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terça-feira, 19 de novembro de 2019

Estabilização política – Regeneração, Rotativismo, Caciquismo


À violência da guerra civil sucedeu um período de decepção e de amolecimento político. Entre 1874 e 1851 nada aconteceu: não se legislou nada de importante, não houve conflitos graves, mas apenas rotinas parlamentares (a 1849 chamou-se o «ano da caleche», porque o facto político dominante foi a revelação no Parlamento de um caso de corrupção: Costa Cabral recebeu de um negociante uma caleche em troca de uma encomenda). É nesta penumbra que ocorre o que parecia não ser mais do que uma tentativa de revolução sem importância, porque não tinha ideias, e, portanto, não tinha nem partidários nem adversários. O marechal Saldanha, que tinha sido o comandante das tropas que combateram a Patuleia, aborreceu-se porque o substituíram no lugar de mordomo-mor e foi proclamar a revolta num quartel de Sintra. Ninguém aderiu. Dali foi a Mafra à procura de adeptos, mas em vão. Correu os quartéis de Coimbra, Viseu, Porto: só decepções. Já estava refugiado na Galiza quando soube que os regimentos do Porto resolviam aderir. Voltou à cidade e foi aclamado com entusiasmo no Teatro de São João. Um orador disse aí que não se tratava de uma revolução mais, mas do início de uma regeneração da vida nacional. Essa ideia vinha ao encontro das aspirações de todos depois dos escombros da guerra civil. E foi por Regeneração que o movimento ficou conhecido.
            A mesma dificuldade que Saldanha teve em obter soldados encontrou-a o Governo para se opor à revolta. A rainha teve de escrever para o Porto: “Faço justiça aos sentimentos do marechal Saldanha. Peço-lhe que venha imediatamente a Lisboa.” E entregou-lhe o governo.
            A política portuguesa entrou então numa longa fase de estabilidade. A Carta continuou em vigor, mas o Acto Constitucional deu satisfação a algumas reclamações setembristas: a eleição dos deputados passou a fazer-se por sufrágio directo e o Parlamento ficou com o direito de nomear comissões de inquérito aos actos do governo. Com essa emenda deixava de haver cartistas e anticartistas; a corrente conservadora assumiu a forma de Partido Regenerador, que é um cartismo adoçado, e a corrente democrática deu origem ao Partido Histórico e um pouco mais tarde ao Partido Progressista, de reminiscência setembrista. Eram, tanto um como outro, posições de centro. Ambos afirmavam a sua dedicação à realeza, ambos eram sinceramente liberais, ambos se propunham iniciar a reconstrução económica do país e meter mãos à solução da questão financeira, que, entretanto, se tinha agravado constantemente.
            Esta contiguidade ideológica e programática tornou possível que a passagem do poder de um para outro partido se processasse sem crises violentas. Estabeleceu-se então o rotativismo, que dominará a actividade política até ao fim do século.
            O rotativismo bipartidário era, na Europa, um mecanismo típico do liberalismo parlamentar. O modelo era dado pela Inglaterra: o rei, após cada acto eleitoral, entregava o Governo ao partido que saísse vencedor nas eleições; deste modo obtinha-se que o Executivo exprimisse a opinião da maioria. Mas no rotativismo português as coisas passavam-se ao contrário: não era quem ganhava as eleições que subia ao poder, mas sim quem subia ao poder que ganhava as eleições. O método para obter a concordância entre Governo e resultado eleitoral era este: de cada vez que o rei nomeava novo Ministério, decretava a dissolução das câmaras e marcava novas eleições. Destas saía sempre vencedor o partido a que pertencia o Governo que o rei tinha nomeado.
            O sistema foi muito criticado. Ficou famoso um epigrama do poeta João de Deus:
Há entre el-rei e o povo
Por certo um acordo eterno:
Forma el-rei Governo novo,
Logo o povo é do Governo
Por aquele acordo eterno
Que há entre el-rei e o povo.
Graça a esta harmonia,
Que é realmente um mistério,
Havendo tantas facções,
O Governo, o Ministério, ganha sempre as eleições!
            O “mistério” estava nas condições sociais do país. A imensa maioria da população que o sistema de sufrágio directo levava às urnas não tinha consciência política nem independência económica e os partidos não dispunham de organização para a realização de campanhas eleitorais. Para que o direito de voto se exercesse, era necessária a intervenção dos “caciques” (palavra que, através da Espanha, nos veio das Caraíbas, onde tinha o sentido de chefe de aldeia indígena). O caciquismo desempenhou função básica no sistema eleitoral: era o cacique que estava em contacto com o povo e era ele quem mandava votar. Mas, por sua vez, o cacique dependia de um chefe político e este devia pagar a corretagem dos votos a favor do seu partido. O pagamento fazia-se com nomeações, protecção e outros favores. O Governo está em condições de fazer mais favores do que a oposição e isso, além das irregularidades eleitorais, explicava que o Ministério ganhasse sempre as eleições. O caciquismo foi, pois, um sistema de facto de sufrágio indirecto, que se sobrepôs ao sistema de direito do sufrágio directo.
            A vida política baseada nesta engrenagem carecia de autenticidade; as eleições tornaram-se um dos temas predilectos do sarcasmo e da caricatura nacional. Herculano chamou-lhes uma “vil comédia”. Perdeu-se a confiança nas instituições e na representatividade dos quadros políticos. O aparelho político não tinha raiz popular e o país popular não tinha expressão política. O rotativismo foi-se assim esgotando a si mesmo e começou a desagregar-se nas últimas décadas do século pelo processo das “dissidências”, isto é, por perdas de unidade partidária que levavam ao aparecimento de novos partidos. O bipartidarismo converteu-se em pluripartidarismo, tornando impossível o funcionamento do sistema rotativo e acabando por conduzir à queda do constitucionalismo monárquico.

                                               José Hermano Saraiva, História Concisa de Portugal


A extinção das Ordens Religiosas e a venda dos bens do Clero


            Mouzinho da Silveira secularizou, ainda nos Açores, alguns conventos. Mas foi o decreto de 1843, devido a Joaquim António de Aguiar (a que, por isso, se chamou depois o Mata-Frades), que pôs termo à maioria das ordens religiosas e lhes nacionalizou os bens. O processo de extinção e confisco prolongou-se depois por muito tempo e em 1864 e após a implantação do regime republicano voltaram a verificar-se secularizações em grande escala.
            A propriedade eclesiástica tinha, em 1820, uma extensão enorme. Começara a formar-se muito antes da monarquia; muitos solos nacionalizados durante o século XIX pertenciam à Igreja desde a época visigótica. Geração após geração, esse património tinha sido aumentado por dádivas e legados testamentários, porque, durante muitos séculos, os fiéis acreditaram que o que neste mundo dessem à Igreja seria levado em conta no julgamento dos pecados, habilitando-os, portanto, a um lugar no Paraíso. Os reis lutaram, a partir de D. Afonso II, contra essa acumulação de riqueza, mas nunca conseguiram impedi-la por completo; e o que entrava uma vez na posse da Igreja não voltava a sair, porque o direito canónico proibia a alienação de bens. Não existe um cálculo seguro sobre o valor da riqueza imobiliária da Igreja e do clero ao iniciar-se a revolução liberal, mas as estimativas andam à volta de uma terça parte do conjunto das terras cultivadas. Havia, além disso, muitas centenas de edifícios e avultados bens imóveis, designadamente valores artísticos. Era nos conventos e igrejas, não nos palácios dos nobres, que se acumulava o tesouro artístico nacional.
            Tudo foi posto em hasta pública e vendido. A afluência ao mercado imobiliário de muitos milhares de grandes e pequenas propriedades, numa fase de crise económica, provocou uma grande baixa de valores e a venda rendeu muito menos do que o previsto. Poucas pessoas tinham dinheiro para comprar; em 1837, o número de prédios vendidos era já de sete mil e quinhentos, mas o número dos compradores era dez vezes menor.  O resultado social também não correspondeu às expectativas; julgava-se que da venda iria resultar a divisão, o acesso à propriedade dos cultivadores pobres, e, portanto, uma reforma agrária. De facto, os pobres eram pobres de mais para poder comprar e a operação favoreceu especuladores que dispunham de dinheiro, ou principalmente de crédito, e levou à constituição da grande propriedade. Mesmo assim, não foi possível vender tudo. Durante muitos anos, os antigos bens da Igreja, agora denominados bens nacionais, foram uma espécie de reserva a que o Estado recorria nas alturas de aperto, que aliás eram constantes. Quando, por exemplo, foi preciso pagar à Câmara de Lisboa dezasseis contos pelo terreno em que se ia construir o Teatro Nacional, em Lisboa, o Governo, para realizar esse dinheiro, teve de mandar vender o Convento da Cartuxa, de Évora, e mais três grandes herdades no Alentejo, e tudo reunido não valeu mais do que quinze contos. Por fim, na posse do estado ficaram só os grandes conventos, onde foram instalados quartéis, repartições públicas e tribunais.

                                               José Hermano Saraiva, História Concisa de Portugal


A instabilidade: Setembrismo e Cartismo


            Os primeiros dois anos da vida política constitucional foram marcados pelo desentendimento entre o Governo e o Parlamento. A rainha substituiu quatro vezes o Governo e por fim dissolveu o Parlamento e mandou fazer novas eleições. O texto constitucional em vigor era a Carta e a oposição via nisso uma das causas da inércia governativa e da deterioração política e pretendia o regresso ao regime da Constituição de 1822.
            Em Espanha, em agosto de 1836, uma revolta de sargentos (motim de Granja) forçou à reposição da Constituição democrática de 1812. Mais uma vez se manifestou a estreita ligação entre a política portuguesa e a espanhola. Em setembro do mesmo ano, um movimento revolucionário em Lisboa obrigou a rainha a pôr em vigor a Constituição de 1822.
            A revolução de setembro não foi, como as anteriores o haviam sido, um pronunciamento de chefes militares, mas um movimento popular a que depois as tropas aderiram. Este facto tem levado os historiadores a prestar-lhe muita atenção e já se tem querido ver nela uma primeira manifestação de luta do operariado e da pequena burguesia. A revolução de setembro teria sido, segundo essa tese, uma revolução do povo, que os políticos burgueses teriam depois empalmado. A militância e capacidade de mobilização popular voltaram a manifestar-se nesse ano de 1836 e foi o povo que sufocou o contragolpe da Belenzada, tentado em novembro. Mas depois disso desaparece sem vestígio, o que seria inexplicável se ela correspondesse aos impulsos de uma cada social cujos problemas depois não foram resolvidos. Mas em 1836 faltam completamente as condições económicas de base pressupostas por uma forte e activa consciência de classe; não havia indústria nem operariado e a maior parte dos empregados nas actividades fabris (arsenais e cordoaria) eram funcionários públicos. É preciso procurar outra explicação. Ela está, possivelmente, em que os revoltosos de 1836 eram antigos combatentes do exército liberal recentemente desmobilizados e que haviam acorrido a Lisboa em grande número, porque só a capital, e em especial os serviços do estado, oferecia alguma possibilidade de emprego. A sua doutrinação política era ainda a obtida nas fileiras durante a guerra, mantida depois em clubes políticos. Esse facto ajuda a compreender a capacidade de actuação militar de que deram prova em 1836-1838, a solidariedade que encontraram nas tropas, e explica que o movimento popular de Lisboa não tenha tido qualquer continuação: era o fruto de uma situação passageira e não de condições estruturais.
            O Governo saído da revolução ficou conhecido pela designação de setembrista e a palavra setembrismo serve, até ao meado do século, para exprimir a ala mais avançada do liberalismo. A sua duração política não foi longa: vai de 1836 a 1840, e esse período foi cortado por reacções violentas. Logo em 1836, partiu do palácio real uma tentativa de golpe de estado para a restauração da Carta; por detrás dela estava o apoio da Bélgica e da Inglaterra e chegou a prever-se que, em troca desse apoio, Portugal entregaria uma das suas províncias de África. A rainha anunciou a demissão do Governo, um batalhão inglês chegou a desembarcar, mas as forças populares que tinham feito a revolução de setembro pegaram em armas, ameaçaram marchar sobre o Palácio de Belém, onde a rainha se encontrava, e fizeram falhar o golpe, que fiou conhecido por Belenzada.
            Em 1837 revoltaram-se e proclamaram a Carta os quartéis de muitas cidades da província; Saldanha e Terceira assumiram o comando do movimento, que por isso se chamou revolta dos marechais. Os setembristas atribuíram-na a maquinações inglesas provocadas pela legislação tributária, que procurava diminuir a importação pela agravação da pauta alfandegária. A revolta durou de julho a setembro e acabou por ser vencida, depois de combates sangrentos.
            Entretanto, os grupos civis que tinham feito a revolução sentiam-se desapontados com ela e preparavam-se para fazer outra. Os batalhões da Guarda Nacional (organização paramilitar com armamento próprio, incluindo artilharia) eram a força do movimento. O mais activo desses batalhões era o dos arsenalistas, formado por artífices do Arsenal, e comandados por Soares Caldeira, que havia sido o verdadeiro chefe civil na revolução de setembro. O Governo da época etiquetou o movimento de anarquista, mas Caldeira era deputado e os seus discursos não revelam qualquer pensamento ou programa político próprios, mas apenas radicalismo exacerbado. De qualquer modo, os arsenalistas amedrontaram a consciência burguesa: tinham deixado crescer as barbas, diz um escritor de então, “para meterem mais terror à população inerme da capital” Na noite de 13 de março de 1838, as tropas do Governo cercaram os arsenalistas no Rossio e metralharam-nos implacavelmente.  Os mortos elevaram-se a várias centenas, ou não passaram de uma dúzia, consoante a atitude política dos narradores perante o episódio, que ficou sempre na penumbra da historiografia liberal. O «massacre do Rossio» foi, porém de consequências definitivas para o setembrismo, porque o deixou sem força que lhe servisse de esteio. O efémero movimento popular de Lisboa mergulhou a partir de então numa clandestinidade mortiça e todas as outras forças políticas eram tendencialmente conservadoras.
            As inovações legislativas de maior relevo da administração setembrista deram-se no campo da cultura:  criação dos liceus, fundação das Academias de Belas-Artes de Lisboa e do Porto, da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, da Escola Politécnica, em Lisboa. O prosseguimento da política ultramarina visou a criação, em África, de um segundo Brasil; começou então a colonização dos planaltos de Angola e foi proibida, em 1836, a importação de escravos ao sul do equador, medida que se apresentou como destinada a provocar o investimento dos capitais envolvidos no comércio da escravaria sem empreendimentos de valorização económica.
            No Parlamento, revestido de poderes constituintes, preparou-se nova Constituição (1838), que representa uma tentativa de compromisso entre a Carta e a Constituição de 1822: volta-se à divisão tripartida dos poderes, desaparecendo, portanto, o poder moderador do rei, mas mantém-se-lhe o veto absoluto e robustece-se a chefia do executivo. O Parlamento continuou, como na Carta, a ser formado por duas câmaras, mas a Câmara Alta passou a ser constituída por senadores eleitos e temporários, e não vitalícios e de escolha régia, como sucedia na Carta.
            A Constituição de 1838 não teve vida longa. Em 1842, depois de um golpe de Estado desencadeado no Porto por Costa Cabral, a rainha mandou proclamar outra vez a Carta como constituição política do País.
            Costa Cabral, de origem popular e camponesa, tinha sido um dos chefes dos arsenalistas. Em breves anos passou da esquerda radical para a direita cartista; em 1839 era já ele o homem do poder, onde representava aquilo a que se chamava a linha «ordeira». Esta viragem, agravada pela situação sem precedentes de se ter revoltado e ter derrubado o próprio Governo de que fazia parte, fez enorme escândalo. Mas a severidade das censuras que, de todos os lados, fulminaram o ministro não se explica tanto pela acrobacia política (por exemplo, Saldanha deu saltos desses durante toda a vida) como pelo facto de ter rompido o quadro dos conceitos românticos que pautavam a acção política. Costa Cabral foi o primeiro representante do realismo político. Como todos os realistas, preocupou-se menos com os princípios do que com os factos, menos com o futuro do que com o presente. Os objectivos que se propôs atingir foram a restauração da ordem no Estado, a eficiência do serviço público, a docilidade da opinião política. Algumas reformas importantes recaíram sobre o sistema tributário e a contabilidade pública, os serviços de saúde, a organização administrativa, na qual abandonou o rumo romântico de uma descentralização para a qual se invocava a tradição medieval e optou pela subordinação das autarquias ao poder central. Entre essas duas linhas abriu-se a partir de então uma contradita que chegaria aos nossos dias.
                                               José Hermano Saraiva, História Concisa de Portugal


A guerra civil


            A situação de guerra civil dominou o país de 1828 até 1834. A primeira reacção militar contra o novo absolutismo deu-se logo em 1828, com uma revolta que, centrada no Porto, alargou a quase todas a s cidades para o norte do Mondego, com a adesão de oficiais que sublevaram as guarnições. Já nessa altura estavam refugiados em Inglaterra os principais chefes da causa liberal: Palmela, Terceira, Saldanha. Ao saberem dos acontecimentos de Portugal, fretaram um velho vapor, o Belfast, que os levou ao Porto, onde instalaram um Governo provisório. O mesmo navio lhes serviu para abandonarem a cidade à aproximação do exército miguelista. Esse episódio serviu para crismar a revolta, que ficou conhecida como a Belfastada. As tropas liberais saíram da cidade e conseguiram chegar à Galiza, onde uma parte embarcou para Inglaterra. O rescaldo da revolta foi o ensejo da primeira grande manifestação de terror miguelista: mais de mil prisões, julgamentos sumários, numerosas condenações à forca, das quais só se puderam cumprir doze porque a maioria dos condenados estava em Inglaterra. As profissões dos enforcados são boa amostra da composição social do partido liberal: quatro juristas, quatro funcionários públicos, quatro militares (três oficiais e um sargento). Desde 1820, as ideias liberais tinham conquistado muita gente e agora já não apenas no sector intelectual, mas em todas as camadas da população. A lista dos seiscentos e dezoito presos políticos que, entre 1828 e 1833, entraram na cadeia de São Julião da Barra é muito expressiva: 277 militares, 93 estudantes, professores e membros de profissões universitárias, 87 de profissões ligadas com o comércio, 78 com profissões populares, 52 funcionários públicos, 44 eclesiásticos, 31 proprietários e lavradores.
            Pela mesma altura revoltaram-se a favor dos liberais a Madeira e a ilha Terceira. A primeira foi dominada pelos miguelistas, mas a revolta terceirense aguentou-se firmemente e veio a ter consequências decisivas. Para ali se dirigiram os refugiados da Inglaterra quando o Governo inglês lhes começou a criar dificuldades e ali se puderam reunir forças dispersas do liberalismo perseguido.
            Mas em 1830 deu-se uma viragem na política europeia. Em Paris, a revolução de julho derrubou de vez a sobrevivência do Antigo Regime, representada pela monarquia aristocrática de Carlos X. A Santa Aliança revelou ter perdido então toda a sua força de dique anti-revolucionário e os movimentos liberais reanimaram-se fogosamente na Europa. Em Lisboa houve duas revoltas em 1831, uma delas movida pelos sargentos e liquidada por furiosos combates que fizeram mais de duzentos mortos. No próprio Brasil o vento de 1830 se fez sentir, aumentando a oposição popular ao Governo do imperador. Em 7 de Abril de 1831, perante um tumulto, D. Pedro abdicou da coroa imperial e embarcou para Inglaterra, parece que com a intenção de recuperar o trono português. Mas não encontrou apoio político da França nem da Inglaterra e passou a usar o título de duque de Bragança, regente de Portugal até que a rainha, sua filha, pudesse exercer o poder.
            Durante os meses que passou em Londres, conseguiu dinheiro emprestado, comprou navios de guerra, armas, recrutou mercenários. No ano imediato seguiu para os Açores e ali organizou a expedição que, em 8 de julho de 1832, desembarcou no Mindelo, numa praia escusa que ficava a cerca de três léguas da cidade do Porto.
            A esperança em que D. Pedro ia de ser recebido triunfalmente como libertador não se confirmou. O primeiro oficial enviado a terra para convencer as tropas miguelistas a aderir foi ameaçado de fuzilamento e reembarcou entre apupos e vivas a D. Miguel. A resistência ao desembarque ficou por aí. O exército invasor avançou sobre o Porto, que o exército miguelista abandonou sem combater.
            Durante um ano, a guerra limitou-se ao cerco do Porto. A desproporção das forças era grande: cerca de 80000 homens do lado miguelista, 7500 liberais. Mas uma hábil linha de fortificação foi criada à volta da cidade todos os esforços esbarraram contra ela. A esquadra garantiu sempre o acesso ao mar e isso permitiu o abastecimento de armas, mantimentos e soldados comprados ou recrutados em Inglaterra e França. A população portuense aderiu com firmeza à causa de D. Pedro e ajudou-o com dinheiro, trabalho, contingentes de soldados. Mas a situação agravava-se de mês para mês. A derrota chegou a parecer inevitável e fizeram-se diligências para uma mediação inglesa.
            Em junho de 1833 foi enviado ao Algarve um corpo de tropas para obrigar o exército absolutista a distrair forças, aliviando a pressão sobre o Porto. As províncias do Sul não estavam preparadas para a guerra e a pequena expedição pôde, quase sem resistência, apoderar-se do Algarve e marchar depois para Lisboa, onde entrou sem luta em 24 de julho.
            A ocupação da capital decidiu a guerra. A Inglaterra e a França reconheceram o Governo liberal. A luta continuou ainda, sangrenta e movimentada, por mais um ano, mas os absolutistas, enfraquecidos pelo desânimo, pelas deserções e pelas sucessivas derrotas, acabaram por depor as armas em maio de 1834 (Convenção de Évora Monte). D. Miguel embarcou para o exílio entre vaias populares, protegido por um esquadrão de cavalaria do exército vencedor.

                                               José Hermano Saraiva, História Concisa de Portugal


O regresso ao Absolutismo


            A evolução política espanhola decidiu a sorte da primeira experiência constitucional portuguesa. Fê-la nascer e fê-la morrer. Em 1823, um exército francês, agindo na execução do programa político antiliberal da Santa Aliança, penetrou em Espanha, derrotou os partidários da Constituição de 1812 e restaurou a monarquia absoluta. O facto não demorou muito a repercutir-se em Portugal.
            Por outro lado, a independência do Brasil (setembro de 1822) infligiu um golpe mortal nas Cortes e emprestou aos liberais grande impopularidade. Muita gente notava agora que um dos principais objectivos da Revolução, o de trazer de novo o Brasil à condição de colónia, falhara, disso culpando as Cortes. De forma semelhante, a crise económica iniciada por volta de 1817 e que afetava sobretudo a burguesia, impelindo-a para a Revolução, chegara ao seu termo, retirando a esta a sua justificação principal e empurrando aquela para uma prudência compreensível. O partido liberal, no poder, depressa se viu isolado e falho de apoio.
            Em Lisboa, o próprio palácio real conduzia a reacção às novas instituições. Os conspiradores uniam-se à volta de D. Carlota Joaquina, irmã do rei de Espanha e aguerrida adversária dos liberais, que chegou a recusar-se a jurar a Constituição. O infante D. Miguel, servia-lhe de instrumento para os manejos contra-revolucionários. Entretanto, o entusiasmo nos milagres que se esperavam da Constituição ia arrefecendo; o clero e a nobreza hostilizavam abertamente a revolução e o Governo parlamentar, cujas leis já não deixavam dúvidas de que os seus privilégios iam acabar. A burguesia ligada aos negócios sentiu-se desapontada com o rumo tomado pela questão do Brasil.
            Em 27 de Maio de 1823, o infante D. Miguel lançou em Vila Franca de Xira o pregão da revolta e proclamou a restauração do Absolutismo: “É tempo de quebrar o férreo jugo em que ignominiosamente vivemos.” O jugo era o liberalismo. A guarnição de Lisboa foi juntar-se aos revoltosos. Sem forças para resistir, as Cortes dissolveram-se e o rei aceitou os factos consumados, suspendendo a vigência da Constituição de 1822 e prometendo a promulgação de nova lei fundamental que garantisse «a segurança pessoal, a propriedade e os empregos». A essa revolta, que marca o fim do primeiro período constitucional, se ficou a chamar a Vila-Francada.
            Embora o infante D. Miguel se apresentasse como a cabeça do movimento anticonstitucional conhecido por Vila-Francada, não era de facto mais do que um instrumento nas mãos de vasto grupo de pessoas, onde alguns dos revoltosos de 1820 desempenhavam papel de relevo. Todavia, e exactamente como sucedera em 1820, a contra-revolução podia agora definir-se como um movimento «contra» qualquer coisa, mais do que a favor de um ideário e de uma acção precisos. Tudo isto se tornou claro à medida que o tempo foi passando e os contra-revolucionários se dividiram numa ala direita extremista chefiada por D. Miguel e por sua mãe, e numa ala moderada do centro, simbolizada pelo rei e pelo Governo. Descontente e impaciente, a primeira voltou a conspirar e revoltou-se uma vez mais em abril de 1824 (Abrilada).
            D. João VI procurou refúgio a bordo de um navio de guerra inglês surto no Tejo e, daí, apoiado pela Inglaterra, obrigou D. Miguel a submeter-se. O infante deixou o país e o partido do centro voltou ao poder. Até à morte do rei (março de 1826), Portugal foi governado por um absolutismo moderado, ainda que, sem dúvida, mais virado para a Direita do que para a Esquerda. A prometida Constituição nunca se concretizou, anunciando até o monarca a sua intenção de convocar as Cortes á maneira antiga. Numerosos liberais fugiram do país, exilando-se em Inglaterra e em França.
            A morte de D. João VI veio criar um problema de difícil resolução. O filho primogénito, D. Pedro, era o imperador do Brasil. E embora ninguém tivesse, até à data, posto em dúvida os seus direitos ao trono de Portugal, parecia óbvio que nem brasileiros nem portugueses aceitariam uma reunião das suas coroas, mesmo com estatutos separados e autónomos. Assim, D. Pedro, aclamado em Portugal como D. Pedro IV logo que seu pai morreu, abdicou sem demora (uma semana depois de o falecimento do rei ser conhecido no Brasil) a favor de sua filha Maria da Glória – uma menina de sete anos – sob a condição de ela casar com seu tio D. Miguel, ao qual era confiada a regência do Reino. Ao mesmo tempo, D. Pedro outorgava a Portugal uma constituição conservadora (Carta Constitucional), apressadamente redigida. Concedeu também uma amnistia e nomeou os primeiros Pares do Reino, escolhidos tanto entre os partidários do Absolutismo como do Liberalismo. D. Pedro tentava assim continuar a política de compromisso de seu pai, até ao extremo de chamar D. Miguel, cabeça da facção extremista, e de lhe confiar plenos poderes governativos durante, pelo menos, onze anos.
            Em Portugal, e apesar de muita gente criticar as abruptas decisões de D. Pedro (tomadas sem primeiramente jurar o tradicional voto de fidelidade à Nação) e rejeitar a ideia de uma Constituição, aquela solução foi geralmente aceite. A regente interina, infanta Isabel Maria, fez aclamar a nova rainha (D. Maria II) e jurara a Carta em todo o país, organizando ao mesmo tempo as eleições para as novas Cortes. Em Viena (onde D. Miguel estava a residir), o infante e futuro regente aceitou as condições do seu irmão, jurou a Carta e realizou os esponsais com a sobrinha. Nos fins de 1827 deixou a Áustria, chegando a Portugal, via Paris e Londres, em fevereiro de 1828.
            Já então se desvanecera por completo o primitivo clima de conciliação. Os liberais, dotados novamente de uma constituição e de um Parlamento, gritavam vitória e exibiam-se nas ruas em manifestações arrogantes. Os absolutistas davam-se conta de que a manutenção do statu quo significava derrota e um regresso ao odioso período constitucional. Não tardaram a invocar toda a espécie de razões para provar que D. Pedro não tinha direito à coroa – visto que proclamara a independência do Brasil e traíra, consequentemente, Portugal – e que, portanto, não a podia transmitir a ninguém. D. Miguel, alegavam, era o legítimo herdeiro e soberano. Aqui e além registaram-se levantamentos militares e guerrilhas. Por curto espaço de tempo, em 1826-27, houve mesmo um esboço de guerra civil com auxílio espanhol.
            O Governo tinha pouca força e menos decisão para conter as erupções de violência. Mas era claro que se inclinava mais para a corrente absolutista do que para a liberal. A fim de se proteger a si próprio e à situação vigente, solicitou até ao Governo inglês o envio de um contingente militar que se manteve estacionado em Lisboa durante algum tempo.
            De regresso ao país, D. Miguel jurou novamente fidelidade a D. Pedro e a D. Maria II, assim como à Constituição. Estava, todavia, sujeito a pressões constantes, oriundas de todos os grupos sociais e, principalmente, dos seus conselheiros mais chegados, para esquecer juramentos e se fazer proclamar rei absoluto. Os Governos austríaco e espanhol também se mostravam favoráveis à restauração do Absolutismo. Em março de 1828, D. Miguel dissolveu as Cortes, voltando a convocá-las em maio seguinte, mas à maneira antiga, por ordens. Nelas foi proclamado rei (julho de 1828), ao que imediatamente anuiu. As potências estrangeiras retiraram os seus representantes diplomáticos até 1829, data em que quase todas elas – mas não as três principais, Inglaterra, França e Áustria – formalmente reconheceram a realeza miguelista.

                                               A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal


As guerras liberais


            D. Pedro de Alcântara era, como filho primogénito, o legítimo herdeiro de D. João VI, monarca que o reconhecera assim ao dar-lhe o tratamento de imperador do Brasil e príncipe real de Portugal e dos Algarves. Mas D. João VI temia intrigas e complicações por parte dos seus familiares, principalmente de sua esposa e de seu filho D. Miguel que se encontrava em Viena, no exílio. Morto D. João VI, D. Pedro via-se na posse de duas coroas: a de Portugal e a do Brasil. Qual dos tronos devia abandonar? Abdicou, então, da coroa portuguesa em sua filha mais velha, D. Maria da Glória, captando assim as simpatias dos portugueses aos quais outorgaria uma Carta Constitucional pela qual realizava a promessa liberal que seu pai não tivera oportunidade de cumprir. Uma das cláusulas da sua abdicação era o casamento da jovem rainha com o seu tio, o infante D. Miguel, irmão de D. Pedro em quem este depositava, na altura, bastante confiança, tanto mais que seu irmão se prontificara a jurar a Constituição e a declarar obediência. D. Miguel entra, desta forma, para o exercício do poder constitucional conforme acordo familiar, que o próprio D. Pedro arquitectara. Mas o procedimento de D. Miguel e dos seus partidários tornam a situação tão nebulosa que será preciso esclarecer definitivamente: o País teria de escolher entre os dois irmãos e o que eles representavam. Fazendo-se aclamar rei absoluto pelas cortes convocadas à moda antiga, D. Miguel alcançava o poder supremo e quebrava todas as ligações com a Carta. Tinha esse poder de facto e por usurpação, diziam os liberais; tinha-o de facto e de direito, diziam os absolutistas. Senhores do Poder, os imperialistas estabelecem a repressão integral como o melhor processo de se firmarem e, ao mesmo tempo, de reduzir à impotência os simpatizantes liberais. A resposta destes é a revolta militar que, dentro em pouco, domina o território português.

O Absolutismo e o Movimento Liberal

            O regime absoluto, em Portugal, teve uma vida longa e segura. Os reis gozavam de uma autoridade firme, uma vez que nunca se criaram, ao seu lado, corpos políticos organizados a que tivessem de fazer frente. O poder soberano vinha-lhes de Deus. Sofre, é certo, alterações no tempo do Marquês de Pombal, cujo regime teve o grande mérito de (involuntariamente) preparar o País para a revolução liberal do século XIX. Tanto a Igreja como a nobreza sofreram um golpe mortal de que nunca conseguiram recompor-se. Ao mesmo tempo foi dado à burguesia (homens de negócio e burocratas) o poder de que necessitava para tomar conta da administração e do domínio económico do País. Ao nivelar todas as classes, leis e instituições ante o despotismo único do rei, Pombal preparou a revolução da igualdade social e o fim dos privilégios feudais; ao mesmo tempo que, reforçando a máquina repressiva estadual e rejeitando toda e qualquer interferência da Igreja, preparou a rebelião contra a opressão laica e, portanto, a revolução da liberdade.
            A estrutura absolutista portuguesa entrou em crise no segundo quartel do século XIX sob a acção de múltiplos e poderosos golpes, entre os quais se destacam as invasões francesas, as grandes transformações técnicas, a independência do Brasil, etc... E, ao fim de quase vinte anos de lutas, a monarquia absoluta baquearia em 1834.
            Efetivamente, Portugal, após a explosão revolucionária francesa, iniciaria, com alguma continuidade, a sua hesitante e sinuosa experiência liberal. Isolado do torvelinho europeu, não só pela geografia, mas sobretudo pelo seu atraso no tocante à evolução económica, técnica, social e mental, o País, empedernido em rotinas ancestrais, resistiu, naturalmente, à onda de inovação. 1808 é a data da primeira tentativa liberal de consciencialização política dos problemas nacionais. Mas será à guarnição militar do Porto que caberá a tarefa de, em 24 de agosto de 1820, desembainhar as suas espadas para proclamar extinto o regime absolutista e abrir as vias à regeneração da Pátria, humilhada e desmembrada.
            A situação portuguesa era, em 1820, de crise em todos os planos da vida nacional: crise política, causada pela ausência do rei e dos órgãos do Governo no Brasil; crise ideológica, nascida da progressiva difusão, nas cidades, de ideias políticas que consideravam a monarquia absoluta um regime opressivo e obsoleto; crise económica, resultante da emancipação económica do Brasil; crise militar, originada pela presença dos oficiais ingleses nos altos postos do exército e pela emulação dos oficiais portugueses, que se viam preteridos nas promoções.
            A estes factores internos de inquietação somava-se a situação política da Espanha. Durante o período das lutas napoleónicas, os resistentes espanhóis tinham aprovado uma Constituição (Constituição de Cádis, 1812) que estava em vigor quando, após a queda de Napoleão, o rei Fernando VII pôde regressar a Espanha; suspensa então a Constituição, Fernando VII governou como rei absoluto, mas em 1820 um pronunciamento militar em Cádis, rapidamente secundado por muitas províncias, obrigou o rei a voltar ao regime constitucional (março de 1820).
            Foi nesta conjuntura que surgiu a revolução de 1820. A iniciativa partiu de um pequeno grupo de burgueses portuenses, homens politicamente doutrinados, que haviam, em 1818, formado uma tertúlia política, o Sinédrio, cujo objetivo era manter o contacto e discutir a evolução da situação em Portugal e em Espanha.
            Os intelectuais do Sinédrio não tiveram dificuldade em obter a adesão de muitos militares das guarnições do Norte. Em 24 de agosto de 1820, um regimento de artilharia saiu do seu quartel, ouviu missa campal debaixo da formatura e, com uma salva de vinte e um tiros, anunciou que estava feita a revolução. Um dos coronéis leu uma proclamação onde se dizia: «Vamos com os nossos irmãos de armas organizar um Governo provisional que chame as Cortes a fazerem uma Constituição, cuja falta é a origem de todos os nossos males.»
            Iniciaram-se os preparativos para uma marcha sobre Lisboa, onde entretanto a regência reunia forças para se opor à revolução do Porto. Mas em 15 de setembro as tropas de Lisboa revoltaram-se também aderindo ao movimento.
            A revolução não encontrou qualquer resistência e despertou um enorme entusiasmo. Acreditava-se que se entrara numa era nova da história e via-se na futura Constituição a solução miraculosa de todos os problemas portugueses. Num dos numerosos folhetos que, em prosa e verso, saudaram a revolução, dizia-se que se estavam vivendo “dias cheios de sucesso tão gloriosos para a nação portuguesa que a sua narração será difícil de acreditar-se em épocas futuras, pois a nós mesmos, que os presenciamos, parecem mais sonhos que realidades. Dias que nos abrem a estrada de um porvir radioso, qual vem a ser o que nos prometem sábias leis.”
            Foi também com entusiasmo que a revolução foi recebida no Brasil, mas aí por outros motivos. Os naturais viam na gente da corte uma presença incómoda e forasteira. Muitos comerciantes eram portugueses e viam na revolução a oportunidade de restabelecer os antigos privilégios do comércio português, sem os quais aguentavam mal a concorrência das firmas estrangeiras, instaladas a partir de 1808 em grande número. Brasileiros e portugueses acharam-se assim reunidos no apoio à revolução liberal. Eclodiram revoltas liberais no Pará, na Baía e no Rio de Janeiro. Esta última partiu da guarnição militar portuguesa. O príncipe herdeiro D. Pedro serviu de interlocutor entre o rei e as tropas revoltadas e o rei acabou por jurar que aceitaria a Constituição que as Cortes de Lisboa viessem a decretar, qualquer que ela fosse (24 de fevereiro de 1821). A partir de então, o príncipe D. Pedro passou a ter papel de grande relevo nos movimentos políticos brasileiros, já todos orientados para a independência política. O rei iniciou preparativos para regressar a Portugal, acatando as exigências das cortes de Lisboa e as insistentes recomendações dois ingleses, que viam no vácuo deixado pela saída da corte um factor favorável à expansão dos seus próprios interesses.
            A maior parte dos homens que formavam o Sinédrio tinha ligações com o comércio. Isto levou muitos escritores a classificar a revolução de 1820 como uma revolução burguesa. É uma afirmação só verdadeira em certo sentido. Sabe-se que foi a força ascendente das burguesias que provocou os grandes movimentos liberais europeus: tendo nas mãos o poder económico, os burgueses lançaram-se à conquista do poder político. Nada de semelhante ocorreu em Portugal em 1820: a burguesia estava em declínio; a classe média era formada principalmente por proprietários rurais, uns nobres e outros que aspiravam a viver como se o fossem e não estavam interessados numa revolução que de qualquer modo pudesse lembrar a Revolução Francesa. De facto, se alguns membros do Sinédrio eram comerciantes, outros eram proprietários e outros ainda militares nobres; o que havia de comum entre todos era serem pessoas cultas. O seu liberalismo tinha na base não uma situação económica, mas a leitura de livros estrangeiros, as ideias bebidas no convívio universitário e nas lojas maçónicas. É nesse sentido que se pode dizer que a revolução de 1820 foi burguesa: foi a revolução da ilustração, numa época em que a ilustração era característica quase exclusiva da gente burguesa.
            Esse carácter doutrinário veio a ter consequências importantes. Foi uma revolução nascida de teorias, não de factos; a política foi desde então muitas vezes uma polémica teórica, uma política de argumentos e não de procura de soluções directas. Isso viria a fazer surgir a oposição entre dois tipos de acção política: a que pensa mas não resolve, a que se justifica de não pensar como resolver. O cabralismo foi a primeira fase de triunfo desta segunda linha. Outro resultado do doutrinarismo foi o adiamento da adesão das camadas populares, sobretudo da província, ao estado liberal. Este explicava-se não em propostas concretas de solução de problemas, mas em apologias de novos valores de cultura política, que o povo não tinha sido preparado para entender. O povo rural era, na sua quase totalidade, analfabeto e estava impregnado de uma cultura de tipo tradicional e religioso. A única organização que enquadrava a totalidade da população e mantinha com ela permanente contacto era o clero. Ora o doutrinarismo dos liberais de 1820 era anticlerical e isso desencadeou desde o princípio uma situação de conflito, que levou o clero a declarar a revolução «inimiga do trono e do altar».

                                               José Hermano Saraiva, História Concisa de Portugal

            O processo liberal assentou em dados económicos, sociais e mentais. Basta, para compreender este arrazoado, determo-nos um pouco no estudo das bases para a Constituição de 1822. «Eis tais bases pela ordem por que foram enunciadas: Secção 1, Dos Direitos Individuais do Cidadão: liberdade, segurança e direito de propriedade; liberdade individual, que consiste em “fazer tudo o que a lei não proíbe”, em não ser preso sem culpa formada nem julgado senão de acordo com as leis, na disposição da sua propriedade, na comunicação do pensamento, “sem dependência de censura prévia”; tribunal especial para “proteger a liberdade de imprensa e coibir os delitos resultantes do seu abuso”; quanto às “matérias religiosas, fica salva aos bispos a censura dos escritos publicados obre dogma e moral”; igualdade da lei para todos; abolição da “confiscação dos bens, da infâmia, dos açoutes, do baraço e pregão, da marca de ferro quente, da tortura”; direito geral de concorrer aos lugares públicos; direito de reclamação, queixa ou petição; inviolabilidade da correspondência. Secção II, Da Nação Portuguesa, Sua Religião, Governo e Dinastia: “a Nação portuguesa é a união de todos os portugueses de ambos os hemisférios”; “a sua religião é a católica apostólica romana”; o governo será a monarquia constitucional hereditária; “a soberania reside essencialmente em a Nação”, que “é livre e independente, e não pode ser património de ninguém”; só a Nação, representada pelas Cortes, pode fazer a Constituição; só passados quatro anos poderá esta ser alterada; divisão dos poderes – legislativo, executivo e judiciário; “a lei é a vontade dos cidadãos declarada pelos seus representantes juntos em Cortes”; só estas detêm a iniciativa das leis; as Cortes reunir-se-iam, anualmente, durante três meses, sem que o rei pudesse prorrogá-las ou dissolvê-las; a inviolabilidade e irresponsabilidade dos deputados pelas suas opiniões; às Cortes competiria nomear regências, aprovar os tratados, admitir tropas estrangeiras no território nacional, “determinar o valor, peso, lei e tipo das moedas”; a convocação extraordinária das Cortes seria feita por uma “junta de sete indivíduos”, que permaneceria na capital; a inviolabilidade do rei, responsabilidade dos ministros; as Cortes arbitrariam “uma dotação conveniente” ao rei e à família real; criação do Conselho de estado; caberia às Cortes a imposição e a distribuição de tributos, dos quais não seria isenta “pessoa ou corporação alguma”; reconhecimento da dívida pública e criação dos meios para o seu pagamento; força militar permanente de terra e mar; “as Cortes farão e dotarão estabelecimentos de caridade e instrução pública.”.


Romantismo: correntes que marcaram o pensamento europeu

Idealismo alemão (Hegel, Fichte, Schelling):
. Hegel ® o conhecimento humano baseia-se na IDEIA (fusão de natureza e espírito);
                                    ® a História é o desenvolvimento contínuo da ideia absoluta por meio de um                                                processo dialéctico (tese, antítese, síntese).
. Fichte é o filósofo da infinitude do EU, da sua absoluta actividade e espontaneidade e da sua liberdade. O EU é uma imagem de Deus.
            A forma política será o estado monárquico de direito.

Racionalismo: consequência da revolução liberal francesa que se espalha por toda a Europa ¾® identifica-se o indivíduo com a sua sociedade, exaltam-se os valores populares e procuram-se os elementos do espírito novo (língua, raças, costumes).

Liberalismo: o homem dotado de razão é um ser superior que necessita de liberdade. Para evitar abusos do poder, preconiza a divisão do poder legislativo, executivo e judicial.

Socialismo utópico: defende o proletariado, na sequência da miséria causada pelo desemprego provocado pelas máquinas e pela exploração do trabalho infantil.

domingo, 29 de setembro de 2019

O fracasso da tentativa holandesa


            A Holanda, estabelecida em Pernambuco, não abandona a ideia de conquistar a Baía, cuja capital – Salvador, que o era também do Estado Geral – era a chave natural de todo o Estado. E Nassau, o chefe escolhido pela Companhia das Índias Ocidentais para realizar a conquista, aliando brilhantes qualidades de chefe político a superiores virtudes de chefe militar, fundeia a 16 de abril de 1638, ao norte da cidade.
            Situação aflitiva. Salvador, com a sua guarnição reduzida a 1500 homens, a que se somavam os 1000 que o General Conde de Bagnuolo havia trazido do Recife, rechaçados pelo inimigo. Impossível qualquer socorro do Sul, porque, vigiando os mares e batendo as costas, por lá andava a esquadra de Lichthardt.
            Felizmente, nem aos sitiados faltou a coragem, nem aos sitiantes sobrou a perícia estratégica. Os combates realizaram-se fora da cidade, em trincheiras, uma das quais, junto da igreja de Santo António, foi a mais intensamente martelada. Os holandeses, apesar da superioridade numérica, não conseguiram, vencendo a resistência, entrar na cidade. E a táctica do seu general toda se reduziu a evitar aos seus homens passar de sitiantes a sitiados, preparando-lhes uma retirada sem aumento de perdas.
            Vieira comemorou em dois sermões o triunfo português. Fê-lo admiravelmente, numa estranha aliança de realismo e de profetismo, mas atento à verdade histórica. Lucidamente a via em todas as circunstâncias, mas, sobreposto a ela e adaptando-se-lhe sempre, o plano do transcendente bíblico, pelo qual tudo era explicado; porque entre o natural e o sobrenatural não vê ele apenas uma relação de semelhança, mas de causalidade, mais de uma vez os ligando como a profecia com a realidade em que se verifica. Ao seu realismo fantástico, não basta afirmar a assistência de Deus à defesa, pelos Portugueses, do Seu reinado na terra; é preciso que tudo seja circunstancialmente explicado por uma divina protecção antecipadamente inscrita na economia religiosa do Mundo, prefigurada frequentemente na história do povo hebreu.


O contexto de produção do Sermão de Santo António aos Peixes


            São Luís do Maranhão foi tomado aos franceses em 1615. O seu território estendia-se pelas duas margens do Amazonas, até às indefinidas fronteiras do Peru. O estado do Maranhão, independente do do Brasil, foi oficialmente criado em 1621. Integrava duas grandes capitanias-gerais: a do Pará, com sede em Belém do Pará, e a de São Luís do Maranhão, que era a capital de todo o estado.
            Ainda em 1662, depois da partida do Padre Vieira, apenas algumas centenas de portugueses, menos de um milhar, povoavam essa imensa região. Todos eles viviam do trabalho dos índios, em grandes fazendas auto-suficientes. Algumas produções, sobretudo o açúcar e o tabaco, constituíam o grosso das exportações para a metrópole, que, em troca, enviava artigos manufacturados. O tecido de algodão era a moeda corrente.
            Exploravam-se os índios como trabalhadores “livres” ou como escravos. No primeiro caso, eles dependiam das autoridades reais; no segundo, eram, na sua maior parte, propriedade privada dos colonos ou moradores. Geravam-se conflitos, por vezes sangrentos, entre os moradores e os funcionários do rei, já que ambos os campos pretendiam apoderar-se do maior número possível de índios. O rei devia arbitrar esses conflitos tendo em conta que o auxílio e a boa vontade dos índios eram indispensáveis à defesa da soberania portuguesa contra os holandeses, que continuavam a dominar ao norte do Brasil, e ainda à expansão em direcção ao Peru.
            Para esta tarefa, o rei contava com o precioso apoio das ordens religiosas. Depois de uma breve experiência dos jesuítas, em 1642 as missões são confiadas, em todo o território, aos franciscanos. Estes deparam, por volta de 1636, com o seu próprio fracasso, em boa parte devido ao facto de, não querendo ou não podendo explorar o trabalho dos índios, terem de se contentar com uma doação real que, além do mais, não lhes era entregue com a devida regularidade. Defrontavam, ainda, como adversários, alguns dos jesuítas que se tinham deixado ficar sob a direcção do Padre Luís Figueira.
            Depois do fracasso dos franciscanos, os jesuítas preparam uma grande investida missionária e obtêm, em 1643, a exclusividade das missões do Maranhão. Segue de Lisboa uma missão, dirigida pelo Padre Figueira, mas a maior parte dos seus elementos perecem num naufrágio na costa da ilha de Morajó.
            No que respeita ao estatuto jurídico dos índios em todo o Brasil, sucediam-se leis contraditórias, num movimento pendular, desde a de 1570, que havia proibido a escravidão dos índios. Mais recentemente, a lei de 30 de junho de 1607 estabelecera a igualdade de direitos entre os índios e os portugueses; mas uma outra, de 10 de setembro de 1611, estabelecera a escravatura dos índios feitos prisioneiros em guerra “justa”, assim como a dos índios encontrados em vias de serem mortos por outros índios (índios de corda), sendo o tempo desta última espécie de escravatura limitado a dez anos. Inspirada pelos jesuítas, a lei de 1609 punha todos os índios sob a administração e protecção dos padres. Em contrapartida, a de 1611 colocava as aldeias de índios “livres” sob o governo de administradores laicos, chamados capitães, que tinham o encargo de repartir pelos colonos a mão-de-obra índia. Tal era a lei quando o novo estado foi criado.
            A lei promulgada, regulando a liberdade dos índios e suas restrições, foi sofismada até sua quase completa inutilidade. O Padre Vieira, reconhecendo-a, ineficaz, enquanto não fosse evitada a intervenção civil na cristianização e civilização dos selvícolas, pela entrega do seu governo exclusivamente aos seus párocos, procurou obter a assinatura de todos os principais da cidade de S. Luís, afetos à Companhia, para uma representação a dirigir ao rei. Logo que os colonos tiveram do caso conhecimento, houve celeuma breve, e é em tal momento que a pugnacidade de Vieira atira do alto do púlpito, contra os inimigos da sua política indígena, os dardos tão brilhantes como percucientes desta sátira. A causticidade da ironia, a expressividade dos símbolos, o poder de observação no descritivo, com trechos de imperecível beleza clássica, o relevo, o brilho, a graça da linguagem, até a própria orgânica do sermão – primeiro a alegoria da vida colonial em conjunto, depois as várias alegorias representando em várias espécies de peixes os vários tipos de colonos mais susceptíveis de caricatura, tudo na peça é de novidade impressionante.
            Em suma, é dentro do contexto das lutas que opõem os jesuítas e os colonos, por causa da exploração desumana dos indígenas, que Vieira , defensor dos seus direitos e da abolição das leis que os tornavam cativos, profere este discurso. Tentou comunicar, por cartas, a D. João IV a situação que se vivia no Brasil, à qual se seguiram outras. Foi por não ver sucesso nesta sua empresa que embarcou para Lisboa a 14 de junho de 1654, para colocar o rei ao corrente de tudo. Aproveitando o facto de 13 de junho ser, no calendário litúrgico, o dia de Santo António, pronunciou o Sermão de Santo António aos Peixes, que deixou enraivecidos os colonos.
            Em Lisboa, após uma viagem atribulada, tentou alterar as leis, de forma a limitar o poder dos colonos sobre a exploração dos índios.
            Finalmente, em abril de 1655, conseguiu que fosse dada a «exclusividade da faina das missões» aos jesuítas. Daí que uma das temáticas do Sermão de Santo António seja a denúncia das atrocidades que os índios sofriam às mãos dos colonos portugueses. Toda a crítica assenta na utilização da alegoria, pois os símbolos simbolizam os vícios dos homens.


A Contrarreforma e o sermão

            A 31 de outubro de 1517, Lutero, «mestre em Filosofia» (1505) pela Universidade de Erfurt, monge agostiniano, professor de Filosofia, de Teologia e de Exegese bíblica, apresenta as 95 Teses na Universidade de Wittenberg sobre e contra a prática das indulgências. Dois anos depois, em junho, em Leipzig, propugna a autoridade individual (isto é, de cada indivíduo) na hermenêutica bíblica, destronizando a papal autoridade exclusiva nesta matéria. É um rombo na infalibilidade do Papa, da Igreja da Roma Católica. A 10 de dezembro, em Wittenberg, Lutero queima, em plena praça pública, a bula pela qual o papa Leão X o excomungou. Imediatamente, multiplicam-se os discípulos à sua volta, mesmo entre homens de Estado, dentro e fora da Alemanha. Na mesma orientação antipapal surgem outros mentores: Melanchthon, que se torna o chefe do Luteranismo depois da morte de Lutero em 1546, Zwingli, Calvino, Henrique VIII, etc. Este movimento não pára. É o movimento da Reforma Protestante. Assiste, assim, o século XVI a uma revolução religioso-cultural, que retira grande parte da Europa à obediência ao Papa romano. E, deste modo, nascem as Igrejas Protestantes.
            A teoria do livre-arbítrio, proposta por Lutero, é agora a autoridade basilar na exegese bíblica, os alicerces do pensamento católico ficaram abalados. Roma tem de reagir. E reage com a Contrarreforma, cujas finalidades principais se podem detectar no restabelecimento espiritual e na reconquista das almas e dos países que se tinham separado do papa. Não passe, porém, esquecido o seguinte facto: quando Lutero chegou, o estado espiritual de Roma já andava muito por baixo, bem longe da elevação exigida pelos fundamentos bíblicos.
            A Contrarreforma estabelece uma estratégia e uma prática: Paulo III reconstitui a Inquisição em 1542, visando com esta o ataque às pessoas e o Índex em 1543 na ofensiva às ideias.
            É necessário criar uma prática contra-reformadora mais incisiva. Urge defender e ensinar. A autêntica ofensiva resulta da convocação de um Concílio: Trento. Este, interrompido várias vezes por razões de ordem política e religiosa, dura de 1545 a 1563. Daqui Roma propõe aos seus fiéis o repensar da vida e da doutrina próprias, por meio da interpretação mais precisa da Tradição e das Escrituras. Fixa o cânone da Bíblia no primeiro Decretum da quarta sessão, de 8 de abril de 1546, ano da morte de Lutero. Fixa o texto bíblico (definitivamente só em 1592) em latim, de que a Vulgata de S. Gerónimo se tornou modelo e aí se prescreve o modo de interpretação das Escrituras, modo que não pode contrariar o sentido que Roma definiu, pois só a esta cabe o verdadeiro sentido e interpretação da Bíblia, em conta se devendo ter o unânime consenso dos padres da Igreja; é o segundo decreto da mesma sessão. Intensificam-se os instrumentos de luta recorrendo à confissão auricular, ao ensino e à pregação para reconquistar os reformados.
            O sermão é o instrumento mais directo de ensino da doutrina e da sua defesa. É o instrumento por excelência da cultura de massas. O púlpito transformou-se verdadeiramente no meio quase exclusivo de catequese e apologética. Proliferam os pregadores, como Filipe de Néri (1515-1595), Bernardino Ochino, fundador da ordem reformada dos Capuchinhos (1564). O sermão será o sismo do cisma da Reforma.
            São as Ordens religiosas que vão ter um papel importante neste combate à Reforma. Os jesuítas, pelo ensino nos seus Colégios de formação profunda e disciplinada e pela pregação, tornar-se-ão num sério e temível adversário dos Reformadores.
            Relativamente ao culto, o acento tónico é posto na exteriorização, no sensível; sentir a religião é o que a Contrarreforma quer do crente. Insiste-se no culto da presença real de Cristo, no da Virgem e dos Santos materializados numa proliferação maciça e universal de imagens, exactamente contra o que os reformadores apregoavam e praticavam na sua iconoclastia. O visível devia predominar no culto: eis a pompa das cerimónias concretizadas na arquitectura barroca das grandes proporções onde a luz penetra larga e abundantemente, onde a exuberância sensorial e/ou sensual e a riqueza de adornos decorativos, multiplicando-se, devem atestar a vitalidade e a jovialidade da religião. A Igreja de Jesus dos jesuítas, em Roma, serviu de modelo para a arquitectura e a pintura barrocas, a ponto de o estilo barroco ter sido designado de «estilo jesuíta». O grande barroco setentrional, Rubens (1577-1640), amigo dos jesuítas, ilustrou este estilo nas suas pinturas – em que o triunfo da religião, da fé e do papado são evidentes. De Bernini (1598-1680), fundador do barroco monumental e decorativo, afamado arquitecto, escultor e pintor ao serviço de Urbano VIII e de outros papas, ainda hoje podemos admirar o gosto e a realização de cenografias animadas e de efeitos monumentais, movimentados e imprevistos. Aqui, de facto, nasce a arte barroca, que se pode considerar a expressão artística essencial da Contrarreforma. Daqui, como as ideias de Trento, embarcou o barroco para os países católicos onde acabou por se impor renovando completamente os temas da iconografia religiosa e proporcionando um novo e grandioso desenvolvimento da arte sacra que, por sua vez, marcou a própria arte profana, bem visível por essa Europa fora. Uma curiosidade: a única vez que Bernini deixou Roma foi a pedido de Luís XIV e de Colbert para construir a fachada principal do Louvre, cujo projecto o monarca francês acabou por rejeitar, tendo, porém, Bernini esculpido o busto de Luís XIV (Museu de Versalhes). A arte profana, influenciada pelo barroco romano, também proliferou, dando lugar à chamada «arte de Corte» em que, à semelhança da papal, a pompa dos monarcas, o fausto dos príncipes, a grandiosidade dos nobres campearam. Era o absolutismo que se manifestava também no exterior, permitindo-nos verificar que, se a arte também expressar (a) verdade, então é a arte, em todas as suas manifestações, que mais verdade fala acerca da época em que o absolutismo triunfou. Ou seja, o barroco é um dado histórico tanto quanto o é artístico, em todas as suas formas realizadas.
            Dentro deste contexto, o sermão acabou por sobrevalorizar o delectare, isto é, o provocar o deleite quer no pregador quer nos ouvintes; assim, ficou prejudicado o docere, isto é, o ensinar a doutrina cristã. Contra esta pecha se insurgiu Vieira, nem sempre com êxito.
            A literatura traduziu com relevo o movimento, concedendo o primado à sensação e à emoção sobre a ideia que de todo não negligencia, evidenciando o gosto do patético violento, a embriaguez e o arrebatamento do espírito na livre criação das formas, recriando uma retórica expressiva, feita de imagens entusiasmantes de ênfase, de hipérboles, de anacolutos, de antíteses, de paradoxos, etc., e alimentada pelo jogo das palavras e dos conceitos. Mesmo que remotamente, o barroco literário foi fruto da Contrarreforma, considerada esta não tanto no seu aspecto fundamentalmente religioso, mas nas consequências prático-artísticas que estão implícitas e explicitadas na busca da manifestação formal, sensível e esplendorosa, que a arquitectura, como primeira, materializou em obediência ao imperativo do fausto que o papado lhe quis imprimir.

O século XVII em Portugal e o sermão

            A situação de instabilidade de um Portugal pós-Restauração (independente mas em crise, pressionado pela constante ameaça estrangeiro aos nossos domínios ultramarinos), e a defesa dos direitos humanos, nomeadamente dos índios do Brasil escravizados pelos colonos, bem como dos Cristãos-Novos perseguidos pela Inquisição, são preocupações a que Vieira se manteve sempre fiel até ao fim da sua vida.
            Ao assumir o poder, D. João IV teve de enfrentar um país moralmente exausto e financeiramente decadente em consequência da longa luta travada com Castela. A monarquia encontrava-se ameaçada e perigosamente vacilante, despojada como estava de órgãos de autoridade capazes de lhe garantir o poder absoluto.
            Os cofres estavam vazios, muito por culta do deslizamento das receitas portuguesas (representadas principalmente pelo ouro que nos vinha de África e pelas especiarias originárias do Oriente) das mãos trémulas de um Portugal periclitante, para as implacáveis presas da Holanda e da Inglaterra, que reclamavam a sua parte de leão.
            Mesmo as minas de ouro descobertas no Brasil, precisamente quando ocorreu a morte do Padre António Vieira, só viriam a servir para alimentar a pobreza moral, como o profetizara já o orador em 1656, no sermão proferido no Grão-Pará, intitulado Sobre as Verdadeiras e as Falsas Riquezas (Sermão da 1.ª Oitava da Páscoa). Em terras brasileiras, o trabalhador comum, possesso pela miragem do vil metal, viria a abandonar as terras, os bens, a família, para enveredar por atalhos, não poucas vezes do crime e da desonra, em demanda do ilusório pássaro azul que obstinadamente porfiava em alcançar. Na Metrópole, a nobreza passaria a dar largas a um fausto desenfreado e efémero, sem cuidar de produzir algo de útil para o bem comum ao utilizar o «maná» que jorrava então do Brasil.
            Recordemos que o século seguinte assistiu ao arrecadar de um milhão de libras esterlinas nos cofres da rapace Inglaterra, pago integralmente por Portugal com o ouro proveniente das minas do Brasil. Deste modo, mais uma vez se veio a verificar a lastimável negligência lusitana, que desprezou uma ocasião ímpar de valer à pátria debilitada.
            Na época de Vieira já Portugal se debatia em desesperada luta para reconverter a economia e caminhar lado a lado com os outros países europeus. estes manifestavam-lhe, porém, uma marcada indiferença, mas opunham-se á sua entrada nos tratados internacionais. Mero peão num jogo de interesses entre nações omnipotentes, Portugal erra arrastado numa torrente de ambições e encontrava-se preso nas malhas tecidas por potências interessadas em lucros rápidos e vantajosos. Por seu lado, a Santa Sé recusava-se teimosamente a reconhecê-lo como nação independente.
            A Restauração só poderia subsistir se fosse financiada pelos «homens de negócios» que orientavam em Portugal as grandes transacções. Foi, com efeito, sobre os recursos económicos dos Cristãos-Novos que o País se apoiou nas horas difíceis do recomeço mediante a isenção do confisco inquisitorial que lhes foi concedida pelo monarca a conselho de Vieira.
            A causa dos Cristãos-Novos advogada por Vieira, para além do incontestável carácter humanitário, do patriotismo e da solidariedade para com a Companhia de Jesus (a qual tomava partido contra a Inquisição, sua eterna rival), tinha também uma finalidade económica, pois visava mitigar a miséria nacional através dos largos proventos dos Hebreus. Contudo, a mentalidade tacanha dos opositores de Vieira, incapaz de assimilar a sede de Infinito do cosmopolita, habituado a vastos espaços e ideias), não se detinha na marcha do seu fanatismo impenitente para considerar um eventual interesse económico. Cuidava somente em velar pela defesa do sangue incorrupto, livre de qualquer contaminação dos hereges.
            Representando uma apreciável parcela da burguesia nacional e o principal suporte financeiro e mercantil da nação, os Cristãos-Novos desempenharam um papel decisivo no comércio externo e contribuíram para uma notável transformação na sociedade portuguesa. Supremo esteio de um Estado financeiramente dependente, este grupo social viu ser contra si movida uma feroz perseguição levada a efeito pelo Santo Ofício, mas instigada pela nobreza em dependência directa da Coroa.
            Foram-se, entretanto, implantando influentes comunidades de cristãos-novos portugueses em Amsterdão, Hamburgo, Ruão e Veneza, dando origem a uma verdadeira rede internacional de comércio. A repressão de que foram vítimas e, sobretudo, os processos diabólicos utilizados pela Inquisição, justificam a incansável defesa dos direitos desta raça segregada feita por Vieira.
            Era, pois, angustioso o clima que se vivia então em Portugal, tanto no aspecto económico, como político, como social. A Nação definhava em consequência das perdas sofridas. Os Holandeses haviam-se apoderado de cinco capitanias do nordeste brasileiro e para as suas mãos resvalara também Angola e São Tomé. Era urgente reconquistar esses territórios, mas impunha-se, igualmente, a celebração de uma aliança entre os dois países para esmagar Castela. Interessava a Portugal a influência da Holanda no xadrez político para a sua admissão no Tratado de Vestefália, pois tal equivaleria ao reconhecimento da independência por parte da Europa.
            Vieira chegou a Haia em abril de 1646, onde projetava negociar a paz com a Holanda através da entrega de Pernambuco. Contava o jesuíta, para realizar os seus planos, com o auxílio de judeus portugueses de Amsterdão. A Inquisição, porém, interveio e prendeu um importante cristão-novo que conduzia os negócios, lançando o descrédito sobre o enviado régio.
            A ideia de entregar Pernambuco aos Holandeses, de que Vieira parece ter sido um dos principais promotores, conheceu pertinaz oposição. Na opinião geral, o «Judas do Brasil» pecava, sobretudo, por falta de patriotismo. No entanto, como se depreende da leitura do «Papel Forte» por ele redigido, a velha raposa matreira ocultava, sob aparente capa de generosidade gratuita, a astuta decisão de se vir a reaver o que por ora se fingira dar de boa mente: «Desta maneira damos Pernambuco aos Holandeses, e não dado, senão vendido pelas conveniências da paz, senão a retro aberto, para a tornarmos a tomar com a mesma facilidade, quando nos virmos em melhor fortuna; que agora, é querer perder isto e o demais.»
            Por atitudes como esta, Vieira tem sido bastas vezes acusado de ter proposto soluções políticas nem sempre isentas de duplicidade; porém, há que considerar o próprio comportamento desleal dos outros países. A Holanda, por exemplo, com quem mantínhamos relações de paz na Europa, não se esquivava a atacar-nos no Brasil, enquanto que a Espanha estava secretamente ligada a essa nação que Vieira descrevia como pátria de anfíbios, composta de «peixe e homem».
            De outras missões diplomáticas se encarregou Vieira. A França foi ajustar o casamento da filha do Duque de Orleães, a vigorosa «Grande Demoiselle», com o jovem e frágil D. Teodósio, príncipe herdeiro. Não foi feliz nessa missão porque a ela se opôs tenazmente o cardeal Mazarino. Provocar em Nápoles um movimento de revolta contra os Castelhanos e promover o casamento de D. Teodósio com a filha de Filipe V eram os propósitos que animavam António Vieira na sua viagem a Itália em janeiro de 1650, numa empresa condenada uma vez mais ao fracasso. Não obstante, o seu espírito combativo não cessava de vibrar.
            Um dos eventos históricos que já vinha recrudescendo ao longo de toda a dominação filipina foi o Sebastianismo, forma de louca ânsia messiânica num rei justo e redentor de uma pátria mergulhada em letargia. As profecias do sapateiro de Trancoso, amálgama insipiente de citações bíblicas e de lendas populares, traduziam o anseio de liberdade e a esperança projectada num herói libertador. Ideal cristalizado na memória de um povo sedento de autonomia, a crença sebastianista no predestinado incitou os espíritos à luta pela independência nos anos sombrios da repressão castelhana. À semelhança dos seus contemporâneos, Vieira não se mostrou insensível ao apelo profético, que ia aliás tão ao encontro do seu marcado pendor, avivado por uma educação escolar propícia a cogitações visionárias. Do alto do púlpito, desafiando corajosamente os algozes da Inquisição, o jesuíta modela um Sebastianismo novo, ajustado ao contexto da Regeneração. É o mito judaico do Quinto Império transferido para o solo português, berço de um rei eleito de Deus que será o Imperador da Terra em serena aliança com o Pontífice de Roma, entidade centralizadora do poder espiritual.
            D. João IV torna-se o Messias que, após sessenta anos de humilhante subordinação a Castela, vem libertar o país e devolver-lhe o estatuto de nação escolhida para os desígnios do Eterno. O monarca é o novo Encoberto capaz de redimir o seu povo e conduzi-lo à Salvação. Resgatada a pátria, urge dilatar a Fé que há-de congregar em torno de si judeus e indígenas, sem distinção de raça ou credo, unidos na condição comum de filhos de Cristo e portadores da centelha divina. Mas o visionarismo em Vieira não se limita a uma mera atitude passiva; antes o conduz de imediato à acção a partir do momento em que deixa de combater o Sebastianismo para se empenhar com toda a fé na crença de um novo Encoberto. Sensível ao fascínio dos mistérios da Bíblia que procura explicar, Vieira consegue, no entanto, conservar intacta a sua atenção à realidade política e social, pronto a denunciar abusos e a condenar prepotências. No seu grito de revolta esconde-se a crítica enérgica a uma sociedade injusta e corrupta.


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