Exceto no caso da autobiografia, é
raro um autor afirmar que ele e o narrador são a mesma pessoa.
O narrador é a entidade que conta
uma narrativa, pelo que só existe no espaço da escrita. Qualquer escritor de
ficção precisa dele para poder escrever, salvaguardando-se, assim, a identidade
civil do escritor e a sua libertação, visto que o narrador é uma entidade que
finge criar. Trata-se de uma invenção que narra uma ficção, isto é, uma
«estória» inventada. Ora, o facto de o narrador ser uma entidade fictícia,
virtual, poliédrica e múltipla, faz com que a sua figura se torne esquiva, mas
ao mesmo tempo muito densa. É o que sucede, por exemplo, com os narradores das Viagens
na Minha Terra ou a prosa de Camilo Castelo Branco, os quais dominam
totalmente a narrativa, devido precisamente à chamada autorreflexividade, isto
é, toda a escrita que não se dirige ao leitor, mas para o interior da
identidade que escreve, que se movimenta como que em diálogo consigo própria,
observando-se, pensando-se, refletindo sobre a sua própria escrita, o seu
conceito de arte, analisando o seu mundo [“(…) meu lado crítico, minha voz
independente”].
Existem diversas formas de um
narrador mudar o tom da sua narração. Uma delas é o recurso aos parênteses, que
se tornam um «espaço» de onde emerge uma segunda voz, com pendor crítico, que
interrompe momentaneamente a narrativa, criando um novo espaço, à laia de
mostra de outras áreas do ego, nas quais reflete sobre si próprio e emite
juízos de caráter íntimo.
Por outro lado, esta figura só
existe no presente, é ela quem conta a história, todavia, sempre que dialoga
consigo própria, o narrador dirige-se indiretamente ao leitor, isto é, sempre
que recorre ao presente para falar de si próprio, ele utiliza as suas reflexões
para criar um efeito no leitor, o que vai ao encontro do conceito de «obra
aberta» de José Cardoso Pires, que torna imprescindível a presença do leitor, já
que cabe a este dar sentido à narrativa.
Em terceiro lugar, algumas
referências literárias, certa intertextualidade e até determinada ironia são
também autorreflexivas, ao contrário do que sucede com as falas das outras
personagens, bem como certas respostas do narrador, que, apesar de revelarem
algum do seu mundo pessoal, não contribuem para a autorreflexividade, visto
que, nestes casos, o narrador não reflete de si para si.
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