Português: O século XVII em Portugal e o sermão

domingo, 29 de setembro de 2019

O século XVII em Portugal e o sermão

            A situação de instabilidade de um Portugal pós-Restauração (independente mas em crise, pressionado pela constante ameaça estrangeiro aos nossos domínios ultramarinos), e a defesa dos direitos humanos, nomeadamente dos índios do Brasil escravizados pelos colonos, bem como dos Cristãos-Novos perseguidos pela Inquisição, são preocupações a que Vieira se manteve sempre fiel até ao fim da sua vida.
            Ao assumir o poder, D. João IV teve de enfrentar um país moralmente exausto e financeiramente decadente em consequência da longa luta travada com Castela. A monarquia encontrava-se ameaçada e perigosamente vacilante, despojada como estava de órgãos de autoridade capazes de lhe garantir o poder absoluto.
            Os cofres estavam vazios, muito por culta do deslizamento das receitas portuguesas (representadas principalmente pelo ouro que nos vinha de África e pelas especiarias originárias do Oriente) das mãos trémulas de um Portugal periclitante, para as implacáveis presas da Holanda e da Inglaterra, que reclamavam a sua parte de leão.
            Mesmo as minas de ouro descobertas no Brasil, precisamente quando ocorreu a morte do Padre António Vieira, só viriam a servir para alimentar a pobreza moral, como o profetizara já o orador em 1656, no sermão proferido no Grão-Pará, intitulado Sobre as Verdadeiras e as Falsas Riquezas (Sermão da 1.ª Oitava da Páscoa). Em terras brasileiras, o trabalhador comum, possesso pela miragem do vil metal, viria a abandonar as terras, os bens, a família, para enveredar por atalhos, não poucas vezes do crime e da desonra, em demanda do ilusório pássaro azul que obstinadamente porfiava em alcançar. Na Metrópole, a nobreza passaria a dar largas a um fausto desenfreado e efémero, sem cuidar de produzir algo de útil para o bem comum ao utilizar o «maná» que jorrava então do Brasil.
            Recordemos que o século seguinte assistiu ao arrecadar de um milhão de libras esterlinas nos cofres da rapace Inglaterra, pago integralmente por Portugal com o ouro proveniente das minas do Brasil. Deste modo, mais uma vez se veio a verificar a lastimável negligência lusitana, que desprezou uma ocasião ímpar de valer à pátria debilitada.
            Na época de Vieira já Portugal se debatia em desesperada luta para reconverter a economia e caminhar lado a lado com os outros países europeus. estes manifestavam-lhe, porém, uma marcada indiferença, mas opunham-se á sua entrada nos tratados internacionais. Mero peão num jogo de interesses entre nações omnipotentes, Portugal erra arrastado numa torrente de ambições e encontrava-se preso nas malhas tecidas por potências interessadas em lucros rápidos e vantajosos. Por seu lado, a Santa Sé recusava-se teimosamente a reconhecê-lo como nação independente.
            A Restauração só poderia subsistir se fosse financiada pelos «homens de negócios» que orientavam em Portugal as grandes transacções. Foi, com efeito, sobre os recursos económicos dos Cristãos-Novos que o País se apoiou nas horas difíceis do recomeço mediante a isenção do confisco inquisitorial que lhes foi concedida pelo monarca a conselho de Vieira.
            A causa dos Cristãos-Novos advogada por Vieira, para além do incontestável carácter humanitário, do patriotismo e da solidariedade para com a Companhia de Jesus (a qual tomava partido contra a Inquisição, sua eterna rival), tinha também uma finalidade económica, pois visava mitigar a miséria nacional através dos largos proventos dos Hebreus. Contudo, a mentalidade tacanha dos opositores de Vieira, incapaz de assimilar a sede de Infinito do cosmopolita, habituado a vastos espaços e ideias), não se detinha na marcha do seu fanatismo impenitente para considerar um eventual interesse económico. Cuidava somente em velar pela defesa do sangue incorrupto, livre de qualquer contaminação dos hereges.
            Representando uma apreciável parcela da burguesia nacional e o principal suporte financeiro e mercantil da nação, os Cristãos-Novos desempenharam um papel decisivo no comércio externo e contribuíram para uma notável transformação na sociedade portuguesa. Supremo esteio de um Estado financeiramente dependente, este grupo social viu ser contra si movida uma feroz perseguição levada a efeito pelo Santo Ofício, mas instigada pela nobreza em dependência directa da Coroa.
            Foram-se, entretanto, implantando influentes comunidades de cristãos-novos portugueses em Amsterdão, Hamburgo, Ruão e Veneza, dando origem a uma verdadeira rede internacional de comércio. A repressão de que foram vítimas e, sobretudo, os processos diabólicos utilizados pela Inquisição, justificam a incansável defesa dos direitos desta raça segregada feita por Vieira.
            Era, pois, angustioso o clima que se vivia então em Portugal, tanto no aspecto económico, como político, como social. A Nação definhava em consequência das perdas sofridas. Os Holandeses haviam-se apoderado de cinco capitanias do nordeste brasileiro e para as suas mãos resvalara também Angola e São Tomé. Era urgente reconquistar esses territórios, mas impunha-se, igualmente, a celebração de uma aliança entre os dois países para esmagar Castela. Interessava a Portugal a influência da Holanda no xadrez político para a sua admissão no Tratado de Vestefália, pois tal equivaleria ao reconhecimento da independência por parte da Europa.
            Vieira chegou a Haia em abril de 1646, onde projetava negociar a paz com a Holanda através da entrega de Pernambuco. Contava o jesuíta, para realizar os seus planos, com o auxílio de judeus portugueses de Amsterdão. A Inquisição, porém, interveio e prendeu um importante cristão-novo que conduzia os negócios, lançando o descrédito sobre o enviado régio.
            A ideia de entregar Pernambuco aos Holandeses, de que Vieira parece ter sido um dos principais promotores, conheceu pertinaz oposição. Na opinião geral, o «Judas do Brasil» pecava, sobretudo, por falta de patriotismo. No entanto, como se depreende da leitura do «Papel Forte» por ele redigido, a velha raposa matreira ocultava, sob aparente capa de generosidade gratuita, a astuta decisão de se vir a reaver o que por ora se fingira dar de boa mente: «Desta maneira damos Pernambuco aos Holandeses, e não dado, senão vendido pelas conveniências da paz, senão a retro aberto, para a tornarmos a tomar com a mesma facilidade, quando nos virmos em melhor fortuna; que agora, é querer perder isto e o demais.»
            Por atitudes como esta, Vieira tem sido bastas vezes acusado de ter proposto soluções políticas nem sempre isentas de duplicidade; porém, há que considerar o próprio comportamento desleal dos outros países. A Holanda, por exemplo, com quem mantínhamos relações de paz na Europa, não se esquivava a atacar-nos no Brasil, enquanto que a Espanha estava secretamente ligada a essa nação que Vieira descrevia como pátria de anfíbios, composta de «peixe e homem».
            De outras missões diplomáticas se encarregou Vieira. A França foi ajustar o casamento da filha do Duque de Orleães, a vigorosa «Grande Demoiselle», com o jovem e frágil D. Teodósio, príncipe herdeiro. Não foi feliz nessa missão porque a ela se opôs tenazmente o cardeal Mazarino. Provocar em Nápoles um movimento de revolta contra os Castelhanos e promover o casamento de D. Teodósio com a filha de Filipe V eram os propósitos que animavam António Vieira na sua viagem a Itália em janeiro de 1650, numa empresa condenada uma vez mais ao fracasso. Não obstante, o seu espírito combativo não cessava de vibrar.
            Um dos eventos históricos que já vinha recrudescendo ao longo de toda a dominação filipina foi o Sebastianismo, forma de louca ânsia messiânica num rei justo e redentor de uma pátria mergulhada em letargia. As profecias do sapateiro de Trancoso, amálgama insipiente de citações bíblicas e de lendas populares, traduziam o anseio de liberdade e a esperança projectada num herói libertador. Ideal cristalizado na memória de um povo sedento de autonomia, a crença sebastianista no predestinado incitou os espíritos à luta pela independência nos anos sombrios da repressão castelhana. À semelhança dos seus contemporâneos, Vieira não se mostrou insensível ao apelo profético, que ia aliás tão ao encontro do seu marcado pendor, avivado por uma educação escolar propícia a cogitações visionárias. Do alto do púlpito, desafiando corajosamente os algozes da Inquisição, o jesuíta modela um Sebastianismo novo, ajustado ao contexto da Regeneração. É o mito judaico do Quinto Império transferido para o solo português, berço de um rei eleito de Deus que será o Imperador da Terra em serena aliança com o Pontífice de Roma, entidade centralizadora do poder espiritual.
            D. João IV torna-se o Messias que, após sessenta anos de humilhante subordinação a Castela, vem libertar o país e devolver-lhe o estatuto de nação escolhida para os desígnios do Eterno. O monarca é o novo Encoberto capaz de redimir o seu povo e conduzi-lo à Salvação. Resgatada a pátria, urge dilatar a Fé que há-de congregar em torno de si judeus e indígenas, sem distinção de raça ou credo, unidos na condição comum de filhos de Cristo e portadores da centelha divina. Mas o visionarismo em Vieira não se limita a uma mera atitude passiva; antes o conduz de imediato à acção a partir do momento em que deixa de combater o Sebastianismo para se empenhar com toda a fé na crença de um novo Encoberto. Sensível ao fascínio dos mistérios da Bíblia que procura explicar, Vieira consegue, no entanto, conservar intacta a sua atenção à realidade política e social, pronto a denunciar abusos e a condenar prepotências. No seu grito de revolta esconde-se a crítica enérgica a uma sociedade injusta e corrupta.


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