Português: A instabilidade: Setembrismo e Cartismo

terça-feira, 19 de novembro de 2019

A instabilidade: Setembrismo e Cartismo


            Os primeiros dois anos da vida política constitucional foram marcados pelo desentendimento entre o Governo e o Parlamento. A rainha substituiu quatro vezes o Governo e por fim dissolveu o Parlamento e mandou fazer novas eleições. O texto constitucional em vigor era a Carta e a oposição via nisso uma das causas da inércia governativa e da deterioração política e pretendia o regresso ao regime da Constituição de 1822.
            Em Espanha, em agosto de 1836, uma revolta de sargentos (motim de Granja) forçou à reposição da Constituição democrática de 1812. Mais uma vez se manifestou a estreita ligação entre a política portuguesa e a espanhola. Em setembro do mesmo ano, um movimento revolucionário em Lisboa obrigou a rainha a pôr em vigor a Constituição de 1822.
            A revolução de setembro não foi, como as anteriores o haviam sido, um pronunciamento de chefes militares, mas um movimento popular a que depois as tropas aderiram. Este facto tem levado os historiadores a prestar-lhe muita atenção e já se tem querido ver nela uma primeira manifestação de luta do operariado e da pequena burguesia. A revolução de setembro teria sido, segundo essa tese, uma revolução do povo, que os políticos burgueses teriam depois empalmado. A militância e capacidade de mobilização popular voltaram a manifestar-se nesse ano de 1836 e foi o povo que sufocou o contragolpe da Belenzada, tentado em novembro. Mas depois disso desaparece sem vestígio, o que seria inexplicável se ela correspondesse aos impulsos de uma cada social cujos problemas depois não foram resolvidos. Mas em 1836 faltam completamente as condições económicas de base pressupostas por uma forte e activa consciência de classe; não havia indústria nem operariado e a maior parte dos empregados nas actividades fabris (arsenais e cordoaria) eram funcionários públicos. É preciso procurar outra explicação. Ela está, possivelmente, em que os revoltosos de 1836 eram antigos combatentes do exército liberal recentemente desmobilizados e que haviam acorrido a Lisboa em grande número, porque só a capital, e em especial os serviços do estado, oferecia alguma possibilidade de emprego. A sua doutrinação política era ainda a obtida nas fileiras durante a guerra, mantida depois em clubes políticos. Esse facto ajuda a compreender a capacidade de actuação militar de que deram prova em 1836-1838, a solidariedade que encontraram nas tropas, e explica que o movimento popular de Lisboa não tenha tido qualquer continuação: era o fruto de uma situação passageira e não de condições estruturais.
            O Governo saído da revolução ficou conhecido pela designação de setembrista e a palavra setembrismo serve, até ao meado do século, para exprimir a ala mais avançada do liberalismo. A sua duração política não foi longa: vai de 1836 a 1840, e esse período foi cortado por reacções violentas. Logo em 1836, partiu do palácio real uma tentativa de golpe de estado para a restauração da Carta; por detrás dela estava o apoio da Bélgica e da Inglaterra e chegou a prever-se que, em troca desse apoio, Portugal entregaria uma das suas províncias de África. A rainha anunciou a demissão do Governo, um batalhão inglês chegou a desembarcar, mas as forças populares que tinham feito a revolução de setembro pegaram em armas, ameaçaram marchar sobre o Palácio de Belém, onde a rainha se encontrava, e fizeram falhar o golpe, que fiou conhecido por Belenzada.
            Em 1837 revoltaram-se e proclamaram a Carta os quartéis de muitas cidades da província; Saldanha e Terceira assumiram o comando do movimento, que por isso se chamou revolta dos marechais. Os setembristas atribuíram-na a maquinações inglesas provocadas pela legislação tributária, que procurava diminuir a importação pela agravação da pauta alfandegária. A revolta durou de julho a setembro e acabou por ser vencida, depois de combates sangrentos.
            Entretanto, os grupos civis que tinham feito a revolução sentiam-se desapontados com ela e preparavam-se para fazer outra. Os batalhões da Guarda Nacional (organização paramilitar com armamento próprio, incluindo artilharia) eram a força do movimento. O mais activo desses batalhões era o dos arsenalistas, formado por artífices do Arsenal, e comandados por Soares Caldeira, que havia sido o verdadeiro chefe civil na revolução de setembro. O Governo da época etiquetou o movimento de anarquista, mas Caldeira era deputado e os seus discursos não revelam qualquer pensamento ou programa político próprios, mas apenas radicalismo exacerbado. De qualquer modo, os arsenalistas amedrontaram a consciência burguesa: tinham deixado crescer as barbas, diz um escritor de então, “para meterem mais terror à população inerme da capital” Na noite de 13 de março de 1838, as tropas do Governo cercaram os arsenalistas no Rossio e metralharam-nos implacavelmente.  Os mortos elevaram-se a várias centenas, ou não passaram de uma dúzia, consoante a atitude política dos narradores perante o episódio, que ficou sempre na penumbra da historiografia liberal. O «massacre do Rossio» foi, porém de consequências definitivas para o setembrismo, porque o deixou sem força que lhe servisse de esteio. O efémero movimento popular de Lisboa mergulhou a partir de então numa clandestinidade mortiça e todas as outras forças políticas eram tendencialmente conservadoras.
            As inovações legislativas de maior relevo da administração setembrista deram-se no campo da cultura:  criação dos liceus, fundação das Academias de Belas-Artes de Lisboa e do Porto, da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, da Escola Politécnica, em Lisboa. O prosseguimento da política ultramarina visou a criação, em África, de um segundo Brasil; começou então a colonização dos planaltos de Angola e foi proibida, em 1836, a importação de escravos ao sul do equador, medida que se apresentou como destinada a provocar o investimento dos capitais envolvidos no comércio da escravaria sem empreendimentos de valorização económica.
            No Parlamento, revestido de poderes constituintes, preparou-se nova Constituição (1838), que representa uma tentativa de compromisso entre a Carta e a Constituição de 1822: volta-se à divisão tripartida dos poderes, desaparecendo, portanto, o poder moderador do rei, mas mantém-se-lhe o veto absoluto e robustece-se a chefia do executivo. O Parlamento continuou, como na Carta, a ser formado por duas câmaras, mas a Câmara Alta passou a ser constituída por senadores eleitos e temporários, e não vitalícios e de escolha régia, como sucedia na Carta.
            A Constituição de 1838 não teve vida longa. Em 1842, depois de um golpe de Estado desencadeado no Porto por Costa Cabral, a rainha mandou proclamar outra vez a Carta como constituição política do País.
            Costa Cabral, de origem popular e camponesa, tinha sido um dos chefes dos arsenalistas. Em breves anos passou da esquerda radical para a direita cartista; em 1839 era já ele o homem do poder, onde representava aquilo a que se chamava a linha «ordeira». Esta viragem, agravada pela situação sem precedentes de se ter revoltado e ter derrubado o próprio Governo de que fazia parte, fez enorme escândalo. Mas a severidade das censuras que, de todos os lados, fulminaram o ministro não se explica tanto pela acrobacia política (por exemplo, Saldanha deu saltos desses durante toda a vida) como pelo facto de ter rompido o quadro dos conceitos românticos que pautavam a acção política. Costa Cabral foi o primeiro representante do realismo político. Como todos os realistas, preocupou-se menos com os princípios do que com os factos, menos com o futuro do que com o presente. Os objectivos que se propôs atingir foram a restauração da ordem no Estado, a eficiência do serviço público, a docilidade da opinião política. Algumas reformas importantes recaíram sobre o sistema tributário e a contabilidade pública, os serviços de saúde, a organização administrativa, na qual abandonou o rumo romântico de uma descentralização para a qual se invocava a tradição medieval e optou pela subordinação das autarquias ao poder central. Entre essas duas linhas abriu-se a partir de então uma contradita que chegaria aos nossos dias.
                                               José Hermano Saraiva, História Concisa de Portugal


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