Português: O contexto de produção do Sermão de Santo António aos Peixes

domingo, 29 de setembro de 2019

O contexto de produção do Sermão de Santo António aos Peixes


            São Luís do Maranhão foi tomado aos franceses em 1615. O seu território estendia-se pelas duas margens do Amazonas, até às indefinidas fronteiras do Peru. O estado do Maranhão, independente do do Brasil, foi oficialmente criado em 1621. Integrava duas grandes capitanias-gerais: a do Pará, com sede em Belém do Pará, e a de São Luís do Maranhão, que era a capital de todo o estado.
            Ainda em 1662, depois da partida do Padre Vieira, apenas algumas centenas de portugueses, menos de um milhar, povoavam essa imensa região. Todos eles viviam do trabalho dos índios, em grandes fazendas auto-suficientes. Algumas produções, sobretudo o açúcar e o tabaco, constituíam o grosso das exportações para a metrópole, que, em troca, enviava artigos manufacturados. O tecido de algodão era a moeda corrente.
            Exploravam-se os índios como trabalhadores “livres” ou como escravos. No primeiro caso, eles dependiam das autoridades reais; no segundo, eram, na sua maior parte, propriedade privada dos colonos ou moradores. Geravam-se conflitos, por vezes sangrentos, entre os moradores e os funcionários do rei, já que ambos os campos pretendiam apoderar-se do maior número possível de índios. O rei devia arbitrar esses conflitos tendo em conta que o auxílio e a boa vontade dos índios eram indispensáveis à defesa da soberania portuguesa contra os holandeses, que continuavam a dominar ao norte do Brasil, e ainda à expansão em direcção ao Peru.
            Para esta tarefa, o rei contava com o precioso apoio das ordens religiosas. Depois de uma breve experiência dos jesuítas, em 1642 as missões são confiadas, em todo o território, aos franciscanos. Estes deparam, por volta de 1636, com o seu próprio fracasso, em boa parte devido ao facto de, não querendo ou não podendo explorar o trabalho dos índios, terem de se contentar com uma doação real que, além do mais, não lhes era entregue com a devida regularidade. Defrontavam, ainda, como adversários, alguns dos jesuítas que se tinham deixado ficar sob a direcção do Padre Luís Figueira.
            Depois do fracasso dos franciscanos, os jesuítas preparam uma grande investida missionária e obtêm, em 1643, a exclusividade das missões do Maranhão. Segue de Lisboa uma missão, dirigida pelo Padre Figueira, mas a maior parte dos seus elementos perecem num naufrágio na costa da ilha de Morajó.
            No que respeita ao estatuto jurídico dos índios em todo o Brasil, sucediam-se leis contraditórias, num movimento pendular, desde a de 1570, que havia proibido a escravidão dos índios. Mais recentemente, a lei de 30 de junho de 1607 estabelecera a igualdade de direitos entre os índios e os portugueses; mas uma outra, de 10 de setembro de 1611, estabelecera a escravatura dos índios feitos prisioneiros em guerra “justa”, assim como a dos índios encontrados em vias de serem mortos por outros índios (índios de corda), sendo o tempo desta última espécie de escravatura limitado a dez anos. Inspirada pelos jesuítas, a lei de 1609 punha todos os índios sob a administração e protecção dos padres. Em contrapartida, a de 1611 colocava as aldeias de índios “livres” sob o governo de administradores laicos, chamados capitães, que tinham o encargo de repartir pelos colonos a mão-de-obra índia. Tal era a lei quando o novo estado foi criado.
            A lei promulgada, regulando a liberdade dos índios e suas restrições, foi sofismada até sua quase completa inutilidade. O Padre Vieira, reconhecendo-a, ineficaz, enquanto não fosse evitada a intervenção civil na cristianização e civilização dos selvícolas, pela entrega do seu governo exclusivamente aos seus párocos, procurou obter a assinatura de todos os principais da cidade de S. Luís, afetos à Companhia, para uma representação a dirigir ao rei. Logo que os colonos tiveram do caso conhecimento, houve celeuma breve, e é em tal momento que a pugnacidade de Vieira atira do alto do púlpito, contra os inimigos da sua política indígena, os dardos tão brilhantes como percucientes desta sátira. A causticidade da ironia, a expressividade dos símbolos, o poder de observação no descritivo, com trechos de imperecível beleza clássica, o relevo, o brilho, a graça da linguagem, até a própria orgânica do sermão – primeiro a alegoria da vida colonial em conjunto, depois as várias alegorias representando em várias espécies de peixes os vários tipos de colonos mais susceptíveis de caricatura, tudo na peça é de novidade impressionante.
            Em suma, é dentro do contexto das lutas que opõem os jesuítas e os colonos, por causa da exploração desumana dos indígenas, que Vieira , defensor dos seus direitos e da abolição das leis que os tornavam cativos, profere este discurso. Tentou comunicar, por cartas, a D. João IV a situação que se vivia no Brasil, à qual se seguiram outras. Foi por não ver sucesso nesta sua empresa que embarcou para Lisboa a 14 de junho de 1654, para colocar o rei ao corrente de tudo. Aproveitando o facto de 13 de junho ser, no calendário litúrgico, o dia de Santo António, pronunciou o Sermão de Santo António aos Peixes, que deixou enraivecidos os colonos.
            Em Lisboa, após uma viagem atribulada, tentou alterar as leis, de forma a limitar o poder dos colonos sobre a exploração dos índios.
            Finalmente, em abril de 1655, conseguiu que fosse dada a «exclusividade da faina das missões» aos jesuítas. Daí que uma das temáticas do Sermão de Santo António seja a denúncia das atrocidades que os índios sofriam às mãos dos colonos portugueses. Toda a crítica assenta na utilização da alegoria, pois os símbolos simbolizam os vícios dos homens.


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