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domingo, 3 de setembro de 2023

Delimitação da ação de "O Tesouro"


. Fechada, no que se refere à histórias dos três irmãos, pois todos morrem.
 
. Aberta, no que diz respeito ao tesouro, que lá continua intacto e por descobrir.
 

Sequências narrativas de "O Tesouro"


    Segundo João A. F. Guerra e José A. S. Vieira, é possível dividir este conto em três sequências:
 
® sequência inicial:
a) os três irmãos encontram um cofre;
b) mergulham as mãos no ouro;
c) cada um cerra a sua fechadura;
 
® sequência intermédia:
a) Rui e Rostabal emboscam-se;
b) Rostabal assassina Guanes;
c) Rui assassina Rostabal;
 
® sequência final:
a) Rui abre as três fechaduras;
b) Rui bebe o vinho envenenado;
c) Rui oscila e morre.
 
5.1. Processo de articulação das sequências narrativas
 
    As ações articulam-se por encadeamento.

Estrutura da ação de "O Tesouro"


Introdução (2 primeiros parágrafos):
 
apresentação das personagens
▪ localização da ação no tempo e no espaço
 
Desenvolvimento (até ao penúltimo parágrafo):
funções cardinais:
1.ª) a descoberta de um cofre;
2.ª) a decisão da partilha;
3.ª) a distribuição das chaves pelos três;
4.ª) o fechamento do cofre;
5.ª) a partida de Guanes para Retortilho;
6.ª) os argumentos de Rui:
=> o irmão dissiparia a sua parte rapidamente com más companhias, no jogo e no vinho;
=> a avareza de Guanes:
. se ele tivesse achado o tesouro sozinho, não o dividiria com eles;
. a recordação de velhas questiúnculas com Rotabal: a recusa do empréstimo de três ducados;
=> a iminência da morte de Guanes;
=> com a parte dele, poderão compor a casa e Rostabal obter ginetes, armas, trajes nobres e o seu terço de solarengos;
=> Guanes tratava, publicamente, Rostabal por «cerdo» e «torpe».
7.ª) a condenação de Guanes;
8.ª) a chegada de Guanes;
9.ª) o assassínio de Guanes;
10.ª) Rostabal lava-se;
11.ª) o assassínio de Rostabal;
12.ª) os preparativos para comer;
13.ª) Rui bebe;
14.ª) Rui oscila / sente um fogo interior que o devora.
catálises:
2.ª) a espera de Guanes;
3.ª) a descrição do assassínio;
4.ª) as reflexões sobre a posse do ouro;
5.ª) as reflexões do marrador.
 
Conclusão (dois últimos parágrafos):
função cardinal:
15.ª) a morte de Rui.
catálise:
6.ª) conclusões e descrição do cenário.
 

Resumo do conto "O Tesouro"


    Três irmãos esfomeados  Rui, Guanes e Rostabal –  , que viviam em Paços de Medranhos, no reino das Astúrias, encontram na mata um grande cofre de ferro, repleto de dobrões de ouro.
    Desconfiados uns dos outros e para não despertar as atenções, decidem transportar o tesouro para Medranhos de noite e que Guanes, por ser o mais magro, iria à povoação mais próxima comprar comida para eles e para as éguas e uns sacos de couro. Cada vez mais desconfiados, cada um fica com uma chave e fecha a sua fechadura do cofre.
    Acicatado por Rui, Rostabal aceita a ideia de assassinar o irmão e, quando Guanes regressa, assim procedem.
    De regresso ao local do tesouro, enquanto Rostabal lava os braços, a cara e as barbas salpicadas de sangue do irmão, Rui, serenamente, enterra uma navalha nas suas costas. De imediato, tira-lhe também a chave e deixa-o escorregar na borda do riacho.
    Cheio de fome e sede, bebe uma garrafa de vinho. Descansa, de seguida, um pouco e prepara-se para regressar a Medranhos, quando sente uma espécie de lume que o devora por dentro e que nenhuma água consegue apagar. Compreende então que Guanes tinha envenenado o vinho que os irmãos iriam beber. Horas depois jaz também junto aos outros com a face negra.

Tema e assunto de "O Tesouro"

Tema: a ambição desmedida.
 
Assunto: três fidalgos arruinados que viviam completamente na miséria e que a ambição de recuperar um passado glorioso (após a descoberta de um tesouro) conduziu à sua aniquilação total.

Análise do conto "O Tesouro", de Eça de Queirós

 I. Ação

    1. Tema

    2. Assunto

    3. Resumo

    4. Estrutura, funções cardinais e catálises

    5. Sequências narrativas

    6. Delimitação da ação


II. Personagens

    1. Caracterização

        a) Rui

        b) Guanes

        c) Rostabal

        1.1. Notas sobre as personagens

    2. Processo de caracterização

    3. Funções das personagens

    4. Papel ou relevo

    5. Composição


III. Espaço

    1. Espaço físico ou geográfico

    2. Espaço social

    3. Espaço psicológico


IV. Tempo

    1. Tempo histórico

    2. Tempo da história

    3. Tempo do discurso

    4. Tempo psicológico


V. Narrador


VI. Modos de apresentação e expressão


VII. Indícios trágicos


VIII. Linguagem


IX. Simbologia


X. Moral do conto

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Séries de animação do meu tempo: "Tom Sawyer"


    Passava aos sábados de manhã, logo depois de o pão fresco chegar a casa. Trata-se de uma versão sensacional da obra imortal de Mark Twain. A acompanhar a série, além de produtos diversos, era imprescindível fazer a respetiva coleção de cromos

    E, assim, chega ao fim a recordação de várias séries de desenhos animados que marcaram a nossa infância e princípio da adolescência. Não couberam aqui todas, pelo que houve que fazer uma seleção. Se abrimos com Jacky, finalizamos com o inigualável Tom. Como ele, vivemos aventuras, não no Mississipi, mas na ribeira do Coval; como ele, construímos uma casa de madeira no cimo da enorme carvalha que o progresso destruiu já neste século; como ele, sonhámos, brincámos e crescemos. Uns gostavam tão pouco da escola como ele, outros fizeram carreira a partir dela; todos chegaram a adultos e encontraram um rumo na vida.

Cronologia de Aquilino Ribeiro


  
1885 – Nasce em Carregal de Tabosa (concelho de Sernancelhe), no dia 13 de setembro.

1895 – Muda-se para Soutosa, concelho de Moimenta da Beira. Faz exame de instrução primária. Entra no Colégio de Nossa Senhora da Lapa.

1900 – Entra no Colégio de Lamego. Estuda Filosofia em Viseu. Entra depois no Seminário de Beja, obedecendo a um desejo da sua mãe, que queria fazê-lo sacerdote.

1904 – Expulso do Seminário, regressa a Soutosa.

1906 – Vai para Lisboa. Colabora no jornal republicano A Vanguarda.
 
1907 – É preso por ser anarquista na sequência de uma explosão no seu quarto na Rua do Carrião, a 28 de novembro, em Lisboa, na qual morre um carbonário.

1908 – Evade-se da prisão em 12 de janeiro e, durante a clandestinidade em Lisboa, mantém os contactos com os regicidas, refugiado numa casa de Meira e Sousa, na Rua Nova do Almada, em frente da Boa Hora.
 
1910 – Estuda na Faculdade de Letras da Sorbonne. Vem a Portugal após o 5 de outubro e regressa a Paris, onde conhecera Grete Tiedemann.

1912 – Reside alguns meses na Alemanha.
 
1913 – Casa com Grete Tiedemann e regressa a Paris.
 
1914 – Nasce o primeiro filho, Aníbal Aquilino Fritz Tiedemann Ribeiro. Declarada a Primeira Guerra Mundial, Aquilino regressa a Portugal, sem ter terminado a licenciatura.

1915 – É colocado como professor no Liceu Camões, onde ficará durante três anos.
 
1919 – Entra para a Biblioteca Nacional de Portugal, a convite de Raul Proença.

1921 – Integra a direção da revista Seara Nova.

1927 – Entra na revolta de 7 de fevereiro, em Lisboa. Exila-se em Paris. No fim do ano, regressa a Portugal, clandestinamente. Morre a primeira mulher.
 
1928 – Entra na revolta de Pinhel. Encarcerado no presídio de Fontelo (Viseu), evade-se e volta a Paris.
 
1929 – Casa em Paris com Jerónima Dantas Machado, filha de Bernardino Machado. Em Lisboa, é julgado à revelia em Tribunal Militar e é condenado.

1930 – Nasce-lhe o segundo filho, Aquilino Ribeiro Machado, que viria a ser o 60.º Presidente da Câmara Municipal de Lisboa – (1977-1979).
 
1931 – Vai viver para a Galiza.
 
1932 – Volta a Portugal clandestinamente.

1933 – Recebe o Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências de Lisboa, pelo seu livro As Três Mulheres de Sansão.
 
1935 – É eleito sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa.
 
1952 – Faz uma viagem ao Brasil, onde é homenageado por escritores e artistas, na Academia Brasileira de Letras.

1958 – Publica Quando os Lobos Uivam. É nomeado sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa. É militante da candidatura de Humberto Delgado à presidência da República.
 
1960 – É proposto para o Prémio Nobel da Literatura.
 
1962 – Nasce-lhe a primeira neta, Mariana, a quem dedica O Livro da Marianinha.
 
1963 – É homenageado em várias cidades do país por ocasião dos cinquenta anos de vida literária. Morre no dia 27 de maio. Nessa mesma hora, a Censura comunicava aos jornais não ser mais permitido falar das homenagens que lhe estavam a ser prestadas. É sepultado no Cemitério dos Prazeres.

1974 – É publicado o livro de memórias Um Escritor Confessa-se. Como escreve José Gomes Ferreira no prefácio, Aquilino sabe mentir a verdade.
 
1982 – A 14 de abril é agraciado a título póstumo com o grau de Comendador da Ordem da Liberdade.
 
2007 – A Assembleia da República decide homenagear a sua memória e conceder aos seus restos mortais as honras de Panteão Nacional.

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Análise de O Malhadinhas

I. Cronologia de Aquilino Ribeiro


II. Biografia de Aquilino Ribeiro


III. Obra de Aquilino Ribeiro

Intertextualidade em O Delfim


    Em O Delfim, existem diversas manifestações de intertextualidade:
 
1. Citações: “(…) As paredes estão na Andaluzia… / De repente todo o espaço para / Para, escorrega, desembrulha-se…, (…) Chuva Oblíqua, edições Ática, Lisboa.”; «”Desta terra da Gafeira quis a Providência fazer exemplo de castigo.”». O primeiro exemplo, o narrador assinala com grafia diferente (o itálico) o texto, indica o seu título, nomeia o autor (Fernando Pessoa) e refere o editor, bem como o local de edição, “é só copiar”. O segundo é uma citação da Monografia do Termo da Gafeira, do Abade Agostinho Saraiva, aceitando que esta obra, tal como o Tratado das Aves / Composto por / Um Prático, os artigos de jornais e revistas, mesmo sendo ficção, criam o efeito de real – é como se realmente existissem, passam a fazer parte da realidade.
 
2. Transcrições: “Ofélia [Maria das Mercês] à flor das águas como no sempre venerado Santo Shakespeare (…) Hamlet, Cena V…”; “Vem tudo em Santa Teresa [d’Ávila], Las Moradas.”; “(…) a «irmã, jardim fechado» das Escrituras (Salomão IV-3)”; “O regresso ao líquido amniótico… Correto, doktor Freud?”. Nestes exemplos, estamos parenta referências ao conteúdo de obras literárias (os três primeiros) e a teorias (o quanto). Em todos os casos, a explicitação do autor e / ou da obra é um ponto de contacto entre o texto e o intertexto. Trata-se, portanto, de alusões.

3. Imitações declaradas: “Fiz-me entender, leitor benigno?”; “(…) esta Viagem à Roda do Meu Quarto.” Estes exemplos constituem, de facto, imitações das Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett, que, por sua vez, já se tinha inspirado na Viagem à Roda do Meu Quarto, obra publicada em 1795 por Xavier de Maistre. Note-se que as personagens-tipo da obra (o Cauteleiro, o Batedor, a Estalajadeira) fazem lembrar as de Eça de Queirós ou de Gil Vicente.

4. Paródias de passagens bíblicas: “No princípio era a água e a água estava nele.”; “Porque, irmãos, é mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que fazer entrar um bebedor no reino privado dos barmen.”; «”Alegrem-se os Céus e a Terra…” Cantavam os querubins na Lagoa (…)».

5. Intertextualidade homo-autoral (textos de um autor mantêm relações intertextuais com outros do mesmo autor): em determinado passo, o narrador alude a uma obra – O Anjo Ancorado – como sendo sua, quando, na realidade, foi escrita por José Cardoso Pires.

    Em suma, o narrado, subtraindo passagens do seu contexto original, atualiza-as, subverte-as, e o novo texto ganha quase sempre um tom humorístico ou satírico. Outras vezes, a referência intertextual é sentida como uma ironia, mais ou menos amarga, chegando mesmo a raiar o sarcasmo. Assim sendo, é necessário ser furão, isto é, estar permanentemente, caso contrário, perder-se-á informação nas entrelinhas.
    Por outro lado, a intertextualidade reflete o padrão cultural da época. As referências a textos e autores assumidos como clássicos são os lugares-comuns da literatura, característicos de uma política cultural e educacional instituída. Pode interpretar-se a sua presença como uma desmistificação dessa ordem. Atente-se nos seguintes exemplos, prenhes de ironia: “Pessoa, o obrigatório”, “o sempre venerado Santo William Shakespeare”, “(…) e outros literatos menores, sem esquecer os das estátuas.”

A verosimilhança em O Delfim


    A verosimilhança é a qualidade do que é verosímil, ou seja, aquilo que, neste caso, no romance se conta é crível, dado que é semelhante à realidade.
    No caso de O Delfim, o efeito de verosimilhança é criado de diversas formas. Em primeiro lugar, convém ter presente que estamos na presença de uma narrativa narrada na primeira pessoa. De facto, o narrador conta uma história em que participa como personagem (narrador homodiegético) e que se institui como tal desde a página inicial: “Cá estou”. Desta forma, cria-se a sensação de que aquilo que o narrador relata é supostamente verdadeiro, o que é reforçado pela focalização interna. Por outro lado, o facto de a personagem-narrador percorrer os vários espaços e a descrição da paisagem natural (os estratos e as relações sociais) transmitem igualmente essa sensação de realidade. Além disso, ele contacta, de facto, com as personagens que evoca, que também o (re)conhecem. Afinal, o Sr. Escritor tem uma história de, pelo menos, um ano por aquelas bandas, que depois narra a partir da memória.
    Em segundo lugar, são introduzidos constantemente na narrativa referentes espácio-temporais históricos e universais. Essa introdução de referentes históricos, políticos, sociais e culturais – nacionais e universais –, localizados no espaço e no tempo, tornam crível que tudo é verdade. No entanto, convém ter presente que alguns referentes espaciais são fictícios. São os casos da Gafeira, da Lagoa e da Urdiceira.
    Esta coexistência de referentes reais e fictícios tem um papel importante na obra. De facto, ela faz com que a Gafeira seja um local e exista. Por exemplo, na obra consta que a localidade vem no mapa do ACP e que se situa a 135 km de Lisboa, mais concretamente no distrito de Leiria, tal como sucede com a Lagoa e a Urdiceira.
    Outro aspeto a ter em conta é a intertextualidade, ou seja, a inserção de citações e documentos na narrativa. Esses documentos têm várias proveniências: património oral, património tradicional (como, por exemplo, os provérbios e sentenças populares), citações ou alusões a obras e autores mais ou menos consagrados. Há ainda os casos da Monografia do Termo da Gafeira, do Abade Agostinho Saraiva, e o Tratado das Aves, composto por um Prático. Serão estas obras mais ou menos ficção? A mesma dúvida se coloca a propósito dos títulos e notícias de periódicos.
    O próprio narrador, nalguns casos, admite que determinados elementos são pura ficção da sua autoria. É o que acontece, por exemplo, neste passo: “Esta canção, October sigh, nunca existiu. Nem jamais alguém a poderá repetir, incluindo eu que acabo de a inventar e que não me hei de lembrar dela por muito tempo”. Noutros momentos, ele cita passagens do seu caderno de apontamentos, algumas das quais não se lembra onde as colheu (“li isto algures”, “Onde diabo fui eu buscar isto?”) e que, por vezes, surgem a título de nota de pé de página, a qual pretende garantir a veracidade, dado que a nota (quer do autor, quer do editor), por definição, tem como finalidade complementar ou esclarecer algum aspeto mais ou menos equívoco, mas sempre sobre algo que é real ou se tornou real.
    Em terceiro lugar, temos a alternância entre falar e mostrar, que é dada pela inserção alternada de discurso direto e indireto e pela pluralidade de pontos de vista. Relativamente ao discurso, o narrador prefere apresentar o discurso das personagens na sua forma mais pura: o discurso direto. Em vez de dizer o que elas disseram, dá-lhes voz no texto. No entanto, noutras ocasiões, resume as falas das personagens por uma questão de economia narrativa ou por motivos estilísticos. No que diz respeito à pluralidade de pontos de vista, a reconstituição de acontecimentos (à frente das quais as mortes) baseia-se em grande medida nos depoimentos / versões das várias personagens. Deste modo, a versão que o leitor constrói parece-lhe credível e ele sente que participa na construção do raciocínio.

Provérbios e outras expressões populares em O Delfim


    Os provérbios contribuem para o enriquecimento da linguagem do romance. Alguns deles, pelo seu uso constante, colam-se às personagens, tipificando-as. É o que sucede, por exemplo, com a frase “Para a cabra e p’ra mulher, rédea curta é o que se quer”, que traduz o marialvismo de Tomás Manuel.
    Outros, quando aplicados a Tomás Manuel da Palma Bravo, caracterizam-no indiretamente como o burguês sem lucidez, opressor e poderoso que não merece possuir esse poder: “Estes tipos quanto mais nos olham menos nos querem ver”; “tal senhor, tal cão”, “um homem dá tudo menos os cães e os cavalos”; “quem trata mal os criados é porque não me pode tratar mal a mim.”
    Outro conjunto de provérbios aplicados a esta personagem, de caráter social, comprova que a grande maioria dos mesmos é adulteração do narrador, imitando os genuínos. Os que Tomás Manuel usa são todos inventados, o que atesta uma falsa erudição da personagem.
    Pelo já exposto, estes provérbios contribuem para a crítica de cariz social e económico, para a construção de um retrato da sociedade da época. Por exemplo, no que diz respeito à mulher, essas frases retratam-na de forma depreciativa. Atentemos nos seguintes: “Rédea curta e porrada na garupa”; “Fazer filhos em mulher alheia é perder tempo e feitio.” Os mesmos sugerem o machismo da época, bem como a prepotência, a falta de liberdade e a violência a que a figura feminina estava sujeita. Por outro lado, apontam para a prepotência de Palma Bravo face a Maria das Mercês, apenas contrariado por um dito do Cauteleiro: “quem muito fornica acaba fornicado.”
    A falta de vocabulário do Engenheiro é especialmente evidenciada pelo recurso frequente ao advérbio «positivamente», que funciona como uma espécie de muleta, na qual ele se apoia sempre que lhe faltam as palavras ou como suporte de uma afirmação, à partida insustentável, e que ele procura instituir concluindo como o referido advérbio.
    A linguagem popular de Tomás Manuel é evidenciada também pelas expressões que usa para se referir às suas regras de ouro para a caça e a pesca: “na caça cão e batedor”, “os cães são a memória dos donos”, “Água para os Peixes, Vinho para os Homens (y mierda si no te gusta”).
    O caráter pitoresco da linguagem estende-se a todas as personagens, visível nos seguintes exemplos: “cala-te boca”; “quem se mata leva destino”; “preparou a cama deitou-se nela”; “toda a abundância traz castigo”; “quem não se sente não é filho de boa gente”; “mexericos do povo que onde não vê põe ouvidos”; “imaginação e velhacaria fazem boa companhia”. Pela observação destes exemplos, facilmente se comprova que muitos dos provérbios introduzidos na obra são adulterados e/ou parodiados, todavia respeitam a estrutura que lhes é inerente.
    Por seu turno, o povo, no seu conjunto, acredita em lendas, mitos, parábolas e outras historietas povoadas de fantasmas, lobisomens, cães-manetas e almas penadas. Essa crença permite ocupar o tempo, que se arrasta e demora a passar, tardando em trazer a tão ansiada mudança, a acabar com as profecias e maldições que pairam sobre a aldeia, tal como consta na Monografia do Dom Abade.
    Deste modo, podemos concluir que, por detrás da aparente simplicidade da linguagem, há uma mensagem só acessível aos leitores mais atentos, àqueles a quem o narrador se dirige, uma forma de ironizar com a censura.
    Por outro lado, o coloquialismo (“se me permitem”, “mas continuemos”, “fiz-me entender leitor benigno? fui claro monge amigo? e nós minha hospedeira?”) tem uma dupla função. Por um lado, aproxima o leitor do texto; por outro, alerta-o para a mistura de planos, para a ironia fina que está presente ao longo das páginas e para a necessidade de saber ler nas entrelinhas e não ser “alguém desprevenido”. Expressões como “a dar com um pau”, “a pata que o pôs”, “atrás de saias”, “quem o mandou ser parvo”, “que me tem feito a vida negra”, etc., tornam-se clandestinas e constituem um ferrete para o leitor que as partilha com o narrador.

A linguagem popular em O Delfim

    A Gafeira é uma aldeia situada algures na costa portuguesa, cujos habitantes são, em grande parte, rurais, simples e modestas, pelo que a linguagem que usam também se caracteriza pela simplicidade, mas não em demasia.
    A escrita coloquial do romance, em jeito de conversa com o leitor, ao jeito de Almeida Garrett nas Viagens na Minha Terra, não cai no exagero do pitoresco ou do calão, não faz uso de regionalismos, mas a expressões quotidianas. Se o narrador não tivesse tomado esta opção, a atenção do leitor poderia ser desviada do que é realmente importante: retratar as mudanças da Gafeira e não a linguagem dos seus habitantes que, tal como eles, se vai tornando clandestina. Como exemplo, podem citar-se as referências à crendice popular e à religião: “Jesus, o que são as coisas!”, ou a alusão a lendas, lengalengas, profecias, mitos, superstições e parábolas.
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