A
situação de instabilidade de um Portugal pós-Restauração (independente mas em
crise, pressionado pela constante ameaça estrangeiro aos nossos domínios ultramarinos),
e a defesa dos direitos humanos, nomeadamente dos índios do Brasil escravizados
pelos colonos, bem como dos Cristãos-Novos perseguidos pela Inquisição, são
preocupações a que Vieira se manteve sempre fiel até ao fim da sua vida.
Ao assumir o poder, D. João IV teve
de enfrentar um país moralmente exausto e financeiramente decadente em
consequência da longa luta travada com Castela. A monarquia encontrava-se
ameaçada e perigosamente vacilante, despojada como estava de órgãos de autoridade
capazes de lhe garantir o poder absoluto.
Os cofres estavam vazios, muito por
culta do deslizamento das receitas portuguesas (representadas principalmente
pelo ouro que nos vinha de África e pelas especiarias originárias do Oriente)
das mãos trémulas de um Portugal periclitante, para as implacáveis presas da
Holanda e da Inglaterra, que reclamavam a sua parte de leão.
Mesmo as minas de ouro descobertas
no Brasil, precisamente quando ocorreu a morte do Padre António Vieira, só
viriam a servir para alimentar a pobreza moral, como o profetizara já o orador
em 1656, no sermão proferido no Grão-Pará, intitulado Sobre as Verdadeiras e
as Falsas Riquezas (Sermão da 1.ª Oitava da Páscoa). Em terras
brasileiras, o trabalhador comum, possesso pela miragem do vil metal, viria a
abandonar as terras, os bens, a família, para enveredar por atalhos, não poucas
vezes do crime e da desonra, em demanda do ilusório pássaro azul que
obstinadamente porfiava em alcançar. Na Metrópole, a nobreza passaria a dar
largas a um fausto desenfreado e efémero, sem cuidar de produzir algo de útil
para o bem comum ao utilizar o «maná» que jorrava então do Brasil.
Recordemos que o século seguinte
assistiu ao arrecadar de um milhão de libras esterlinas nos cofres da rapace
Inglaterra, pago integralmente por Portugal com o ouro proveniente das minas do
Brasil. Deste modo, mais uma vez se veio a verificar a lastimável negligência
lusitana, que desprezou uma ocasião ímpar de valer à pátria debilitada.
Na época de Vieira já Portugal se
debatia em desesperada luta para reconverter a economia e caminhar lado a lado
com os outros países europeus. estes manifestavam-lhe, porém, uma marcada
indiferença, mas opunham-se á sua entrada nos tratados internacionais. Mero peão
num jogo de interesses entre nações omnipotentes, Portugal erra arrastado numa
torrente de ambições e encontrava-se preso nas malhas tecidas por potências
interessadas em lucros rápidos e vantajosos. Por seu lado, a Santa Sé
recusava-se teimosamente a reconhecê-lo como nação independente.
A Restauração só poderia subsistir
se fosse financiada pelos «homens de negócios» que orientavam em Portugal as
grandes transacções. Foi, com efeito, sobre os recursos económicos dos
Cristãos-Novos que o País se apoiou nas horas difíceis do recomeço mediante a
isenção do confisco inquisitorial que lhes foi concedida pelo monarca a
conselho de Vieira.
A causa dos Cristãos-Novos advogada
por Vieira, para além do incontestável carácter humanitário, do patriotismo e
da solidariedade para com a Companhia de Jesus (a qual tomava partido contra a
Inquisição, sua eterna rival), tinha também uma finalidade económica, pois
visava mitigar a miséria nacional através dos largos proventos dos Hebreus. Contudo,
a mentalidade tacanha dos opositores de Vieira, incapaz de assimilar a sede de
Infinito do cosmopolita, habituado a vastos espaços e ideias), não se detinha
na marcha do seu fanatismo impenitente para considerar um eventual interesse
económico. Cuidava somente em velar pela defesa do sangue incorrupto, livre de
qualquer contaminação dos hereges.
Representando uma apreciável parcela
da burguesia nacional e o principal suporte financeiro e mercantil da nação, os
Cristãos-Novos desempenharam um papel decisivo no comércio externo e contribuíram
para uma notável transformação na sociedade portuguesa. Supremo esteio de um
Estado financeiramente dependente, este grupo social viu ser contra si movida
uma feroz perseguição levada a efeito pelo Santo Ofício, mas instigada pela nobreza
em dependência directa da Coroa.
Foram-se, entretanto, implantando
influentes comunidades de cristãos-novos portugueses em Amsterdão, Hamburgo,
Ruão e Veneza, dando origem a uma verdadeira rede internacional de comércio. A
repressão de que foram vítimas e, sobretudo, os processos diabólicos utilizados
pela Inquisição, justificam a incansável defesa dos direitos desta raça segregada
feita por Vieira.
Era, pois, angustioso o clima que se
vivia então em Portugal, tanto no aspecto económico, como político, como social.
A Nação definhava em consequência das perdas sofridas. Os Holandeses haviam-se
apoderado de cinco capitanias do nordeste brasileiro e para as suas mãos
resvalara também Angola e São Tomé. Era urgente reconquistar esses territórios,
mas impunha-se, igualmente, a celebração de uma aliança entre os dois países
para esmagar Castela. Interessava a Portugal a influência da Holanda no xadrez
político para a sua admissão no Tratado de Vestefália, pois tal equivaleria ao
reconhecimento da independência por parte da Europa.
Vieira chegou a Haia em abril de
1646, onde projetava negociar a paz com a Holanda através da entrega de
Pernambuco. Contava o jesuíta, para realizar os seus planos, com o auxílio de
judeus portugueses de Amsterdão. A Inquisição, porém, interveio e prendeu um
importante cristão-novo que conduzia os negócios, lançando o descrédito sobre o
enviado régio.
A ideia de entregar Pernambuco aos
Holandeses, de que Vieira parece ter sido um dos principais promotores,
conheceu pertinaz oposição. Na opinião geral, o «Judas do Brasil» pecava,
sobretudo, por falta de patriotismo. No entanto, como se depreende da leitura
do «Papel Forte» por ele redigido, a velha raposa matreira ocultava, sob
aparente capa de generosidade gratuita, a astuta decisão de se vir a reaver o
que por ora se fingira dar de boa mente: «Desta maneira damos Pernambuco aos Holandeses,
e não dado, senão vendido pelas conveniências da paz, senão a retro aberto,
para a tornarmos a tomar com a mesma facilidade, quando nos virmos em melhor
fortuna; que agora, é querer perder isto e o demais.»
Por atitudes como esta, Vieira tem
sido bastas vezes acusado de ter proposto soluções políticas nem sempre isentas
de duplicidade; porém, há que considerar o próprio comportamento desleal dos outros
países. A Holanda, por exemplo, com quem mantínhamos relações de paz na Europa,
não se esquivava a atacar-nos no Brasil, enquanto que a Espanha estava
secretamente ligada a essa nação que Vieira descrevia como pátria de anfíbios,
composta de «peixe e homem».
De
outras missões diplomáticas se encarregou Vieira. A França foi ajustar o casamento
da filha do Duque de Orleães, a vigorosa «Grande Demoiselle», com o jovem e
frágil D. Teodósio, príncipe herdeiro. Não foi feliz nessa missão porque a ela
se opôs tenazmente o cardeal Mazarino. Provocar em Nápoles um movimento de revolta
contra os Castelhanos e promover o casamento de D. Teodósio com a filha de
Filipe V eram os propósitos que animavam António Vieira na sua viagem a Itália
em janeiro de 1650, numa empresa condenada uma vez mais ao fracasso. Não
obstante, o seu espírito combativo não cessava de vibrar.
Um dos eventos históricos que já
vinha recrudescendo ao longo de toda a dominação filipina foi o Sebastianismo,
forma de louca ânsia messiânica num rei justo e redentor de uma pátria
mergulhada em letargia. As profecias do sapateiro de Trancoso, amálgama insipiente
de citações bíblicas e de lendas populares, traduziam o anseio de liberdade e a
esperança projectada num herói libertador. Ideal cristalizado na memória de um
povo sedento de autonomia, a crença sebastianista no predestinado incitou os
espíritos à luta pela independência nos anos sombrios da repressão castelhana.
À semelhança dos seus contemporâneos, Vieira não se mostrou insensível ao apelo
profético, que ia aliás tão ao encontro do seu marcado pendor, avivado por uma
educação escolar propícia a cogitações visionárias. Do alto do púlpito,
desafiando corajosamente os algozes da Inquisição, o jesuíta modela um Sebastianismo
novo, ajustado ao contexto da Regeneração. É o mito judaico do Quinto Império
transferido para o solo português, berço de um rei eleito de Deus que será o
Imperador da Terra em serena aliança com o Pontífice de Roma, entidade
centralizadora do poder espiritual.
D. João IV torna-se o Messias que,
após sessenta anos de humilhante subordinação a Castela, vem libertar o país e
devolver-lhe o estatuto de nação escolhida para os desígnios do Eterno. O
monarca é o novo Encoberto capaz de redimir o seu povo e conduzi-lo à Salvação.
Resgatada a pátria, urge dilatar a Fé que há-de congregar em torno de si judeus
e indígenas, sem distinção de raça ou credo, unidos na condição comum de filhos
de Cristo e portadores da centelha divina. Mas o visionarismo em Vieira não se
limita a uma mera atitude passiva; antes o conduz de imediato à acção a partir
do momento em que deixa de combater o Sebastianismo para se empenhar com toda a
fé na crença de um novo Encoberto. Sensível ao fascínio dos mistérios da Bíblia
que procura explicar, Vieira consegue, no entanto, conservar intacta a sua
atenção à realidade política e social, pronto a denunciar abusos e a condenar
prepotências. No seu grito de revolta esconde-se a crítica enérgica a uma sociedade
injusta e corrupta.
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