Em O Delfim, existem diversas
manifestações de intertextualidade:
1. Citações: “(…) As paredes estão na Andaluzia…
/ De repente todo o espaço para / Para, escorrega, desembrulha-se…, (…) Chuva
Oblíqua, edições Ática, Lisboa.”; «”Desta terra da Gafeira quis a
Providência fazer exemplo de castigo.”». O primeiro exemplo, o narrador
assinala com grafia diferente (o itálico) o texto, indica o seu título, nomeia
o autor (Fernando Pessoa) e refere o editor, bem como o local de edição, “é só
copiar”. O segundo é uma citação da Monografia do Termo da Gafeira, do
Abade Agostinho Saraiva, aceitando que esta obra, tal como o Tratado das
Aves / Composto por / Um Prático, os artigos de jornais e revistas, mesmo
sendo ficção, criam o efeito de real – é como se realmente existissem, passam a
fazer parte da realidade.
2. Transcrições: “Ofélia [Maria das Mercês] à flor das
águas como no sempre venerado Santo Shakespeare (…) Hamlet, Cena V…”; “Vem
tudo em Santa Teresa [d’Ávila], Las Moradas.”; “(…) a «irmã,
jardim fechado» das Escrituras (Salomão IV-3)”; “O regresso ao líquido
amniótico… Correto, doktor Freud?”. Nestes exemplos, estamos parenta
referências ao conteúdo de obras literárias (os três primeiros) e a teorias (o
quanto). Em todos os casos, a explicitação do autor e / ou da obra é um ponto
de contacto entre o texto e o intertexto. Trata-se, portanto, de alusões.
3.
Imitações declaradas: “Fiz-me entender, leitor benigno?”; “(…) esta Viagem
à Roda do Meu Quarto.” Estes exemplos constituem, de facto, imitações das Viagens
na Minha Terra, de Almeida Garrett, que, por sua vez, já se tinha inspirado
na Viagem à Roda do Meu Quarto, obra publicada em 1795 por Xavier de
Maistre. Note-se que as personagens-tipo da obra (o Cauteleiro, o Batedor, a
Estalajadeira) fazem lembrar as de Eça de Queirós ou de Gil Vicente.
4.
Paródias de passagens bíblicas: “No princípio era a água e a água estava nele.”;
“Porque, irmãos, é mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que
fazer entrar um bebedor no reino privado dos barmen.”; «”Alegrem-se os Céus e a
Terra…” Cantavam os querubins na Lagoa (…)».
5.
Intertextualidade homo-autoral (textos de um autor mantêm relações
intertextuais com outros do mesmo autor): em determinado passo, o narrador
alude a uma obra – O Anjo Ancorado – como sendo sua, quando, na realidade,
foi escrita por José Cardoso Pires.
Em
suma, o narrado, subtraindo passagens do seu contexto original, atualiza-as,
subverte-as, e o novo texto ganha quase sempre um tom humorístico ou satírico.
Outras vezes, a referência intertextual é sentida como uma ironia, mais ou
menos amarga, chegando mesmo a raiar o sarcasmo. Assim sendo, é necessário ser
furão, isto é, estar permanentemente, caso contrário, perder-se-á informação
nas entrelinhas.
Por
outro lado, a intertextualidade reflete o padrão cultural da época. As
referências a textos e autores assumidos como clássicos são os lugares-comuns
da literatura, característicos de uma política cultural e educacional instituída.
Pode interpretar-se a sua presença como uma desmistificação dessa ordem.
Atente-se nos seguintes exemplos, prenhes de ironia: “Pessoa, o obrigatório”, “o
sempre venerado Santo William Shakespeare”, “(…) e outros literatos menores,
sem esquecer os das estátuas.”
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