O narrador não se estabelece no
plano da posição de focalização zero, ou narrativa não focalizada, que lhe
permitiria saber tudo sobre todos – omnisciente, portanto. Pelo
contrário, ele sabe tanto quanto as outras personagens. Talvez um pouco mais
porque procura a informação, recolhe-a e analisa-a – daí o escritor-furão. Ou
seja, estamos perante um caso de focalização interna.
Não obstante, se o narrador não é
omnisciente, como se explica a longa e pormenorizada descrição do espaço íntimo
de Maria das Mercês no capítulo XXV? Trata-se de pura imaginação.
O narrador sabe muitas coisas, mas
ignora outras tantas. De facto, os mistérios subsistem n’O Delfim, como,
por exemplo, as mortes de Domingos e de Maria das Mercês, e que constituem a
intriga mais evidente (ao nível mais superficial). Assim sendo, factos, etc., o
que coloca o romance na esfera do romance policial, constituindo o narrador o
detetive. Não é por acaso que se fala de «crime perfeito», de enigma da Dama
das Unhas de Prata e no diálogo que o narrador e Palma Bravo travam.
Frequentemente, aquele invoca, mesmo que ironicamente, o nome de Sherlock
Holmes. Também não é por acaso que surge no texto uma transcrição da revista
«Merkur» que relata um crime. Em suma, não é por acaso que o ritmo da narrativa
se faz com frequentes alternâncias, encaixes e elipses.
No entanto, os mistérios não ficam
por aqui. Maria das Mercês morreu acidentalmente, foi assassinada ou quis, de
facto, suicidar-se? Quem é estéril: Maria das Mercês ou Tomás, que sempre se
recusou a fazer testes? Ou seriam os dois? Ou seria Tomás um macho orgulhoso,
mas impotente? Seria homossexual? O que é que se passou na noite do bar da
Shell?
O narrador não é propriamente um
detetive, mas parece sê-lo, tendo em conta que é um escritor-furão, curioso,
insaciável, permanentemente em busca de uma verdade. Ele recolhe as versões de
todos os informantes, confronta-as e vai formulando hipóteses. Parece
aproximar-se da verdade, muda de pista, debruça-se sobre pormenores. Neste
contexto, o discurso é modalizado por expressões de dúvida como «talvez», «é de
crer», «supõe-se», «conta-se», e várias formas verbais no modo conjuntivo. A
sua «investigação» é constantemente dificultada pelo surgimento de boatos,
preconceitos e mitos (as versões distorcidas da Estalajadeira, do Batedor e,
sobretudo, a do Cauteleiro). Além disso, há a verdade sobre a última noite dos
Palma Bravo, guardada pelo zelo do Regedor (que não quer alimentar intrigas) e
pelo laconismo do Padre Novo. Apenas eles, juntamente com o médico que fez a
autópsia, sabem o que aconteceu (veja-se o capítulo XVIII).
Mas há outros mistérios, segredos
íntimos, informações confidenciais, sobre os quais pouco se sabe em concreto,
dado que as provas e os testemunhos ora são omissos, ora inconcludentes.
Instaura-se um nível de incerteza a partir dessa realidade polissémica:
“Interessa mais a suspensão do facto do que a sua decifração”. Deste modo, o
narrador envolve o leitor numa teia de incertezas, sendo frequentemente chamado
a participar na decifração. Estaremos na presença de uma estratégia para
suscitar a atenção do leitor?
Basicamente, a estrutura do romance
assenta no percurso do caçador que chega à Gafeira e se instala numa hospedaria
conhecida. “Cá estou” é a expressão inaugural que institui o tempo da narração:
o presente do indicativo, o tempo da pseudo-objetividade. Trata-se de uma
narração que ocorre em simultâneo com o percurso do narrador, que
frequentemente dá notícia do tempo que corre. A outra parte são excursos, as
divagações e as lembranças, que dão densidade à obra. Neste âmbito, desempenha
um papel importante a memória, uma memória seletiva que transporta o narrador
no espaço e no tempo – e o leitor com ele. A memória ganhará mais relevância
ainda quando é instigada pela insónia das personagens: a recapitulação de
acontecimentos, a reconstituição de factos, as lembranças espontâneas e as
divagações preencherão esse vazio doloroso causado pela insónia.
Um outro elemento importante na
estrutura do romance é o quarto, o espaço onde o narrador passa grande parte do
seu tempo e de onde frequentemente se evade por meio do pensamento. Primeiro,
do ponto de vista logístico, porque permite um olhar distanciado, sobranceiro.
Fica num primeiro andar e tem uma janela («vigia», «postigo») sobre o largo, a
rua e o café – espaços de confluência, conhecimento, comunicação. Ao longo,
avistam-se os montes e a Lagoa, vê-se o céu.
Por outro lado, o quarto é, por
excelência, um lugar de introspeção, de onde ele parte para reflexões,
associações (“De raciocínio em raciocínio irei longe”), evade-se em recordações
obsessivas através do seu reflexo nas vidraças espelhadas da janela (como no
espelho de Alice?), vendo-se e revendo-se no passado, transfigurando-se
noutros. No quarto, existem outros pontos de fuga: o caderno de apontamentos, a
Monografia, a aguardente no cantil; as distrações exteriores (passos,
vozes, ruídos), o fumo e o nevoeiro (a bruma como fator encantatório). Há, em
suma, um acordar e a transição, transformação ou metamorfose é quase
impercetível. O narrador sente-a, pressente-a.
Outro elemento a ter em conta é o
jogo, também ele associado à decifração de enigmas, à interpretação de símbolos
e metáforas. Todavia, apresenta-se também sob outras formas: os jogos verbais
(o “jogo do olho-vivo”), os provérbios e trocadilhos); o jogo de “bridge” no
café, protagonizado pela jovem das calças de amazona e os caçadores; a caça,
jogo de vida ou morte.
Em suma, o narrador, deste modo,
gere a narrativa de forma artificiosa jogando com o tempo (anacronias:
analepses, prolepses, elipses, digressões) e com o espaço (interiores,
exteriores, enquadramentos, perspetivas, panorâmicas, pormenores), confundindo
até as coordenadas.
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