Português: Estabilização política – Regeneração, Rotativismo, Caciquismo

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Estabilização política – Regeneração, Rotativismo, Caciquismo


À violência da guerra civil sucedeu um período de decepção e de amolecimento político. Entre 1874 e 1851 nada aconteceu: não se legislou nada de importante, não houve conflitos graves, mas apenas rotinas parlamentares (a 1849 chamou-se o «ano da caleche», porque o facto político dominante foi a revelação no Parlamento de um caso de corrupção: Costa Cabral recebeu de um negociante uma caleche em troca de uma encomenda). É nesta penumbra que ocorre o que parecia não ser mais do que uma tentativa de revolução sem importância, porque não tinha ideias, e, portanto, não tinha nem partidários nem adversários. O marechal Saldanha, que tinha sido o comandante das tropas que combateram a Patuleia, aborreceu-se porque o substituíram no lugar de mordomo-mor e foi proclamar a revolta num quartel de Sintra. Ninguém aderiu. Dali foi a Mafra à procura de adeptos, mas em vão. Correu os quartéis de Coimbra, Viseu, Porto: só decepções. Já estava refugiado na Galiza quando soube que os regimentos do Porto resolviam aderir. Voltou à cidade e foi aclamado com entusiasmo no Teatro de São João. Um orador disse aí que não se tratava de uma revolução mais, mas do início de uma regeneração da vida nacional. Essa ideia vinha ao encontro das aspirações de todos depois dos escombros da guerra civil. E foi por Regeneração que o movimento ficou conhecido.
            A mesma dificuldade que Saldanha teve em obter soldados encontrou-a o Governo para se opor à revolta. A rainha teve de escrever para o Porto: “Faço justiça aos sentimentos do marechal Saldanha. Peço-lhe que venha imediatamente a Lisboa.” E entregou-lhe o governo.
            A política portuguesa entrou então numa longa fase de estabilidade. A Carta continuou em vigor, mas o Acto Constitucional deu satisfação a algumas reclamações setembristas: a eleição dos deputados passou a fazer-se por sufrágio directo e o Parlamento ficou com o direito de nomear comissões de inquérito aos actos do governo. Com essa emenda deixava de haver cartistas e anticartistas; a corrente conservadora assumiu a forma de Partido Regenerador, que é um cartismo adoçado, e a corrente democrática deu origem ao Partido Histórico e um pouco mais tarde ao Partido Progressista, de reminiscência setembrista. Eram, tanto um como outro, posições de centro. Ambos afirmavam a sua dedicação à realeza, ambos eram sinceramente liberais, ambos se propunham iniciar a reconstrução económica do país e meter mãos à solução da questão financeira, que, entretanto, se tinha agravado constantemente.
            Esta contiguidade ideológica e programática tornou possível que a passagem do poder de um para outro partido se processasse sem crises violentas. Estabeleceu-se então o rotativismo, que dominará a actividade política até ao fim do século.
            O rotativismo bipartidário era, na Europa, um mecanismo típico do liberalismo parlamentar. O modelo era dado pela Inglaterra: o rei, após cada acto eleitoral, entregava o Governo ao partido que saísse vencedor nas eleições; deste modo obtinha-se que o Executivo exprimisse a opinião da maioria. Mas no rotativismo português as coisas passavam-se ao contrário: não era quem ganhava as eleições que subia ao poder, mas sim quem subia ao poder que ganhava as eleições. O método para obter a concordância entre Governo e resultado eleitoral era este: de cada vez que o rei nomeava novo Ministério, decretava a dissolução das câmaras e marcava novas eleições. Destas saía sempre vencedor o partido a que pertencia o Governo que o rei tinha nomeado.
            O sistema foi muito criticado. Ficou famoso um epigrama do poeta João de Deus:
Há entre el-rei e o povo
Por certo um acordo eterno:
Forma el-rei Governo novo,
Logo o povo é do Governo
Por aquele acordo eterno
Que há entre el-rei e o povo.
Graça a esta harmonia,
Que é realmente um mistério,
Havendo tantas facções,
O Governo, o Ministério, ganha sempre as eleições!
            O “mistério” estava nas condições sociais do país. A imensa maioria da população que o sistema de sufrágio directo levava às urnas não tinha consciência política nem independência económica e os partidos não dispunham de organização para a realização de campanhas eleitorais. Para que o direito de voto se exercesse, era necessária a intervenção dos “caciques” (palavra que, através da Espanha, nos veio das Caraíbas, onde tinha o sentido de chefe de aldeia indígena). O caciquismo desempenhou função básica no sistema eleitoral: era o cacique que estava em contacto com o povo e era ele quem mandava votar. Mas, por sua vez, o cacique dependia de um chefe político e este devia pagar a corretagem dos votos a favor do seu partido. O pagamento fazia-se com nomeações, protecção e outros favores. O Governo está em condições de fazer mais favores do que a oposição e isso, além das irregularidades eleitorais, explicava que o Ministério ganhasse sempre as eleições. O caciquismo foi, pois, um sistema de facto de sufrágio indirecto, que se sobrepôs ao sistema de direito do sufrágio directo.
            A vida política baseada nesta engrenagem carecia de autenticidade; as eleições tornaram-se um dos temas predilectos do sarcasmo e da caricatura nacional. Herculano chamou-lhes uma “vil comédia”. Perdeu-se a confiança nas instituições e na representatividade dos quadros políticos. O aparelho político não tinha raiz popular e o país popular não tinha expressão política. O rotativismo foi-se assim esgotando a si mesmo e começou a desagregar-se nas últimas décadas do século pelo processo das “dissidências”, isto é, por perdas de unidade partidária que levavam ao aparecimento de novos partidos. O bipartidarismo converteu-se em pluripartidarismo, tornando impossível o funcionamento do sistema rotativo e acabando por conduzir à queda do constitucionalismo monárquico.

                                               José Hermano Saraiva, História Concisa de Portugal


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