Português: A Contrarreforma e o sermão

domingo, 29 de setembro de 2019

A Contrarreforma e o sermão

            A 31 de outubro de 1517, Lutero, «mestre em Filosofia» (1505) pela Universidade de Erfurt, monge agostiniano, professor de Filosofia, de Teologia e de Exegese bíblica, apresenta as 95 Teses na Universidade de Wittenberg sobre e contra a prática das indulgências. Dois anos depois, em junho, em Leipzig, propugna a autoridade individual (isto é, de cada indivíduo) na hermenêutica bíblica, destronizando a papal autoridade exclusiva nesta matéria. É um rombo na infalibilidade do Papa, da Igreja da Roma Católica. A 10 de dezembro, em Wittenberg, Lutero queima, em plena praça pública, a bula pela qual o papa Leão X o excomungou. Imediatamente, multiplicam-se os discípulos à sua volta, mesmo entre homens de Estado, dentro e fora da Alemanha. Na mesma orientação antipapal surgem outros mentores: Melanchthon, que se torna o chefe do Luteranismo depois da morte de Lutero em 1546, Zwingli, Calvino, Henrique VIII, etc. Este movimento não pára. É o movimento da Reforma Protestante. Assiste, assim, o século XVI a uma revolução religioso-cultural, que retira grande parte da Europa à obediência ao Papa romano. E, deste modo, nascem as Igrejas Protestantes.
            A teoria do livre-arbítrio, proposta por Lutero, é agora a autoridade basilar na exegese bíblica, os alicerces do pensamento católico ficaram abalados. Roma tem de reagir. E reage com a Contrarreforma, cujas finalidades principais se podem detectar no restabelecimento espiritual e na reconquista das almas e dos países que se tinham separado do papa. Não passe, porém, esquecido o seguinte facto: quando Lutero chegou, o estado espiritual de Roma já andava muito por baixo, bem longe da elevação exigida pelos fundamentos bíblicos.
            A Contrarreforma estabelece uma estratégia e uma prática: Paulo III reconstitui a Inquisição em 1542, visando com esta o ataque às pessoas e o Índex em 1543 na ofensiva às ideias.
            É necessário criar uma prática contra-reformadora mais incisiva. Urge defender e ensinar. A autêntica ofensiva resulta da convocação de um Concílio: Trento. Este, interrompido várias vezes por razões de ordem política e religiosa, dura de 1545 a 1563. Daqui Roma propõe aos seus fiéis o repensar da vida e da doutrina próprias, por meio da interpretação mais precisa da Tradição e das Escrituras. Fixa o cânone da Bíblia no primeiro Decretum da quarta sessão, de 8 de abril de 1546, ano da morte de Lutero. Fixa o texto bíblico (definitivamente só em 1592) em latim, de que a Vulgata de S. Gerónimo se tornou modelo e aí se prescreve o modo de interpretação das Escrituras, modo que não pode contrariar o sentido que Roma definiu, pois só a esta cabe o verdadeiro sentido e interpretação da Bíblia, em conta se devendo ter o unânime consenso dos padres da Igreja; é o segundo decreto da mesma sessão. Intensificam-se os instrumentos de luta recorrendo à confissão auricular, ao ensino e à pregação para reconquistar os reformados.
            O sermão é o instrumento mais directo de ensino da doutrina e da sua defesa. É o instrumento por excelência da cultura de massas. O púlpito transformou-se verdadeiramente no meio quase exclusivo de catequese e apologética. Proliferam os pregadores, como Filipe de Néri (1515-1595), Bernardino Ochino, fundador da ordem reformada dos Capuchinhos (1564). O sermão será o sismo do cisma da Reforma.
            São as Ordens religiosas que vão ter um papel importante neste combate à Reforma. Os jesuítas, pelo ensino nos seus Colégios de formação profunda e disciplinada e pela pregação, tornar-se-ão num sério e temível adversário dos Reformadores.
            Relativamente ao culto, o acento tónico é posto na exteriorização, no sensível; sentir a religião é o que a Contrarreforma quer do crente. Insiste-se no culto da presença real de Cristo, no da Virgem e dos Santos materializados numa proliferação maciça e universal de imagens, exactamente contra o que os reformadores apregoavam e praticavam na sua iconoclastia. O visível devia predominar no culto: eis a pompa das cerimónias concretizadas na arquitectura barroca das grandes proporções onde a luz penetra larga e abundantemente, onde a exuberância sensorial e/ou sensual e a riqueza de adornos decorativos, multiplicando-se, devem atestar a vitalidade e a jovialidade da religião. A Igreja de Jesus dos jesuítas, em Roma, serviu de modelo para a arquitectura e a pintura barrocas, a ponto de o estilo barroco ter sido designado de «estilo jesuíta». O grande barroco setentrional, Rubens (1577-1640), amigo dos jesuítas, ilustrou este estilo nas suas pinturas – em que o triunfo da religião, da fé e do papado são evidentes. De Bernini (1598-1680), fundador do barroco monumental e decorativo, afamado arquitecto, escultor e pintor ao serviço de Urbano VIII e de outros papas, ainda hoje podemos admirar o gosto e a realização de cenografias animadas e de efeitos monumentais, movimentados e imprevistos. Aqui, de facto, nasce a arte barroca, que se pode considerar a expressão artística essencial da Contrarreforma. Daqui, como as ideias de Trento, embarcou o barroco para os países católicos onde acabou por se impor renovando completamente os temas da iconografia religiosa e proporcionando um novo e grandioso desenvolvimento da arte sacra que, por sua vez, marcou a própria arte profana, bem visível por essa Europa fora. Uma curiosidade: a única vez que Bernini deixou Roma foi a pedido de Luís XIV e de Colbert para construir a fachada principal do Louvre, cujo projecto o monarca francês acabou por rejeitar, tendo, porém, Bernini esculpido o busto de Luís XIV (Museu de Versalhes). A arte profana, influenciada pelo barroco romano, também proliferou, dando lugar à chamada «arte de Corte» em que, à semelhança da papal, a pompa dos monarcas, o fausto dos príncipes, a grandiosidade dos nobres campearam. Era o absolutismo que se manifestava também no exterior, permitindo-nos verificar que, se a arte também expressar (a) verdade, então é a arte, em todas as suas manifestações, que mais verdade fala acerca da época em que o absolutismo triunfou. Ou seja, o barroco é um dado histórico tanto quanto o é artístico, em todas as suas formas realizadas.
            Dentro deste contexto, o sermão acabou por sobrevalorizar o delectare, isto é, o provocar o deleite quer no pregador quer nos ouvintes; assim, ficou prejudicado o docere, isto é, o ensinar a doutrina cristã. Contra esta pecha se insurgiu Vieira, nem sempre com êxito.
            A literatura traduziu com relevo o movimento, concedendo o primado à sensação e à emoção sobre a ideia que de todo não negligencia, evidenciando o gosto do patético violento, a embriaguez e o arrebatamento do espírito na livre criação das formas, recriando uma retórica expressiva, feita de imagens entusiasmantes de ênfase, de hipérboles, de anacolutos, de antíteses, de paradoxos, etc., e alimentada pelo jogo das palavras e dos conceitos. Mesmo que remotamente, o barroco literário foi fruto da Contrarreforma, considerada esta não tanto no seu aspecto fundamentalmente religioso, mas nas consequências prático-artísticas que estão implícitas e explicitadas na busca da manifestação formal, sensível e esplendorosa, que a arquitectura, como primeira, materializou em obediência ao imperativo do fausto que o papado lhe quis imprimir.

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