso de Telmo, a entranhada estima por Maria), que o leva a desejar que o antigo amo nunca mais volte”.
Mário Garcia visualiza em Telmo um conflito entre o Eu social, de aparências e disfarces, e o Eu desvelado, profundo e verdadeiro. Manuel de Sousa, que incendeia heroicamente o seu palácio, impelido pela honra, representaria “o contributo para a regeneração espiritual de Garrett, através do sentido de paternidade”.
Para João Mendes, Garrett viveu um inquestionável drama da fidelidade entre um homem social, de aparências e máscaras, e um homem sensível, íntimo e real. Ora, esse conflito de fidelidade é projectado nas dramáticas figuras de D. Madalena e de Telmo, tendo sido esta última interpretada pelo dramaturgo na primeira representação. A saída para o conflito e divisão interior de Garrett residia no sacrifício de Manuel de Sousa: “Manuel de Sousa é o Garrett ideal, como ele desejaria ter sido e nunca foi, por falta de coragem”.
Segundo uma leitura histórico-psicológica, Manuel de Sousa simbolizaria a reabilitação de Almeida Garrett perante a sua filha Maria Adelaide e perante a sociedade. Manuel de Sousa simbolizaria o Garrett romântico (tese), enquanto o Carlos das Viagens na Minha Terra configuraria o homem devorado pelo amor-paixão (antítese), encontrando-se a síntese n’ As Folhas Caídas, entre Manuel de Sousa e Carlos. O incêndio da casa e o permanente estado febril de Maria remetem para a bivalência da imagem arquetípica do fogo: ora significando a auto-expiação de Manuel de Sousa e “confissão” de Garrett; ora a purificação do sangue, manifestada na febre da jovem Maria, fruto do pecado de uma relação extra-conjugal. O incêndio depurador da paixão prepararia, deste modo, o desfecho religioso do drama.


2.7. Leitura mítico-cultural: o Sebastianismo e o destino português

Para Garrett, desencantado com o rumo do país, ligado a um passado quinhentista, e vivendo à sombra de uma pesada memória, o Portugal do séc. XIX só teria futuro se se libertasse da nostalgia passadista.
As crenças no sebastianismo eram sinónimo de passadismo, de estéril paragem do tempo. Regressar ao passado é sinónimo de morte do presente e de sério comprometimento do futuro.
A crença sebástica é difundida por Telmo Pais. Amigo de Luís de Camões, ele acredita no regresso de D. João, que acompanhara o jovem rei D. Sebastião à nefasta batalha de Alcácer Quibir. Ao comunicar estas crenças à jovem e influenciável Maria, Telmo desperta gradualmente o terror em D. Madalena, logo a partir da cena II do acto I. Estas referências ao sebastianismo prosseguem ao longo de toda a obra, o que só serve para acentuar o desespero de Madalena.
Por outro lado, de acordo com a didascália que antecede o acto II, destacavam-se, no palácio de D. João, pela sua singular localização, os retratos de D. Sebastião, Camões e D. João de Portugal, que merecem a atenção de Maria.
Reactualizando comicamente o sebastianismo, Garrett concebe-o, no Frei Luís de Sousa, à luz da tradição sebástica, como o mito imperial que deu corpo à nostalgia de uma idade de ouro. Com a perda do jovem monarca, Portugal afunda-se numa época de inércia e de brumas, à espera de um refundador e heróico rei-salvador, sobretudo em momentos de profunda crise política.
Por conseguinte, nesta abordagem crítica, na peça de Garrett, mais do que personagens de um drama familiar, temos seres simbólicos, representativos do destino colectivo português, num dado momento da sua história. Neste contexto, uma última leitura situa-se ao nível mitológico, recuperando o significado dos temas da saudade e do sebastianismo. D. Sebastião seria, assim, a anunciada “maravilha fatal da nossa idade” (Camões) e dos tempos futuros.
Para Garrett, o sebastianismo constituía o mito da nossa decadência. Portugal renegava, por um mito, a realidade; morria para a história, apático e desfeito em sonho; envolvia-se, para entrar no sepulcro, na mortalha de uma esperança messiânica. O sebastianismo era o mito da nossa fraqueza e compensação, da nossa fuga da realidade; é um refúgio para a realidade dos acontecimentos; é uma afirmação de esperança nacionalista, de fé patriótica em épocas de profunda crise política, como a da perda da independência. Será isso que Garrett transmitiu na peça: um choro de aflições tristes, uma resignação heroicamente passiva, uma esperança vaga, etérea, na imaginação de uma rapariga tísica e no tresvario de um escudeiro sebastianista.
Maria de Lourdes Vieira considera que o mito do Encoberto (tratado desde o Bandarra até à Mensagem de Pessoa) é perspectivado, negativamente, como sinónimo de paragem no tempo, de irrealidade, de sacrifício do herói na catástrofe final. O regresso do (falso) D. Sebastião, na figura de D. João, implica a alteração do rumo da história e o aniquilamento. Por isso, diante do espelho do seu retrato, o representante do Portugal morto e sebástico se define como Ninguém. O Portugal do futuro não pode alimentar-se de estéreis utopias passadistas.
Podemos assim dizer que o incêndio do palácio de Manuel de Sousa, além de acto de patriotismo, simboliza a resoluta busca de uma nova ordem e novo espaço para uma família assombrada pelo passado, isto é, uma nação que vivia à sombra de mitos, sonhos ou utopias. O regresso ao velho palácio de D. João representa um anacrónico e impossível regresso ao trágico ao passado. A História não pode regredir e imobilizar-se num pretérito mítico. O Portugal moderno tem de, edipianamente, matar o velho pai para mudar o rumo da sua história, nem que para isso tenha que sacrificar a própria vida, como fez Manuel de Sousa.
Para Eduardo Lourenço, Frei Luís de Sousa será a representação da tragédia colectiva de um povo. O drama reflete sobre Portugal num momento em que ele se interroga pela boca de Garrett. É um país que vive um presente hipotecado, à sombra de um sentimento de saudade passadista e sebastianista. Neste sentido, é uma peça assombrada por dois fantasmas – um quase fantasma (D. João) e um fantasma mítico (D. Sebastião). O simbolismo alegórico que une os dois personagens está bem representado no nome do primeiro: o primeiro nome (D. João) remete-nos para alguns monarcas da História de Portugal; e no sobrenome (de Portugal) está cristalizado o próprio nome da Nação, num momento crucial da sua História. É preciso matar ou exorcizar o passado, para que Portugal possa ter futuro.
Deste modo, estaremos perante uma culpa metafísica, personificada em D. João, a figura que simboliza um Portugal sem presente, sonâmbulo e doente de sebastianismo. Nesta ordem de ideias, a regeneradora Maria representa o sacrifício necessário para exorcizar os fantasmas do passado e definir o futuro de Portugal. Só assim teria sentido o absurdo castigo-expiação de Maria, culpada de não ter culpa, que morre, romanticamente, de excesso e de vontade.
Esta problematização do modo de ser português será, portanto, feita a partir do duplo e simbólico espaço da casa-palácio e da igreja-convento. O drama de Garrett é fundamentalmente a teatralização de Portugal como povo que só já tem ser imaginário (ou mesmo fantasmático) – realidade indecisa, incerta do seu perfil e lugar na História, objecto de saudades impotentes ou pressentimentos trágicos.
Neste sentido, o conflito particular ou o drama humano e familiar da peça mais não é do que uma metáfora do nosso devir colectivo: “Quem responde pela boca de D. João, definindo-se como ninguém, não é um mero marido ressuscitado fora de estação, é a própria Pátria. O único gesto redentor do seu herói (Manuel de Sousa) é deitar fogo ao palácio e enterrar-se fora do mundo, da História.
Por conseguinte, pela boca do Romeiro, fantasma de um outro fantasma (D. Sebastião), é Portugal inteiro que se auto-interroga, olhando no espelho da sua identidade e não se encontrando. O velho Portugal já não se revê na nova ordem estabelecida, nem é facilmente reconhecido pelos seus mais fiéis seguidores (Telmo Pais). Portugal desapareceu em Alcácer Quibir, perdeu irremediavelmente a sua identidade, até à sua refundação em 1640. O Portugal heróico, aventureiro e cavaleiresco estava definitivamente defunto. Dessa morte simbólica, que implicou o sacrifício de vidas mais ou menos inocentes nascia um Portugal novo.



Sintetizando as várias perspectivas críticas:


Interpretações


Ideias nucleares


1. Leitura histórico-ge-nética


. Fontes histórico-literárias da peça, reconhecidas pelo autor ou omitidas;
. Recriação ficcional de assunto histórico: tradição + imaginação dramática.



2. Leitura biográfico-psicológica


. Encenação do caso pessoal de Garrett, com base nas significativas coincidências entre a situação biográfica e o enredo dramático da obra.



3. Leitura religiosa e metafísica


. Da consciência do pecado (D. Madalena), à desafiadora revolta (Maria) e ao sacrifício à esperança cristã (tomada de hábito do casal).



4. Leitura genológica e arquitextual


. Classificação quanto ao género: drama ou tragédia?
. Tragédia de destino, de assunto moderno; drama romântico, de fundo trágico.



5. Leitura político-soci-ológica


. Homologias entre a decadência quinhentista e o autoritarismo agiota cabralista.
. Crítica velada ao rumo da política portuguesa sob o governo de Costa Cabral.



6. Leitura psicocrítica e imagética


. Drama interior de Telmo e D. Madalena, divididos entre duas fidelidades.
. Numa imagética do fogo, Manuel de Sousa Coutinho seria o Garrett ideal.



7. Leitura mítico-cultural


. Enterro simbólico do sebastianismo no seu fantasmático representante (D. João).
. Interrogação psicanalítica de Portugal: a fragilidade ôntica da pátria portuguesa.



Bibliografia:
. http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/zips/candid12.rtf


[1] Nesta altura, fez-se uma edição de quinze exemplares da peça. Existe um fac-símile do Frei Luís de Sousa da edição da Quinta do Pinheiro, apresentada por M.ª Leonor Machado de Sousa, Lisboa, Inst. da Biblioteca Nacional e do Livro, 1993. Em bom rigor, esta primeira publicação constitui a verdadeira editio princeps da peça garrettiana.
[2] Entre as alterações da verdade factual, salientam-se: 1.ª) D. Madalena esperou 7 anos por notícias do primeiro marido a que, somada a idade de Maria, perfaz 21 anos, quando historicamente terão sido 17 ou 18 anos; 2.ª) D. Madalena aparece em cena atemorizada com a marginalização que se abaterá sobre a sua única filha, do seu segundo casamento com Manuel de Sousa, embora a realidade histórica refira a existência de mais três filhas do primeiro casamento; 3.ª) Manuel de Sousa incendeia patrioticamente o seu palácio de Almada, quando, de facto, não terá sido por um acto de heroísmo, nem ele se terá notabilizado por reacções anti-castelhanas, antes pelo contrário; 4.ª) por fim, a solução religiosa fica a dever-se à inesperada aparição de D. João, quando, historicamente, a opção pela vida conventual por parte de Manuel de Sousa e da esposa não tem nada a ver com essa lenda.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...