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quarta-feira, 30 de agosto de 2023

A verosimilhança em O Delfim


    A verosimilhança é a qualidade do que é verosímil, ou seja, aquilo que, neste caso, no romance se conta é crível, dado que é semelhante à realidade.
    No caso de O Delfim, o efeito de verosimilhança é criado de diversas formas. Em primeiro lugar, convém ter presente que estamos na presença de uma narrativa narrada na primeira pessoa. De facto, o narrador conta uma história em que participa como personagem (narrador homodiegético) e que se institui como tal desde a página inicial: “Cá estou”. Desta forma, cria-se a sensação de que aquilo que o narrador relata é supostamente verdadeiro, o que é reforçado pela focalização interna. Por outro lado, o facto de a personagem-narrador percorrer os vários espaços e a descrição da paisagem natural (os estratos e as relações sociais) transmitem igualmente essa sensação de realidade. Além disso, ele contacta, de facto, com as personagens que evoca, que também o (re)conhecem. Afinal, o Sr. Escritor tem uma história de, pelo menos, um ano por aquelas bandas, que depois narra a partir da memória.
    Em segundo lugar, são introduzidos constantemente na narrativa referentes espácio-temporais históricos e universais. Essa introdução de referentes históricos, políticos, sociais e culturais – nacionais e universais –, localizados no espaço e no tempo, tornam crível que tudo é verdade. No entanto, convém ter presente que alguns referentes espaciais são fictícios. São os casos da Gafeira, da Lagoa e da Urdiceira.
    Esta coexistência de referentes reais e fictícios tem um papel importante na obra. De facto, ela faz com que a Gafeira seja um local e exista. Por exemplo, na obra consta que a localidade vem no mapa do ACP e que se situa a 135 km de Lisboa, mais concretamente no distrito de Leiria, tal como sucede com a Lagoa e a Urdiceira.
    Outro aspeto a ter em conta é a intertextualidade, ou seja, a inserção de citações e documentos na narrativa. Esses documentos têm várias proveniências: património oral, património tradicional (como, por exemplo, os provérbios e sentenças populares), citações ou alusões a obras e autores mais ou menos consagrados. Há ainda os casos da Monografia do Termo da Gafeira, do Abade Agostinho Saraiva, e o Tratado das Aves, composto por um Prático. Serão estas obras mais ou menos ficção? A mesma dúvida se coloca a propósito dos títulos e notícias de periódicos.
    O próprio narrador, nalguns casos, admite que determinados elementos são pura ficção da sua autoria. É o que acontece, por exemplo, neste passo: “Esta canção, October sigh, nunca existiu. Nem jamais alguém a poderá repetir, incluindo eu que acabo de a inventar e que não me hei de lembrar dela por muito tempo”. Noutros momentos, ele cita passagens do seu caderno de apontamentos, algumas das quais não se lembra onde as colheu (“li isto algures”, “Onde diabo fui eu buscar isto?”) e que, por vezes, surgem a título de nota de pé de página, a qual pretende garantir a veracidade, dado que a nota (quer do autor, quer do editor), por definição, tem como finalidade complementar ou esclarecer algum aspeto mais ou menos equívoco, mas sempre sobre algo que é real ou se tornou real.
    Em terceiro lugar, temos a alternância entre falar e mostrar, que é dada pela inserção alternada de discurso direto e indireto e pela pluralidade de pontos de vista. Relativamente ao discurso, o narrador prefere apresentar o discurso das personagens na sua forma mais pura: o discurso direto. Em vez de dizer o que elas disseram, dá-lhes voz no texto. No entanto, noutras ocasiões, resume as falas das personagens por uma questão de economia narrativa ou por motivos estilísticos. No que diz respeito à pluralidade de pontos de vista, a reconstituição de acontecimentos (à frente das quais as mortes) baseia-se em grande medida nos depoimentos / versões das várias personagens. Deste modo, a versão que o leitor constrói parece-lhe credível e ele sente que participa na construção do raciocínio.

Provérbios e outras expressões populares em O Delfim


    Os provérbios contribuem para o enriquecimento da linguagem do romance. Alguns deles, pelo seu uso constante, colam-se às personagens, tipificando-as. É o que sucede, por exemplo, com a frase “Para a cabra e p’ra mulher, rédea curta é o que se quer”, que traduz o marialvismo de Tomás Manuel.
    Outros, quando aplicados a Tomás Manuel da Palma Bravo, caracterizam-no indiretamente como o burguês sem lucidez, opressor e poderoso que não merece possuir esse poder: “Estes tipos quanto mais nos olham menos nos querem ver”; “tal senhor, tal cão”, “um homem dá tudo menos os cães e os cavalos”; “quem trata mal os criados é porque não me pode tratar mal a mim.”
    Outro conjunto de provérbios aplicados a esta personagem, de caráter social, comprova que a grande maioria dos mesmos é adulteração do narrador, imitando os genuínos. Os que Tomás Manuel usa são todos inventados, o que atesta uma falsa erudição da personagem.
    Pelo já exposto, estes provérbios contribuem para a crítica de cariz social e económico, para a construção de um retrato da sociedade da época. Por exemplo, no que diz respeito à mulher, essas frases retratam-na de forma depreciativa. Atentemos nos seguintes: “Rédea curta e porrada na garupa”; “Fazer filhos em mulher alheia é perder tempo e feitio.” Os mesmos sugerem o machismo da época, bem como a prepotência, a falta de liberdade e a violência a que a figura feminina estava sujeita. Por outro lado, apontam para a prepotência de Palma Bravo face a Maria das Mercês, apenas contrariado por um dito do Cauteleiro: “quem muito fornica acaba fornicado.”
    A falta de vocabulário do Engenheiro é especialmente evidenciada pelo recurso frequente ao advérbio «positivamente», que funciona como uma espécie de muleta, na qual ele se apoia sempre que lhe faltam as palavras ou como suporte de uma afirmação, à partida insustentável, e que ele procura instituir concluindo como o referido advérbio.
    A linguagem popular de Tomás Manuel é evidenciada também pelas expressões que usa para se referir às suas regras de ouro para a caça e a pesca: “na caça cão e batedor”, “os cães são a memória dos donos”, “Água para os Peixes, Vinho para os Homens (y mierda si no te gusta”).
    O caráter pitoresco da linguagem estende-se a todas as personagens, visível nos seguintes exemplos: “cala-te boca”; “quem se mata leva destino”; “preparou a cama deitou-se nela”; “toda a abundância traz castigo”; “quem não se sente não é filho de boa gente”; “mexericos do povo que onde não vê põe ouvidos”; “imaginação e velhacaria fazem boa companhia”. Pela observação destes exemplos, facilmente se comprova que muitos dos provérbios introduzidos na obra são adulterados e/ou parodiados, todavia respeitam a estrutura que lhes é inerente.
    Por seu turno, o povo, no seu conjunto, acredita em lendas, mitos, parábolas e outras historietas povoadas de fantasmas, lobisomens, cães-manetas e almas penadas. Essa crença permite ocupar o tempo, que se arrasta e demora a passar, tardando em trazer a tão ansiada mudança, a acabar com as profecias e maldições que pairam sobre a aldeia, tal como consta na Monografia do Dom Abade.
    Deste modo, podemos concluir que, por detrás da aparente simplicidade da linguagem, há uma mensagem só acessível aos leitores mais atentos, àqueles a quem o narrador se dirige, uma forma de ironizar com a censura.
    Por outro lado, o coloquialismo (“se me permitem”, “mas continuemos”, “fiz-me entender leitor benigno? fui claro monge amigo? e nós minha hospedeira?”) tem uma dupla função. Por um lado, aproxima o leitor do texto; por outro, alerta-o para a mistura de planos, para a ironia fina que está presente ao longo das páginas e para a necessidade de saber ler nas entrelinhas e não ser “alguém desprevenido”. Expressões como “a dar com um pau”, “a pata que o pôs”, “atrás de saias”, “quem o mandou ser parvo”, “que me tem feito a vida negra”, etc., tornam-se clandestinas e constituem um ferrete para o leitor que as partilha com o narrador.

A linguagem popular em O Delfim

    A Gafeira é uma aldeia situada algures na costa portuguesa, cujos habitantes são, em grande parte, rurais, simples e modestas, pelo que a linguagem que usam também se caracteriza pela simplicidade, mas não em demasia.
    A escrita coloquial do romance, em jeito de conversa com o leitor, ao jeito de Almeida Garrett nas Viagens na Minha Terra, não cai no exagero do pitoresco ou do calão, não faz uso de regionalismos, mas a expressões quotidianas. Se o narrador não tivesse tomado esta opção, a atenção do leitor poderia ser desviada do que é realmente importante: retratar as mudanças da Gafeira e não a linguagem dos seus habitantes que, tal como eles, se vai tornando clandestina. Como exemplo, podem citar-se as referências à crendice popular e à religião: “Jesus, o que são as coisas!”, ou a alusão a lendas, lengalengas, profecias, mitos, superstições e parábolas.

Séries de animação do meu tempo: "Charlie Brown"


    Charlie Brown é o protagonista de uma série de animação cujas personagens e histórias provêm das tiras de banda desenhada de Charles M. Schulz, intitulada Peanuts, que passou originalmente na cadeia de televisão CBS entre 1983e 1985, produzida por Bill Melendez e Lee Mendelson.
    A personagem principal é uma criança generosa, mas tímida e desastrada, apaixonada por uma menina ruiva que não lhe presta atenção. O seu animal de estimação chama-se Snoopy e é um cão que joga basebol, ténis, golfe, vê televisão e adora biscoitos de chocolate. Lucy é outra menina, autoritária e egoísta, que resolve os conflitos à base do grito e que derruba qualquer oponente com os seus comentários verrinosos e sarcásticos. Linus é o irmão mais novo de Lucy e o melhor amigo de Charlie Brown, tem problemas emocionais e nunca larga o seu cobertor azul. Shroeder, a paixão de Lucy, é o artista do grupo: toca, num piano de brincar, as grandes obras de Beethoven, o seu ídolo. Peppermint Patty é uma rapariga com sardas e cabelo castanho, que interpreta de forma errada conceitos e ideias básicos que a generalidade das pessoas considera óbvios.

O léxico de O Delfim

    A primeira nota a ter em consideração é o facto de o autor privilegiar o uso do nome em detrimento do adjetivo. Por outro lado, deita mão de diversos empréstimos, isto é,palavras e expressões de línguas estrangeiras, bem como latinas (“Ad usum Delphini”, “naturae vitae delphini”, etc.). O recurso aos latinismos é sinónimo de erudição, um reflexo de uma herança cultural e um traço característico de muita literatura portuguesa: “Como se dissesse: «Quod scripsi, scripsi» – e fosse um imponente eco romano”. No entanto, periodicamente o narrador adultera o seu sentido, transformando-as em humorísticas ou irónicas, como sucede com a seguinte: “Ecce Homo, este é o meu whisky”.
    No que diz respeito aos empréstimos, o maior conjunto pertence ao inglês, com cerca de quinze ocorrências, seguida do francês com doze e do castelhano com seis. Este traço significa que o narrador conhece múltiplos idiomas, o que se concretiza quer no discurso do narrador, quer no diálogo com Palma Bravo. Por outro lado, quer dizer que a personagem do Engenheiro domina o vocabulário básico dessas línguas (inglês, francês, italiano, alemão, castelhano), bem como os lugares comuns da cultura livresca. Em terceiro lugar, relaciona-se com o tema e o clima das conversas, quer as que ocorrem no bodegón, quer na lagoa, com o grau de álcool, com os «bons» ou «maus vinhos» do Engenheiro. Além disso, tenha-se presente que, nas várias conversas que o narrador-personagem recorda, existem modas, isto é, ora se fala inglês, ora francês, ora castelhano.
    Outro recurso utilizado é a chamada polinomásia, ou seja, o mesmo indivíduo ou entidade é designado por vários nomes: o próprio, o apelido, o do seu estatuto social, profissão e situação. É o que acontece, por exemplo, com Palma Bravo, com o Cauteleiro e com a dona da pensão (hospedeira, estalajadeira, patroa, formiga-mestra, Santa hospedeira, Santa Dona Hospedeira.

Narratário de O Delfim

    Uma narrativa implica a existência de um narratário, comummente o leitor, a quem aparentemente o narrador se dirige e que o escuta, mas também participa ativamente. Por exemplo, há momentos em que o narrador se dirige ao leitor, interpelando-o diretamente: “A sério, palavra de senhor escritor”; “Fiz-me entender, leitor benigno?”. Neste último exemplo, encontramos semelhanças com o que sucede nas Viagens na Minha Terra.

Registos de língua de O Delfim


    N’ O Delfim, existem diversos registos de língua.
    O romance constrói-se sobre o discurso do narrador, que dilui a fronteira que separa a escrita da oralidade logo a partir da página inicial da obra: “Cá estou”. A coloquialidade impera ao longo do texto, nomeadamente na interação verbal (isto é, os diálogos) e no discurso do próprio narrador, que explora todas as potencialidades da língua ao nível do léxico, da sintaxe, da semântica e da estilística.
    O narrador privilegia o registo culto, literário, produzindo um discurso literário quando se institui como poeta e ensaísta ou quando combina os registos das várias personagens. Por outro lado, ele socorre-se também da língua culta não literária, faz uso de um registo quase policial sustentado na lógica e valorizador de uma suposta objetividade, deixando a tarefa da pesquisa para o leitor. Outro momento ocorre quando o narrador se apresenta como autor de um texto publicitário ou quando procura imitar o estilo pretensamente documentalista do Abade, ou seja, quando se aproxima da “toada dos doutores da água benta”.
    O registo popular, por seu turno, ocorre nas falas da Estalajadeira, do Cauteleiro, do Batedor e de Tomás, que são exemplificativas da coloquialidade. Assim, o discurso da Estalajadeira é caracterizada por um tom familiar, ora confidente, ora discreto, afetado pelo pudor: «”Ai, ai… cala-te boca.”». Note-se, nesta fala, uma grande vontade de falar e até uma certa fluência. Já nos casos do Cauteleiro, do Batedor e de Palma Bravo, o seu discurso é pautado por meias frases, termos mais ou menos boçais, alusões obscenas, injúrias, anátemas e alguns enunciados com segundos sentidos.
    No romance, encontramos também a gíria dos caçadores de Palma Bravo, no Batedor, no Regedor e no narrador, as suas arteirices e preparativos. No entanto, nalguns passos, este registo dará lugar a outro mais técnico-científico, exemplificado pelas citações do Tratado das Aves. Igualmente técnico-científico é o registo estereotipado do Regedor: o dos autos, porque acima de tudo está a “verdade dos factos”: “Altercaram as partes… envolveram-se em desordem da qual resultaram ofensas morais e corporais…”.
    A personagem-narrador, autor e escritor, possui um fino espírito crítico, bem como um grande poder de observação que se foca em variadíssimas coisas, como, por exemplo, os atos de fala das personagens, traços recorrentes, tiques, em suma, uma idiotice, ou seja, a maneira de falar própria de um indivíduo. O próprio escritor irá imitar vários idioletos através do chamado discurso estilizado. Vejamos exemplos dos mesmos: “Tu é que sabes. Tu é que és escritor. Possivelmente”; “E quanto ao automóvel «não há hipótese», como diria o Engenheiro. Positivamente”; “Absolutamente. Ou antes, positivamente…”; “Positivamente, Engenheiro Anfitrião”; “Duas silhuetas de moeda [Tomás e Maria das Mercês], dois infantes do meio-dia. Dois quê?”; “Sorrio. Infante nunca foi um termo meu. Saltou-me à ponta da frase porque desde que cheguei que o tenho ouvido”.
    Relativamente à imitação do idioleto das personagens, poder-se-á tratar de uma paródia ou de uma contaminação do discurso do narrador, também ele preso ao cosmos da Gafeira.
    Assim, é lícito concluir que, n’ O Delfim, coexistem harmoniosamente diferentes registos linguísticos: ao lado de uma comunicação simples, quotidiana, pautada por frases batidas, bordões linguísticos, provérbios e sentenças populares, encontramos o registo erudito e até poético do narrador.
    Quanto à norma linguística, o romance reflete a língua padrão, dado que o seu vocabulário é corrente e acessível, a construção sintática é relativamente simples, observando-se as regras de correção gramatical. Sucede que, na obra, o complicado não é o texto das linhas, mas o das entrelinhas.

Autorreflexividade em O Delfim


    Exceto no caso da autobiografia, é raro um autor afirmar que ele e o narrador são a mesma pessoa.
    O narrador é a entidade que conta uma narrativa, pelo que só existe no espaço da escrita. Qualquer escritor de ficção precisa dele para poder escrever, salvaguardando-se, assim, a identidade civil do escritor e a sua libertação, visto que o narrador é uma entidade que finge criar. Trata-se de uma invenção que narra uma ficção, isto é, uma «estória» inventada. Ora, o facto de o narrador ser uma entidade fictícia, virtual, poliédrica e múltipla, faz com que a sua figura se torne esquiva, mas ao mesmo tempo muito densa. É o que sucede, por exemplo, com os narradores das Viagens na Minha Terra ou a prosa de Camilo Castelo Branco, os quais dominam totalmente a narrativa, devido precisamente à chamada autorreflexividade, isto é, toda a escrita que não se dirige ao leitor, mas para o interior da identidade que escreve, que se movimenta como que em diálogo consigo própria, observando-se, pensando-se, refletindo sobre a sua própria escrita, o seu conceito de arte, analisando o seu mundo [“(…) meu lado crítico, minha voz independente”].
    Existem diversas formas de um narrador mudar o tom da sua narração. Uma delas é o recurso aos parênteses, que se tornam um «espaço» de onde emerge uma segunda voz, com pendor crítico, que interrompe momentaneamente a narrativa, criando um novo espaço, à laia de mostra de outras áreas do ego, nas quais reflete sobre si próprio e emite juízos de caráter íntimo.
    Por outro lado, esta figura só existe no presente, é ela quem conta a história, todavia, sempre que dialoga consigo própria, o narrador dirige-se indiretamente ao leitor, isto é, sempre que recorre ao presente para falar de si próprio, ele utiliza as suas reflexões para criar um efeito no leitor, o que vai ao encontro do conceito de «obra aberta» de José Cardoso Pires, que torna imprescindível a presença do leitor, já que cabe a este dar sentido à narrativa.
    Em terceiro lugar, algumas referências literárias, certa intertextualidade e até determinada ironia são também autorreflexivas, ao contrário do que sucede com as falas das outras personagens, bem como certas respostas do narrador, que, apesar de revelarem algum do seu mundo pessoal, não contribuem para a autorreflexividade, visto que, nestes casos, o narrador não reflete de si para si.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Ciência do narrador de O Delfim


    O narrador não se estabelece no plano da posição de focalização zero, ou narrativa não focalizada, que lhe permitiria saber tudo sobre todos – omnisciente, portanto. Pelo contrário, ele sabe tanto quanto as outras personagens. Talvez um pouco mais porque procura a informação, recolhe-a e analisa-a – daí o escritor-furão. Ou seja, estamos perante um caso de focalização interna.
    Não obstante, se o narrador não é omnisciente, como se explica a longa e pormenorizada descrição do espaço íntimo de Maria das Mercês no capítulo XXV? Trata-se de pura imaginação.
    O narrador sabe muitas coisas, mas ignora outras tantas. De facto, os mistérios subsistem n’O Delfim, como, por exemplo, as mortes de Domingos e de Maria das Mercês, e que constituem a intriga mais evidente (ao nível mais superficial). Assim sendo, factos, etc., o que coloca o romance na esfera do romance policial, constituindo o narrador o detetive. Não é por acaso que se fala de «crime perfeito», de enigma da Dama das Unhas de Prata e no diálogo que o narrador e Palma Bravo travam. Frequentemente, aquele invoca, mesmo que ironicamente, o nome de Sherlock Holmes. Também não é por acaso que surge no texto uma transcrição da revista «Merkur» que relata um crime. Em suma, não é por acaso que o ritmo da narrativa se faz com frequentes alternâncias, encaixes e elipses.
    No entanto, os mistérios não ficam por aqui. Maria das Mercês morreu acidentalmente, foi assassinada ou quis, de facto, suicidar-se? Quem é estéril: Maria das Mercês ou Tomás, que sempre se recusou a fazer testes? Ou seriam os dois? Ou seria Tomás um macho orgulhoso, mas impotente? Seria homossexual? O que é que se passou na noite do bar da Shell?
    O narrador não é propriamente um detetive, mas parece sê-lo, tendo em conta que é um escritor-furão, curioso, insaciável, permanentemente em busca de uma verdade. Ele recolhe as versões de todos os informantes, confronta-as e vai formulando hipóteses. Parece aproximar-se da verdade, muda de pista, debruça-se sobre pormenores. Neste contexto, o discurso é modalizado por expressões de dúvida como «talvez», «é de crer», «supõe-se», «conta-se», e várias formas verbais no modo conjuntivo. A sua «investigação» é constantemente dificultada pelo surgimento de boatos, preconceitos e mitos (as versões distorcidas da Estalajadeira, do Batedor e, sobretudo, a do Cauteleiro). Além disso, há a verdade sobre a última noite dos Palma Bravo, guardada pelo zelo do Regedor (que não quer alimentar intrigas) e pelo laconismo do Padre Novo. Apenas eles, juntamente com o médico que fez a autópsia, sabem o que aconteceu (veja-se o capítulo XVIII).
    Mas há outros mistérios, segredos íntimos, informações confidenciais, sobre os quais pouco se sabe em concreto, dado que as provas e os testemunhos ora são omissos, ora inconcludentes. Instaura-se um nível de incerteza a partir dessa realidade polissémica: “Interessa mais a suspensão do facto do que a sua decifração”. Deste modo, o narrador envolve o leitor numa teia de incertezas, sendo frequentemente chamado a participar na decifração. Estaremos na presença de uma estratégia para suscitar a atenção do leitor?
    Basicamente, a estrutura do romance assenta no percurso do caçador que chega à Gafeira e se instala numa hospedaria conhecida. “Cá estou” é a expressão inaugural que institui o tempo da narração: o presente do indicativo, o tempo da pseudo-objetividade. Trata-se de uma narração que ocorre em simultâneo com o percurso do narrador, que frequentemente dá notícia do tempo que corre. A outra parte são excursos, as divagações e as lembranças, que dão densidade à obra. Neste âmbito, desempenha um papel importante a memória, uma memória seletiva que transporta o narrador no espaço e no tempo – e o leitor com ele. A memória ganhará mais relevância ainda quando é instigada pela insónia das personagens: a recapitulação de acontecimentos, a reconstituição de factos, as lembranças espontâneas e as divagações preencherão esse vazio doloroso causado pela insónia.
    Um outro elemento importante na estrutura do romance é o quarto, o espaço onde o narrador passa grande parte do seu tempo e de onde frequentemente se evade por meio do pensamento. Primeiro, do ponto de vista logístico, porque permite um olhar distanciado, sobranceiro. Fica num primeiro andar e tem uma janela («vigia», «postigo») sobre o largo, a rua e o café – espaços de confluência, conhecimento, comunicação. Ao longo, avistam-se os montes e a Lagoa, vê-se o céu.
    Por outro lado, o quarto é, por excelência, um lugar de introspeção, de onde ele parte para reflexões, associações (“De raciocínio em raciocínio irei longe”), evade-se em recordações obsessivas através do seu reflexo nas vidraças espelhadas da janela (como no espelho de Alice?), vendo-se e revendo-se no passado, transfigurando-se noutros. No quarto, existem outros pontos de fuga: o caderno de apontamentos, a Monografia, a aguardente no cantil; as distrações exteriores (passos, vozes, ruídos), o fumo e o nevoeiro (a bruma como fator encantatório). Há, em suma, um acordar e a transição, transformação ou metamorfose é quase impercetível. O narrador sente-a, pressente-a.
    Outro elemento a ter em conta é o jogo, também ele associado à decifração de enigmas, à interpretação de símbolos e metáforas. Todavia, apresenta-se também sob outras formas: os jogos verbais (o “jogo do olho-vivo”), os provérbios e trocadilhos); o jogo de “bridge” no café, protagonizado pela jovem das calças de amazona e os caçadores; a caça, jogo de vida ou morte.
    Em suma, o narrador, deste modo, gere a narrativa de forma artificiosa jogando com o tempo (anacronias: analepses, prolepses, elipses, digressões) e com o espaço (interiores, exteriores, enquadramentos, perspetivas, panorâmicas, pormenores), confundindo até as coordenadas.

O Senhor Ventura, de Miguel Torga


    O Senhor Ventura é um alentejano de Penedono que, aos vinte anos, vai cumprir o serviço militar para Lisboa, onde se distingue pela sua irreverência e pela habilidade para desenrascar pequenas situações ou ocorrências e pelo assassínio de um homem numa taverna, ato que não se consegue provar, mas todos suspeitam de si. Por isso, é enviado para África, onde se envolve, amorosamente, com a filha de um oficial e, descoberto, acaba por desertar e envolve-se no tráfico de ópio por mar. Após assassinar um fiscal britânico quando este se preparava para abordar o barco (mais uma vez sem testemunhas) decide voltar a terra, deslocando-se para a cidade de Pequim, para uma garagem da casa Ford. Aí, encontra outro desertor, um minhoto de nome Pereira, dono de um «local» onde serve refeições, até ao dia em que se envolvem numa rixa com soldados americanos e são obrigados a fechar o «estabelecimento».
    Decidem então ir para a Mongólia entregar duzentos camiões da Ford ao governo chinês. A aventura seguinte é o rapto do velho milionário Chung Lin. O desejo de regressar à pátria é suspenso pela montagem de um arsenal que forneça armamento às várias fações em guerra na China, após umas febres que o afetaram e das quais foi salvo graças aos esforços tenazes de Pereira. Durante um assalto feito pela fação rebelde do exército chinês, o Sr. Ventura perde tudo menos a vida. Menos afortunado é Pereira, que morre e é enterrado no deserto.
    De novo em Pequim, um mês depois, apaixona-se por Tatiana, com quem casa. No entanto, ela é uma mulher rebelde, que não o ama, não é prendada (nem cozinhar sabe), e os dois agridem-se regularmente. Ao amor dele corresponde apenas a atração física dela.
    O nascimento do filho Sérgio leva-o a procurar uma vida economicamente mais estável e menos feita de expedientes, daí que resolva distribuir por vários locais da cidade máquinas de jogo. De seguida, monta uma garagem de táxis e aprende a ler e o dinheiro começa a crescer.
    Intuindo que algo está para mudar na China, vende os carros, pega fogo à garagem, recebe o dinheiro do seguro e monta, num bairro discreto, uma fábrica de heroína. Denunciado o negócio da heroína, o Sr. Ventura é repatriado, deixando na China o filho e a mulher, esta com uma procuração para gerir o que resta da sua fortuna.
    Em Penedono, aluga a herdade do Farrobo por cinco anos com intenções de a fazer render bom dinheiro e descreve à sua mulher, a russa Tatiana, a notícia, mas a resposta demora um ano a chegar. Acumulando graves prejuízos na exploração da herdade durante os primeiros anos, chega a Portugal o filho de oito anos pela mão do Sr. Gomes, que lhe relata o que sucedeu nesses quatro anos na China. Em suma, a mulher levara uma vida de dissipação com amantes, primeiro um turco e depois um inglês.
    A colheita do quinto ano é abundante. O Sr. Ventura paga as dívidas reparte os lucros entrega a herdade, uma chave ao filho, que entretanto colocara num colégio de Lisboa, e retorna à China para se vingar. Passado meio ano de procura obstinada e obsessiva por meio Oriente, encontra finalmente Tatiana em Xunquim, ou melhor, encontra-o ela a morrer num hospital, vitimado por um cancro no fígado.
    Enterrado nessa cidade, o filho é expulso do colégio por falta de quem pague as mensalidades, para o Farrobo, onde o velho Gaudêncio o acolhe e põe a guardar ovelhas. "Pastor, que foi por onde o Senhor Ventura começou."

Séries de animação do meu tempo: "Os Estrumpfes"


    Os Estrumpfes, ou Smurfs, surgiram em 1958, no n.º 1071 da revista Spirou, enquanto personagens secundárias de uma história intitulada "A Flauta de Seis Buracos", da banda desenhada Johan et Pirlouit. Contudo, tornar-se-iam um fenómeno de popularidade sobretudo na década de 1980, quando os estúdios Hanna-Barbera lançaram os desenhos animados.
    Os Estrumpfes foram criados pelo cartunista e roteirista belga Pierre Culliford, mais conhecido por Peyo. Em 23 de outubro de 1958, Johan e Pirlouit são encarregados de recuperar uma flauta mágica, que exigia alguma feitiçaria por parte do assistente de Homicídio. Deste modo, eles encontram uma pequena criatura humanoide e pele azul, vestida com roupas brancas, chamada Schtroumpf, acompanhada por um grupo de figuras parecidas com ele, com um líder idoso que usa roupas vermelhas e tem uma enorme barba branca: é o Grand Schtroumpf.

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Sob a Bandeira da Coragem, de Stephen Crane


    Henry Fleming é um jovem inexperiente e fogoso que se alistou como voluntário no exército da União, ansioso por participar na Guerra da Secessão. No entanto, a monotonia dos primeiros tempos de soldado (sempre a sonhar com batalhas) desilude-o.
    Quando participa na primeira, acaba por fugir do campo de batalha durante uma carga da fação inimiga, pensando que a derrota é inevitável. Porém, qual não é o seu espanto e o sentimento de ter sido traído quando os companheiros que permaneceram em combate conseguem vencer a batalha, que ele considerava já perdida. O contacto com a carnificina, com a morte de amigos e com comportamentos bizarros de outros soldados, faz com que o jovem, por um lado, seja atacado pelo vírus do remorso (por ter fugido enquanto os outros davam a vida na luta) e, por outro, questione as motivações da guerra: "Estavam sob a ilusão de que combatiam por princípios, pela honra, pelo seu lar e por outras coisas. Bom, e de facto combatiam."
    Após nova refrega, depara com uma massa de soldados em debandada e é agredido com uma coronhada na cabeça quando agarra um deles para o questionar sobre o que se está a passar. Auxiliado por outro soldado, acaba por reencontrar o seu regimento. A ferida na cabeça possibilita que seja tratado como um ferido de guerra e não como um cobarde fugitivo, como temia. Pelos relatos que entretanto ouve, conclui que os atos de cobardia não são exclusivo seu no próprio batalhão.
    No dia seguinte, em novo recontro, dá consigo a transformar-se num combatente feroz. No entanto, ao escutar, por acaso, uma conversa entre um general e um oficial, apercebe-se de como a sua vida é insignificante para eles.

Séries de animação do meu tempo: "Os Flintstones"


    "Flintstones" é uma série de animação produzida pela Hanna-Barbera Productions, que teve a duração de seis temporadas, num total de 166 episódios, entre 1960 e 1966.
    A série passa-se na Idade da Pedra. Os protagonistas são as famílias Flintstones e Rubble. Deste modo, o espectador segue a vida de Fred e Wilma Flintstone, do seu dinossauro de estimação Dino e, mais tarde, do seu filhoPebbles. Barney e Betty Rubble são os seus vizinhos e melhores amigos.
    Na prática, a produção configura uma versão cómica da sociedade norte-americana de meados do século XX, aplicada à Idade da Pedra, mais concretamente à fictícia cidade de Bedrock. Essa sociedade inspira-se na explosão suburbana que ocorre nas duas décadas seguintes ao final da Segunda Guerra Mundial.

Memnoch, o Demónio


    Lestat é um vampiro obcecado por Dora, a filha de um barão da droga que será a sua próxima vítima. Ao mesmo tempo, sente-se perseguido por um monstro gigantesco e horrendo. Depois de beber o sangue de Roger e, consequentemente, o matar, Lestat é surpreendido pelo seu fantasma, que lhe pede que proteja a filha. Os dois acabam a falar longamente sobre vários assuntos num bar, nomeadamente de Dora e de teologia, até que o ser que persegue o vampiro vem reclamar o fantasma de Roger. Esse ser é Memnoch, o Demónio, que o convida a acompanhá-lo ao Inferno e ao Céu e a ser o seu braço direito. Pelo meio, ocorre o encontro entre Lestat e Dora, por quem ele sente um misto de atração e ternura e a quem relata a morte do pai e a autoria da mesma. De notar o pormenor da menstruação da mulher e o desejo do vampiro de beber esse «sangue puro».
    Memnoch leva primeiro Lestat ao Céu, onde fala com Deus, um lugar de luz e de almas e de risos (= alegria). Durante um passeio que dão por uma floresta, o Demónio explica ao vampiro as Treze Revelações de Deus: a primeira é a transformação das moléculas inorgânicas em orgânicas; a segunda é a transformação das moléculas em células, enzimas e genes (as algas e os fungos aquáticos, que depois se apropriavam também da terra sob a forma de lodo, mais tarde de fetos, coníferas e, por fim, se converteram naquelas dimensões massivas da floresta); a terceira corresponde ao ciclo da vida: nascimento, vida e morte dos seres vivos, o que revelou aos anjos de Deus as noções de medo, sofrimento, destruição, morte e castigo; a quarta equivale à Cor: a beleza e a profusão de cores das flores, o acasalamento entre os organismos; a quinta é a Encefalização: o desenvolvimento de cabeças (sistemas nervosos e esqueletos), centros da inteligência - entre os anjos de Deus nasce o receio por Ele permitir que a matéria pudesse aceder à inteligência, ao pensamento; a sexta é o nascimento do rosto nas criaturas - o pânico de Memnoch é diluído apenas por um diálogo com Deus, que o designa como o mais atento e sagaz, mas também como o único que não confia Nele; a sétima consiste na povoação da Terra pelos animais vindos do mar (répteis, animais monstruosos de quatro e duas patas, os insetos; as chacinas entre os animais; os nascimentos das crias a partir de ovos e de dentro das mães); a oitava concerne às aves de sangue quentes com asas emplumadas (como os anjos, que protestam em coro); a nona é o surgimento dos mamíferos; a décima, o caminhar ereto dos macacos (brutais, selvagens, batendo, mordendo, matando), criaturas criadas à imagem de Deus e dos anjos, a tentativa de fala, o início de padrões de comportamento - o enterro dos mortos, a proteção e solidariedade dos mais fortes para com os mais fracos, dos sãos para com os doentes ou incapacitados, o enterro com flores; a décima primeira diz respeito ao surgimento do Homem moderno (a afeição, o amor, a dor); a décima segunda refere-se à beleza e sedução da mulher - as semelhanças com os anjos e o próprio Deus; a décima terceira respeita ao acasalamento do homem e da mulher, do qual resulta a grande diversidade de formas, cores, raças... o homem e a mulher são, afinal, Deus dividido em dois (os anjos divididos em dois).
    O orgulho leva Memnoch a questionar Deus sobre o sentido daquela evolução operada na Terra (em hebraico, Satanás significa «aquele que acusa»), mas Ele consegue aplacar sempre a sua ira: «Memnoch, se Eu não me sinto ridicularizado por este ser, se ele é criação Minha, como é que tu te podes sentir assim?»
    Porém, um dia os anjos descobrem que os humanos também têm uma parte espiritual, uma alma. Um grupo de anjos desce, então, à Terra para observar a humanidade e encontra-a organizada e crente num Deus, fazendo-lhe oferendas e sacrifícios. Memnoch acaba sozinho e assume a forma humana. Três dias depois relaciona-se sexualmente com uma mulher. Como castigo, Deus expulsa-o do Céu. Junta-se aos homens e vive como eles, ensinando-lhes tudo o que sabe, insistindo frequentemente no retomar da fala com Deus, inutilmente porém.
    Três meses depois Memnoch é convocado ao Céu por Deus, que lhe propõe a criação de um Inferno para os humanos que ele chefiasse. O Demónio, ainda anjo, pede-lhe que permita que as almas tenham oportunidade de irem para o Céu e a divindade diz-lhe que, se encontrar dez almas dignas de tal, o perdoará e assim fará. Memnoch encontra essas almas e é perdoado por Deus, mas o anjo deseja que todas elas tenham a mesma oportunidade e não apenas alguns deleites, por isso pede-lhe que se humanize, que assuma a forma humana, se misture entre os seres humanos, para os melhor compreender no seu sofrimento e no desejo de ascender à luz divina. Deste modo, Memnoch é expulso pela segunda vez do Céu.
    Um dia, a entidade demoníaca encontra Deus no deserto. Ele fez-se nascer de uma mulher, trinta anos atrás, para melhor conhecer a vida, o sofrimento, a dor e os desejos humanos. Viverá mais três anos, durante os quais levará a Sua palavra e os seus ensinamentos aos homens. Destes, os que o escutarem terão como recompensa a glória divina. Seguidamente, deixar-se-á crucificar e ressuscitará três depois, para que os homens aprendam que Ele se sacrificou por amor a eles. Memnoch, no entanto, declara que esse gesto será um erro, pois «Porque é que o amor tem de exigir sacrifício?», o sofrimento e a morte são o mal do mundo, que têm de ser vencidos para chegar a Deus. Além disso, não foi o sofrimento que ensinou a humanidade a amar, mas, sim, a afeição e o carinho entre ela. Para que Deus compreenda tudo isto, é necessário que se torne humano totalmente, sem qualquer traço ou certeza de ser divindade; então, verá o horror do sofrimento humano.
    Voltando ao presente, encontram Deus, que pede a Lestat que vá a Jerusalém com Memnoch no dia da Sua morte e assista à Sua paixão. Regressam então a um passado três anos posterior ao último diálogo travado entre Deus e o (ainda) anjo. Segue-se a descrição do trajeto de Cristo com a cruz e do encontro com Lestat e Memnoch. Deus desafia o vampiro a provar o seu sangue e, soluçando, Lestat fá-lo.
    Segue-se o episódio da Verónica e do seu véu, que Deus entrega ao vampiro, que, seguidamente, experimenta os horrores da Quarta Cruzada -cristãos (romanos) contra cristãos (gregos) → a destruição, a morte, o  horror, o sofrimento... em nome de Deus.
    Lestat é, então, arrastado até a um novo confronto entre a divindade e Memnoch. Este questiona Deus sobre as almas perdidas, pedindo-lhe que, em vida, lhes mostre o caminho da luz. Este acaba por lhe atribuir o reino de Sheol, onde o demónio cuidará dessas almas perdidas, os seus seguidores, condenando-o a ser o seu adversário e a passar um terço da sua existência na Terra e outro no Sheol ou Inferno. Condena-o ainda a ser visto entre os humanos como o Demónio, a Besta, que desafiou Deus.
    Na sequência, Lestat visita o Inferno, um local de dor, sofrimento e horror, por isso procura a fuga desse espaço, que Memnoch tenta evitar a todo o custo. E é cansado, sofrendo e sem um olho que o vampiro regressa à Terra, decidido a não optar nem por Deus nem pelo Demónio. Ele relata a Dora, Armand e David as suas andanças pelo Céu e pelo Inferno e mostra-lhes o véu de Verónica, que fica na posse de Dora. Esta vê ali uma prova da vitória de Deus e corre a anunciá-la. Armand deixa-se consumir pelo fogo / luz do Sol para provar aos homens o milagre apregoado pela mulher. Os sacrifícios sucedem-se diariamente, Dora entra numa nova fase da sua existência, divulgando a fé. O Véu opera curas milagrosas. Enquanto isso, Maharet, a «mãe» dos vampiros, entrega a Lestat um pergaminho que contém o olho que o Diabo, acidentalmente, lhe arrancara e um escrito de Memnoch: «Para o... 417».

O novo género do Pai Natal - Peter Schrank


Peter Schrank

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