Português: Registos de língua de O Delfim

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Registos de língua de O Delfim


    N’ O Delfim, existem diversos registos de língua.
    O romance constrói-se sobre o discurso do narrador, que dilui a fronteira que separa a escrita da oralidade logo a partir da página inicial da obra: “Cá estou”. A coloquialidade impera ao longo do texto, nomeadamente na interação verbal (isto é, os diálogos) e no discurso do próprio narrador, que explora todas as potencialidades da língua ao nível do léxico, da sintaxe, da semântica e da estilística.
    O narrador privilegia o registo culto, literário, produzindo um discurso literário quando se institui como poeta e ensaísta ou quando combina os registos das várias personagens. Por outro lado, ele socorre-se também da língua culta não literária, faz uso de um registo quase policial sustentado na lógica e valorizador de uma suposta objetividade, deixando a tarefa da pesquisa para o leitor. Outro momento ocorre quando o narrador se apresenta como autor de um texto publicitário ou quando procura imitar o estilo pretensamente documentalista do Abade, ou seja, quando se aproxima da “toada dos doutores da água benta”.
    O registo popular, por seu turno, ocorre nas falas da Estalajadeira, do Cauteleiro, do Batedor e de Tomás, que são exemplificativas da coloquialidade. Assim, o discurso da Estalajadeira é caracterizada por um tom familiar, ora confidente, ora discreto, afetado pelo pudor: «”Ai, ai… cala-te boca.”». Note-se, nesta fala, uma grande vontade de falar e até uma certa fluência. Já nos casos do Cauteleiro, do Batedor e de Palma Bravo, o seu discurso é pautado por meias frases, termos mais ou menos boçais, alusões obscenas, injúrias, anátemas e alguns enunciados com segundos sentidos.
    No romance, encontramos também a gíria dos caçadores de Palma Bravo, no Batedor, no Regedor e no narrador, as suas arteirices e preparativos. No entanto, nalguns passos, este registo dará lugar a outro mais técnico-científico, exemplificado pelas citações do Tratado das Aves. Igualmente técnico-científico é o registo estereotipado do Regedor: o dos autos, porque acima de tudo está a “verdade dos factos”: “Altercaram as partes… envolveram-se em desordem da qual resultaram ofensas morais e corporais…”.
    A personagem-narrador, autor e escritor, possui um fino espírito crítico, bem como um grande poder de observação que se foca em variadíssimas coisas, como, por exemplo, os atos de fala das personagens, traços recorrentes, tiques, em suma, uma idiotice, ou seja, a maneira de falar própria de um indivíduo. O próprio escritor irá imitar vários idioletos através do chamado discurso estilizado. Vejamos exemplos dos mesmos: “Tu é que sabes. Tu é que és escritor. Possivelmente”; “E quanto ao automóvel «não há hipótese», como diria o Engenheiro. Positivamente”; “Absolutamente. Ou antes, positivamente…”; “Positivamente, Engenheiro Anfitrião”; “Duas silhuetas de moeda [Tomás e Maria das Mercês], dois infantes do meio-dia. Dois quê?”; “Sorrio. Infante nunca foi um termo meu. Saltou-me à ponta da frase porque desde que cheguei que o tenho ouvido”.
    Relativamente à imitação do idioleto das personagens, poder-se-á tratar de uma paródia ou de uma contaminação do discurso do narrador, também ele preso ao cosmos da Gafeira.
    Assim, é lícito concluir que, n’ O Delfim, coexistem harmoniosamente diferentes registos linguísticos: ao lado de uma comunicação simples, quotidiana, pautada por frases batidas, bordões linguísticos, provérbios e sentenças populares, encontramos o registo erudito e até poético do narrador.
    Quanto à norma linguística, o romance reflete a língua padrão, dado que o seu vocabulário é corrente e acessível, a construção sintática é relativamente simples, observando-se as regras de correção gramatical. Sucede que, na obra, o complicado não é o texto das linhas, mas o das entrelinhas.

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