● Assunto
Esta é uma das três cantigas de que
temos conhecimento que se focam na posição adotada pelos alcaides na célebre
crise de 1245-1247 que levou à deposição de D. Sancho II.
No caso vertente, o trovador associa-se
àqueles que atribuíam à Igreja um papel determinante no que consideravam ser
uma traição coletiva, a saber, a entrega dos castelos ao futuro D. Afonso III,
colocando na boca do leal alcaide de Sousa a referência à excomunhão com que
este teria sido brindado pelo arcebispo de Braga.
● Tema: a sátira do arrependimento fingido de um ato de lealdade – a entrega do
castelo sob ameaça de excomunhão.
● Estrutura interna
• 1.ª parte (1.ª e 2.ª coblas)
– Exposição do facto: a excomunhão do alcaide de Sousa.
• 2.ª parte (3.ª e 4.ª coblas)
– Causa da excomunhão: a lealdade do alcaide, que entregou o seu castelo ao
verdadeiro dono, D. Sancho II, e então finge-se arrependido do seu ato de
lealdade e finge temer vir a morrer excomungado, procurando assim que lhe seja
levantada a excomunhão.
● Análise da cantiga
O autor constrói o poema desenhando
um caso hipotético em torno do alcaide de Sousa e do seu ato de contrição, onde
manifesta o seu suposto arrependimento por se ter mantido leal aio seu
soberano. Deste modo, o poeta critica, de forma mordaz, os que quebraram os
laços de fidelidade vassálica, apontando o dedo ao clero por ter fomentado e
protegido esse ato de traição para com o rei.
A ironia percorre toda a composição,
presente desde logo na súplica contrita e no arrependimento pelo ato de
lealdade. É óbvio que só por ironia se pode suplicar absolvição por se ter sido
leal. A lealdade constitui um ato de fidelidade aos compromissos assumidos e evidencia
o sentido de retidão e de probidade do indivíduo que é leal, configurando um
valor ético e um código em trono do qual se unem os elementos dos grupos
feudais.
Ao colocar a sua própria voz na voz
do alcaide de Sousa, Diego Pezelho encena um discurso marcadamente sarcástico e
impiedoso para todos os que traíram D. Sancho II e cederam às pretensões do
Conde de Bolonha, coagidos pela ameaça da excomunhão por parte dos bispos.
Assim, o sujeito poético da cantiga
(o alcaide) dirige-se a um arcebispo (provavelmente o de Braga, D. João Viegas
de Portocarreiro, um dos principais responsáveis pela deposição de D. Sancho
II, integrando, por exemplo, a comitiva portuguesa que fora enviada a Lyon),
pedindo-lhe absolvição, isto é, que lhe retire a excomunhão, por ter sido
enganado pelo diabo a praticar um ato de lealdade. Ele tivera um castelo em
Sousa, julgara agir corretamente, mantendo a fidelidade ao monarca, mas compreende
agora que foi um pecado. No refrão, repetido quatro vezes, o alcaide roga ao
bispo que suspenda a excomunhão. Para tal – socorrendo-se, neste ponto, do equivocatio
– jurará que foi um traidor: “Soltade-m’, ai, senhor, / e jurarei, mandado, que
seja traedor”. Porém, o facto de afirmar que jurará “mandado”, isto é, sob
ameaça, livra-o da possível acusação de subserviência e deslealdade. Foi, por
isso, que o trovador usou o conjuntivo «seja», em vez do indicativo «sou»: está
implícita aí a ideia de subordinação e coação. Em contrapartida, pela expiação
do pecado de lealdade e remissão da excomunhão, propõe-se jurar, «mandado», que
é um traidor.
A ironia é evidente: o que é afirmado
no primeiro verso (“Meu senhor arcebispo, and’ eu excomungado”) é incongruente
com o que surge nos seguintes: ninguém está à espera que alguém seja
excomungado por ter sido leal nem que isso fosse um ato diabólico. Além disso,
de acordo com o refrão, a absolvição derivaria de um ato de felonia que o
alcaide encena ironicamente querer assumir.
Por outro lado, é clara a intenção
de criticar o ato de traição de quem alinhou com o clero e com as pretensões de
D. Afonso, porque, ao fazê-lo, estaria a salvo da excomunhão. Neste contexto,
assume grande relevância o primeiro verso da segunda estrofe (“Se traiçon
fizesse”), que mostra como seria censurável a traição e como o poema se
desenvolve em torno do arrependimento fingido do alcaide. Além disso, infere-se
que a traição é um ato que se concretiza debaixo de um silêncio indigno e que,
por ser tão censurável para quem o pratica, se procura emudecer: “nunca vo-la
diria”.
Nas restantes estrofes, o «eu»
continua, irónica e dissimuladamente, a lamentar-se por ter sido excomungado,
afirmando que defendeu e entregou o castelo ao seu legítimo «dono», convicto de
que estava a fazer o que era correto (“gran cousa”), mas que, afinal, se
arrependeu por não ter sido traidor.
De acordo com Herlânder Gonçalves
dos Santos (in D. Sancho II – Da deposição à composição das fontes literárias
dos séculos XIII e XIV), «O escárnio explora a ambivalência irónica entre o
fazer e o dizer, entre a conduta de um alcaide leal ao seu senhor, que se manteve
fiel aos votos de vassalagem, que ignorou as resoluções eclesiásticas que
incriminavam pela excomunhão essa fidelidade contrária aos interesses e
deliberações da Igreja, e o dizer tão lamentoso quão desdenhoso da sua contrição:
“Per meus negros pecados, tive um castelo forte / e dei-o a seu don(o), e ei
medo da morte. / Soltade-m’, ai, senhor, / e jurarei, mandado, que seja
traedor.” (vv. 13-16).
Assim sendo, não custa concluir que
um dos alvos da cantiga, se não o principal, é o poder eclesiástico, por forçar
as consciências, neste caso dos alcaides, a aceitar as pretensões do futuro
Afonso III. Note-se, todavia, que na composição não há qualquer referência
explícita ao Conde de Bolonha, no entanto o tema e o assunto desenvolvidos
focam, inequivocamente, o conflito de 1245 e a entrega dos castelos a D.
Afonso, a coberto das deliberações do Concílio de Lyon.
O outro alvo do poeta é a fidalguia
militar que governava os castelos. Mais uma vez, as referências textuais a ela
não são explícitas, contudo a referência ao alcaide de Sousa e à sua promessa
(fingida e irónica) de traição para se libertar da pena de excomunhão não deixa
dúvidas sobre quem está a ser visado: os nobres que se aliaram a D. Afonso e o
clero que legitimou a traição a D. Sancho II.
● Caracterização do
alcaide
O alcaide de Sousa apresenta-se como
uma figura leal a D. Sancho II, recusando traí-lo e entregar o seu
castelo a D. Afonso III. Astuto e irónico, finge-se arrependido
da sua lealdade, procurando, deste modo, que lhe seja retirada a excomunhão.
Ele coloca-se, pois, no papel de vítima, fazendo um discurso de aparente
humildade e medo. Este mesmo discurso permite vislumbrar o do
arcebispo, certamente autoritário.
Assim, na sua figura confrontam-se
duas situações: uma, de ordem religiosa: o alcaide não quer ser excomungado; outra,
de cariz político: permanecer fiel e leal a D. Sancho II.
● Classificação
A composição poética é uma cantiga
de escárnio, dado tratar-se de uma sátira direta (o alvo está identificado: o
alcaide de Sousa), numa linguagem irónica e humorística, com uma finalidade
moralizadora.
● Forma
▪ Estrofes: quatro quintilhas.
▪ Métrica: versos de 12 e 6
(no refrão) sílabas métricas.
▪ Rima:
- esquema rimático: aabb
- emparelhada
- consoante (excomungado”/”pecado”)
- rica (“excomungado”/”pecado”) e
pobre (“Sousa”/”cousa”)
- grave (“excomungado”/”pecado”) e
aguda (“senhor”/”traedor”)
▪ Refrão: profundamente
irónico, é através dele que o alcaide pede que o libertem da excomunhão, em
troca de um arrependimento e juramento forçado e fingidos.
● Recurso expressivos
▪ Aliteração em s.
▪ Pronomes e determinantes:
sugerem uma reverência profundamente irónica pela autoridade eclesiástica (“Meu
senhor arcebispo”).
▪ Interjeição “Ai”:
exprime um estado emotivo também ele fingido.
▪ Vírgulas: permitem a
bipartição do verso.
▪ Paralelismo semântico e estrutural.
▪ Verbos:
- tempos:
. presente: reflete a excomunhão e o pedido de
libertação dela;
. pretérito: apresenta o ato que levou à excomunhão;
- modo: imperativo – traduz o pedido
do alcaide no sentido de ser perdoado e libertado da excomunhão.
▪ Ironia: figura predominante
na cantiga, traduz o arrependimento fingido do alcaide pelo seu ato de
lealdade. A ironia reside, pois, na interpretação às avessas das noções de
fidelidade e traição.
▪ Antítese entre lealdade e
traição.
▪ Apóstrofe: “Meu senhor
arcebispo”.
● Valor documental
Esta cantiga assume grande
importância, por causa das referências que contém a aspetos histórico-sociais
do século XIII:
a) o ciclo dos castelos: conjunto de
sátiras sobre a traição dos alcaides, durante o conflito que opôs D. Sancho a
seu irmão, D. Afonso III, sátiras essas que defendem a fidelidade ao monarca
deposto;
b) a deposição de D. Sancho II;
c) o poder da Igreja.
A composição poética baseia-se em
acontecimentos político-sociais contemporâneos: as lutas entre D. Sancho II e
D. Afonso III. Embora se enchesse de prestígio na luta contra os mouros, D.
Sancho II desgostou profundamente os membros do clero e alguns nobres. Em 24 de
julho de 1245, o papa Inocêncio IV expendiu uma bula, pela qual o depunha do
trono português e o atribuía a seu irmão, D. Afonso III, Conde de Bolonha.
D. Sancho II lutou ainda durante
algum tempo, ajudado por servidores leais, não obstante as excomunhões que contra
eles lançaram o Arcebispo de Braga e os bispos de Coimbra e do Porto. No entanto,
a maioria dos alcaides entregou-se a D. Afonso III, ato que, junto da opinião
pública, foi considerado traição, sobretudo porque tal entrega andou de braço
dado com avultadas somas de dinheiro, promessas aliciantes, medo e outros
motivos menos dignos.
A pena e a ironia dos trovadores da
época não pouparam a suposta venalidade e cobardia dos alcaides que se
entregaram a D. Afonso III. De facto, o trovadorismo nunca se ergueu contra a
causa de D. Sancho e a favor do seu irmão. Pelo contrário, todos vituperaram a
infame traição dos alcaides que entregaram os castelos do Bolonhês.
Além disso, os trovadores
denunciaram a corrupção do poder eclesiástico e da fidalguia militar, bem como
o modo como a poderosa Igreja forçou as consciências esse serviu do seu poder
para excomungar todos aqueles que se mantiveram leais ao seu monarca, D. Sancho
II.
Historicamente, a realidade diz-nos
que boa parte do clero português, apoiado por nobres e pelo próprio papa, tomou
parte na campanha cujo objetivo era a deposição de D. Sancho II. Afonso era,
nessa altura, conde de Bolonha (daí o epíteto de o Bolonhês) e juntou-se às
fileiras que hostilizaram o legítimo monarca. A 24 de julho de 1245, a bula Grandi
non immerito depôs D. Sancho II e estabeleceu o seu irmão como regente do
reino. A bula procurou justificar a deposição do monarca pelo caos generalizado
em que o reino tinha caído, circunstanciando-se agravos a igrejas, mosteiros e
clérigos, denunciando-se desleixo governativo e enfatizando-se resistências de
D. Sancho II no que diz respeito a acolher as recomendações que a Cúria Romana
lhe tinha feito até então. Assim, perante as infrutíferas tentativas de chamar
o monarca à razão no sentido de manter a ordem e a justiça, e perante a sua
reiterada negligência, o papa ordenou que o Bolonhês fosse o governador e
curador que organizasse o reino.
Neste contexto, Diego Pezelho
coloca-se no lugar de um alcaide que entregou o castelo ao «verdadeiro dono» e,
por isso, foi punido com a excomunhão.
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