Português: O Absolutismo e o Movimento Liberal

terça-feira, 19 de novembro de 2019

O Absolutismo e o Movimento Liberal

            O regime absoluto, em Portugal, teve uma vida longa e segura. Os reis gozavam de uma autoridade firme, uma vez que nunca se criaram, ao seu lado, corpos políticos organizados a que tivessem de fazer frente. O poder soberano vinha-lhes de Deus. Sofre, é certo, alterações no tempo do Marquês de Pombal, cujo regime teve o grande mérito de (involuntariamente) preparar o País para a revolução liberal do século XIX. Tanto a Igreja como a nobreza sofreram um golpe mortal de que nunca conseguiram recompor-se. Ao mesmo tempo foi dado à burguesia (homens de negócio e burocratas) o poder de que necessitava para tomar conta da administração e do domínio económico do País. Ao nivelar todas as classes, leis e instituições ante o despotismo único do rei, Pombal preparou a revolução da igualdade social e o fim dos privilégios feudais; ao mesmo tempo que, reforçando a máquina repressiva estadual e rejeitando toda e qualquer interferência da Igreja, preparou a rebelião contra a opressão laica e, portanto, a revolução da liberdade.
            A estrutura absolutista portuguesa entrou em crise no segundo quartel do século XIX sob a acção de múltiplos e poderosos golpes, entre os quais se destacam as invasões francesas, as grandes transformações técnicas, a independência do Brasil, etc... E, ao fim de quase vinte anos de lutas, a monarquia absoluta baquearia em 1834.
            Efetivamente, Portugal, após a explosão revolucionária francesa, iniciaria, com alguma continuidade, a sua hesitante e sinuosa experiência liberal. Isolado do torvelinho europeu, não só pela geografia, mas sobretudo pelo seu atraso no tocante à evolução económica, técnica, social e mental, o País, empedernido em rotinas ancestrais, resistiu, naturalmente, à onda de inovação. 1808 é a data da primeira tentativa liberal de consciencialização política dos problemas nacionais. Mas será à guarnição militar do Porto que caberá a tarefa de, em 24 de agosto de 1820, desembainhar as suas espadas para proclamar extinto o regime absolutista e abrir as vias à regeneração da Pátria, humilhada e desmembrada.
            A situação portuguesa era, em 1820, de crise em todos os planos da vida nacional: crise política, causada pela ausência do rei e dos órgãos do Governo no Brasil; crise ideológica, nascida da progressiva difusão, nas cidades, de ideias políticas que consideravam a monarquia absoluta um regime opressivo e obsoleto; crise económica, resultante da emancipação económica do Brasil; crise militar, originada pela presença dos oficiais ingleses nos altos postos do exército e pela emulação dos oficiais portugueses, que se viam preteridos nas promoções.
            A estes factores internos de inquietação somava-se a situação política da Espanha. Durante o período das lutas napoleónicas, os resistentes espanhóis tinham aprovado uma Constituição (Constituição de Cádis, 1812) que estava em vigor quando, após a queda de Napoleão, o rei Fernando VII pôde regressar a Espanha; suspensa então a Constituição, Fernando VII governou como rei absoluto, mas em 1820 um pronunciamento militar em Cádis, rapidamente secundado por muitas províncias, obrigou o rei a voltar ao regime constitucional (março de 1820).
            Foi nesta conjuntura que surgiu a revolução de 1820. A iniciativa partiu de um pequeno grupo de burgueses portuenses, homens politicamente doutrinados, que haviam, em 1818, formado uma tertúlia política, o Sinédrio, cujo objetivo era manter o contacto e discutir a evolução da situação em Portugal e em Espanha.
            Os intelectuais do Sinédrio não tiveram dificuldade em obter a adesão de muitos militares das guarnições do Norte. Em 24 de agosto de 1820, um regimento de artilharia saiu do seu quartel, ouviu missa campal debaixo da formatura e, com uma salva de vinte e um tiros, anunciou que estava feita a revolução. Um dos coronéis leu uma proclamação onde se dizia: «Vamos com os nossos irmãos de armas organizar um Governo provisional que chame as Cortes a fazerem uma Constituição, cuja falta é a origem de todos os nossos males.»
            Iniciaram-se os preparativos para uma marcha sobre Lisboa, onde entretanto a regência reunia forças para se opor à revolução do Porto. Mas em 15 de setembro as tropas de Lisboa revoltaram-se também aderindo ao movimento.
            A revolução não encontrou qualquer resistência e despertou um enorme entusiasmo. Acreditava-se que se entrara numa era nova da história e via-se na futura Constituição a solução miraculosa de todos os problemas portugueses. Num dos numerosos folhetos que, em prosa e verso, saudaram a revolução, dizia-se que se estavam vivendo “dias cheios de sucesso tão gloriosos para a nação portuguesa que a sua narração será difícil de acreditar-se em épocas futuras, pois a nós mesmos, que os presenciamos, parecem mais sonhos que realidades. Dias que nos abrem a estrada de um porvir radioso, qual vem a ser o que nos prometem sábias leis.”
            Foi também com entusiasmo que a revolução foi recebida no Brasil, mas aí por outros motivos. Os naturais viam na gente da corte uma presença incómoda e forasteira. Muitos comerciantes eram portugueses e viam na revolução a oportunidade de restabelecer os antigos privilégios do comércio português, sem os quais aguentavam mal a concorrência das firmas estrangeiras, instaladas a partir de 1808 em grande número. Brasileiros e portugueses acharam-se assim reunidos no apoio à revolução liberal. Eclodiram revoltas liberais no Pará, na Baía e no Rio de Janeiro. Esta última partiu da guarnição militar portuguesa. O príncipe herdeiro D. Pedro serviu de interlocutor entre o rei e as tropas revoltadas e o rei acabou por jurar que aceitaria a Constituição que as Cortes de Lisboa viessem a decretar, qualquer que ela fosse (24 de fevereiro de 1821). A partir de então, o príncipe D. Pedro passou a ter papel de grande relevo nos movimentos políticos brasileiros, já todos orientados para a independência política. O rei iniciou preparativos para regressar a Portugal, acatando as exigências das cortes de Lisboa e as insistentes recomendações dois ingleses, que viam no vácuo deixado pela saída da corte um factor favorável à expansão dos seus próprios interesses.
            A maior parte dos homens que formavam o Sinédrio tinha ligações com o comércio. Isto levou muitos escritores a classificar a revolução de 1820 como uma revolução burguesa. É uma afirmação só verdadeira em certo sentido. Sabe-se que foi a força ascendente das burguesias que provocou os grandes movimentos liberais europeus: tendo nas mãos o poder económico, os burgueses lançaram-se à conquista do poder político. Nada de semelhante ocorreu em Portugal em 1820: a burguesia estava em declínio; a classe média era formada principalmente por proprietários rurais, uns nobres e outros que aspiravam a viver como se o fossem e não estavam interessados numa revolução que de qualquer modo pudesse lembrar a Revolução Francesa. De facto, se alguns membros do Sinédrio eram comerciantes, outros eram proprietários e outros ainda militares nobres; o que havia de comum entre todos era serem pessoas cultas. O seu liberalismo tinha na base não uma situação económica, mas a leitura de livros estrangeiros, as ideias bebidas no convívio universitário e nas lojas maçónicas. É nesse sentido que se pode dizer que a revolução de 1820 foi burguesa: foi a revolução da ilustração, numa época em que a ilustração era característica quase exclusiva da gente burguesa.
            Esse carácter doutrinário veio a ter consequências importantes. Foi uma revolução nascida de teorias, não de factos; a política foi desde então muitas vezes uma polémica teórica, uma política de argumentos e não de procura de soluções directas. Isso viria a fazer surgir a oposição entre dois tipos de acção política: a que pensa mas não resolve, a que se justifica de não pensar como resolver. O cabralismo foi a primeira fase de triunfo desta segunda linha. Outro resultado do doutrinarismo foi o adiamento da adesão das camadas populares, sobretudo da província, ao estado liberal. Este explicava-se não em propostas concretas de solução de problemas, mas em apologias de novos valores de cultura política, que o povo não tinha sido preparado para entender. O povo rural era, na sua quase totalidade, analfabeto e estava impregnado de uma cultura de tipo tradicional e religioso. A única organização que enquadrava a totalidade da população e mantinha com ela permanente contacto era o clero. Ora o doutrinarismo dos liberais de 1820 era anticlerical e isso desencadeou desde o princípio uma situação de conflito, que levou o clero a declarar a revolução «inimiga do trono e do altar».

                                               José Hermano Saraiva, História Concisa de Portugal

            O processo liberal assentou em dados económicos, sociais e mentais. Basta, para compreender este arrazoado, determo-nos um pouco no estudo das bases para a Constituição de 1822. «Eis tais bases pela ordem por que foram enunciadas: Secção 1, Dos Direitos Individuais do Cidadão: liberdade, segurança e direito de propriedade; liberdade individual, que consiste em “fazer tudo o que a lei não proíbe”, em não ser preso sem culpa formada nem julgado senão de acordo com as leis, na disposição da sua propriedade, na comunicação do pensamento, “sem dependência de censura prévia”; tribunal especial para “proteger a liberdade de imprensa e coibir os delitos resultantes do seu abuso”; quanto às “matérias religiosas, fica salva aos bispos a censura dos escritos publicados obre dogma e moral”; igualdade da lei para todos; abolição da “confiscação dos bens, da infâmia, dos açoutes, do baraço e pregão, da marca de ferro quente, da tortura”; direito geral de concorrer aos lugares públicos; direito de reclamação, queixa ou petição; inviolabilidade da correspondência. Secção II, Da Nação Portuguesa, Sua Religião, Governo e Dinastia: “a Nação portuguesa é a união de todos os portugueses de ambos os hemisférios”; “a sua religião é a católica apostólica romana”; o governo será a monarquia constitucional hereditária; “a soberania reside essencialmente em a Nação”, que “é livre e independente, e não pode ser património de ninguém”; só a Nação, representada pelas Cortes, pode fazer a Constituição; só passados quatro anos poderá esta ser alterada; divisão dos poderes – legislativo, executivo e judiciário; “a lei é a vontade dos cidadãos declarada pelos seus representantes juntos em Cortes”; só estas detêm a iniciativa das leis; as Cortes reunir-se-iam, anualmente, durante três meses, sem que o rei pudesse prorrogá-las ou dissolvê-las; a inviolabilidade e irresponsabilidade dos deputados pelas suas opiniões; às Cortes competiria nomear regências, aprovar os tratados, admitir tropas estrangeiras no território nacional, “determinar o valor, peso, lei e tipo das moedas”; a convocação extraordinária das Cortes seria feita por uma “junta de sete indivíduos”, que permaneceria na capital; a inviolabilidade do rei, responsabilidade dos ministros; as Cortes arbitrariam “uma dotação conveniente” ao rei e à família real; criação do Conselho de estado; caberia às Cortes a imposição e a distribuição de tributos, dos quais não seria isenta “pessoa ou corporação alguma”; reconhecimento da dívida pública e criação dos meios para o seu pagamento; força militar permanente de terra e mar; “as Cortes farão e dotarão estabelecimentos de caridade e instrução pública.”.


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