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domingo, 23 de julho de 2023

Análise do poema "Poema tirado de uma notícia de jornal"


    Este poema foi publicado pela primeira vez no jornal “A Noite”, do Rio de Janeiro, em 1925, integrando uma espécie de crónica da vida brasileira. De facto, o poeta transforma ima notícia de um jornal, que relata a história trágica de um homem de origem humilde, e converte-a em prosa.
    A composição poética é constituída por uma única estrofe de seis versos (sextilhas), sem qualquer pontuação, alternando versos longos e curtos. Por outro lado, tem uma clara estrutura narrativa, com uma ação com início (a descida de João Gostoso do morro), desenvolvimento (a entrada de João Gostoso no bar) e conclusão (a sua morte, resultante da queda nas águas da lagoa Rodrigo de Freitas e o consequente afogamento); personagens (João Gostoso); espaço (referências ao morro da Babilónia, ao bar Vinte de Novembro e à Lagoa Rodrigo de Freitas); tempo (passado – «era», «chegou» – indefinido – “Era uma vez”, fórmula característica das narrativas tradicionais; “Uma noite”); um narrador-observador, o sujeito poético.
    O tímido é bastante longo e contrasta com o caráter reduzido do poema e, através dele, o «eu» poético estabelece uma analogia com o jornal, sugerindo uma transformação do texto poético. Ao usar o particípio passado do verbo «tirar» («tirado»), que quer dizer fazer sair de algum ponto ou lugar, o «eu» poético recria poeticamente a vida simples de um brasileiro: João Gostoso.
    A notícia focaliza uma ocorrência pontual, efémera, como, por exemplo, a morte de um simples «carregador» de feira libre, no entanto o «eu» transforma esse facto insignificante para a humanidade em assunto de um poema. Deste modo, a poesia valoriza o quotidiano, imortalizando-o.
    O primeiro verso, o mais longo do poema, descreve uma personagem, indicando (a) o nome próprio (João), (b) a alcunha (Gostoso), (c) a atividade profissional (carregador de feira livre), (d) o local onde mora (o morro da Babilónia) e (e) a residência propriamente dita (um barracão sem número). Atentemos no apelido (“Gostoso”), pois trata-se de um termo coloquiam tipicamente brasileiro, que sugere estarmos na presença de uma pessoa leviana, sedutora e malandra, mas também alguém que se julga superior. Deste modo, estamos na presença de uma alcunha que imprime uma certa comicidade à figura em questão. Mais: proveniente das camadas populares, a personagem tem uma profissão e uma morada, mas a sua vida insignificante resume-se a uma única linha do poema.
    Os espaços geográficos referidos (“morro da Babilónia”, “bar Vinte de Novembro”, “Lagoa Rodrigo de Freitas”) impõem-se à existência da personagem, ao seu isolamento e solidão, reforçando a sua insignificância no contexto da cidade do Rio de Janeiro. As suas origens humildes, a sua pobreza e a sua solidão ficam bem evidentes quando atentamos na referência a um “barracão sem número”. A ausência de um lugar preciso reforça o isolamento e a insignificância de alguém completamente à margem do olhar público. Note-se que essa ausência de uma referência a um lugar específico, concreto, contrasta ironicamente com o bar, cujo nome contém um número (Vinte de Novembro), e com a lagoa onde a personagem morre afogada, que possui nome e sobrenome (Rodrigo de Freitas). Note-se que o nome «morro» indica um espaço geográfico situado num ponto alto, longe do espaço do desenlace trágico (a lagoa). Esta alternância entre um espaço alto, outro baixo e a ideia de descida não se refere unicamente aos espaços geográficos, mas a um ponto de partida para a descida e a morte. Por seu turno, o nome próprio «Babilónia», derivado de Babel, a cidade e torre bíblicas que conotam «confusão», «balbúrdia», adquire múltiplos significados, o que não sucederia na notícia, dado o seu caráter objetivo. Por sua vez, como já vimos, a expressão “barracão sem número” marca um espaço anónimo da residência e do morador. Não se trata apenas de um barracão, mas perde-se entre os outros, o que aponta para a falta de identidade e ausência de valor da personagem em questão. No meio da multidão do morro, o ser humano perde-se, entra no bar, bebe, canta e dança.
    Todo este jogo de nomes, alcunhas, números, exclusões, serve para reforçar a insignificância da personagem. Talvez por isso, o sujeito poético parece solidarizar-se com ela e com o seu entorpecimento na cidade, ao descrever as ações desenvolvidas durante a última noite de vida, em que deambula pela cidade, bêbedo e solitário.
    João Gostoso, a personagem anónima do barracão sem número, desenvolve uma série de ações corriqueiras, num determinado tempo e vive um destino trágico: bebe, canta e dança, acabando por se suicidar na lagoa que embeleza a paisagem. Deste modo, podemos considerar que João Gostoso é o herói anónimo que sucumbe à voracidade da cidade grande. E tudo se concretiza em “Uma noite”, fórmula que marca o início da narração, localizando-a num tempo indefinido, e que nos lembra as narrativas tradicionais. Para o poeta, não são necessárias muitas palavras, métrica ou rima para compor a «tragédia»; os factos valem por si mesmos. A noite, associada à chegada ao bar, representa um momento de prazer e de libertação de um simples carregador de feira livre, morador do morro, num barracão sem número. A noite representa uma perspetiva nova que se abre para João Gostoso, não mais uma figura anónima. O ápice da libertação atinge-se no último verso: “Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogada”.
    Estamos, pois, na presença de um poema tipicamente modernista: análise crítica da sociedade e da realidade brasileiras, expressa através de uma linguagem coloquial, sucinta, em que os factos se reduzem ao essencial, como acontece numa notícia.
    A finalidade do poema não passa por marcar um acontecimento no tempo e no espaço, mas mostrar, através desse incidente trágico do quotidiano, uma metáfora do ser humano em busca da sua identidade e da sua liberdade. A vida e a morte fundem-se numa amplitude de sentidos, até porque configuram dois movimentos antagónicos, mas complementares da mesma realidade. A solidão da vida aparenta constituir apenas uma espécie de ensaio da grande solidão que atinge cada ser humano. Os movimentos de vida e morte complementam-se na busca empreendida por João Gostoso, na queda para a sua libertação. Depois de viver um momento de festa e alegria, a personagem suicida-se na lagoa. Porquê? É o fim da festa; o indivíduo liberta-se da sua vida sinistra, difícil, miserável, solitária e desumana. Esse mergulho trágico, porque leva à morte, é encarado como libertação: movimento, queda, imagem, purificação e libertação. Por outro lado, o último ato de João Gostoso está prenhe de dramatismo, por causa da sua brevidade, que aproxima, de forma seca, a rápida sequência das ações da personagem (“Bebeu / Cantou / Dançou”), na sua aparente expressão da alegria de viver, manifestada num crescendo de expansão efusiva, até ao abrupto desfecho do último verso.
    O poema constitui um olhar sobre o quotidiano de um homem comum, sobre os desprovidos de voz, o indivíduo solitário que diariamente se perde e passa despercebido nas páginas dos jornais das grandes metrópoles. Sob a capa de qualquer homem simples, há a existência de uma complexidade humana que o singulariza.
    O não-sentido da morte de João Gostoso (o lançar-se de modo fortuito, gratuito, na lagoa) ou a ”inferência” de um drama pessoal (a sua peripécia derradeira, culminando no suicídio) deixam o leitor atónito, como diante de um enigma a exigir decifração. Se é verdade que a composição poética recupera o género da notícia, não o é menos que rompe com ele ao apresentar uma espécie de esqueleto de um drama que não é desenvolvido (afinal, o texto é constituído por meros 6 versos) e que a simples menção dos atos da personagem não abarca. Deste modo, João Gostoso torna-se «imortal» ao ser convertido em poesia, e não ser apenas uma mera de nota efémera de jornal. Manuel Bandeira retira do quotidiano um incidente, uma notícia de jornal, transformando-o em algo poético.

Análise do poema "Mulher ao Espelho", de Cecília Meireles


   
Hoje, que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.

 
Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz,
já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.

 
Que mal faz, essa cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?

 
Por fora, serei como queira
a moda, que me vai matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.

 
Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus,
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.

 
Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.

 
    O poema “Mulher ao espelho” faz parte da obra Mar Absoluto, publicado em 1945.
    Começando a análise pelo título, um espelho é um objeto que, simbolicamente, reflete a verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência. Assim sendo, no caso desta composição poética, sugere a ideia de autorreflexão numa busca existencial, nas circunstâncias de uma mulher.
    O poema abre com o advérbio de tempo «hoje», que presentifica o momento da reflexão e o identifica com o momento da leitura. Os pronomes «esta» e «aquela» indicam a proximidade e a distância, que podem ser espacial ou temporal: «esta» de hoje e/ou «aquela» de ontem ou de amanhã. O estar entre estas dimensões estende-se à reflexão existencial, pois o sujeito poético coloca-se no lugar do não ser, a morte: “pois, seja qual for, estou morta.”
    Deste modo, podemos considerar que o vocábulo «morta» se refere à morte existencial. É preciso ter em conta que, filosoficamente, a morte pode ser entendida como o início de um novo ciclo de vida, como o fim de um ciclo de vida ou como possibilidade existencial. No caso do poema, aplica-se este último sentido, dado que o sujeito poético olha para a morte como o deixar de existir ou o deixar de ser. Presentemente, o «eu» não é mais nada, o que é confirmado pelo facto de o verso terminar em ponto final: ela está morta, não tem mais o que viver.
    A partir da aceitação da morte, o «eu» dá início a uma reflexão sobre as diversas facetas que teve ao longo da vida: «loura», «morena». Para isso, refere o nome de quatro mulheres (Margarida, Beatriz, Maria, Madalena), referências a personagens literárias. De facto, Margarida refere-se a Marguerite Gautier, personagem de A Dama das Camélias, romance de Alexandre Dumas, e da Traviata, ópera de Verdi, ambas contando a história de uma mulher mundana; Beatriz relaciona-se com Beatrice Portinari, amada do poeta Dante, imortalizada por este na Divina Comédia e na Vita Nuova, como um ser puro e ideal; Maria é, obviamente, a Virgem, mãe de Jesus Cristo, símbolo religioso da pureza e perfeição; por último, Madalena é a prostituta bíblica, exemplo da mulher pecadora e arrependida. Estilisticamente, a anáfora dos versos 5ª 7, as formas verbais no pretérito perfeito do indicativo e os adjetivos antitéticos (loura / morena) sugerem as mudanças vividas pelo sujeito poético em busca da própria imagem. Além disso, a antítese «loura»/«morena» representa, antes de mais, a busca feminina pela beleza e perfeição físicas: “Quero apenas parecer bela”.
    Mas não é apenas o físico que está em questão. De facto, o «eu» reflete também sobre a personalidade, como se pode constatar pela enumeração dos quatro nomes femininos, alternando as imagens da mulher santa, pura, e da mulher sensual e vaidosa. Esta referência a figuras femininas de personalidades divergentes aponta para as mudanças de caráter e sugere a existência de alguma conflitualidade no que diz respeito à autoimagem do «eu», mostrando a sua perturbação por ter sido tantas, procurando agora encontrar-se ou ser alguém. De certo modo, este passo do poema recorda a questão da despersonalização e da multiplicidade de «eus» de Fernando Pessoa. Basta pensar, por exemplo, no poema “Não sei quantas almas tenho”.
    O último verso da estrofe mostra, através das formas verbais no pretérito perfeito («pude», «quis»), evidencia a frustração do sujeito poético por nunca ter sido o que queria ser: “Só não pude ser como quis.” Sucede que, com a definição do desejo pela negativa, levanta-se a dúvida: o que queria o «eu» ser?
    A terceira estrofe é toda ela uma interrogação. O sujeito poético, ao referir-se à cor fingida do seu cabelo e do seu rosto, critica o facto de o mundo ser feito de aparências. De facto, tudo parece ser «tinta», maquilhagem, aparentemente muito bela, mas só existe para esconder ou disfarçar quem ou o que realmente é. Deste modo, as características da cor do cabelo e do rosto estão associadas à ideia de falsidade e superficialidade; tudo – as pessoas, o mundo, a vida, o contentamento, o desgosto – é ilusório, é tinta.
    A transitoriedade de tudo e a efemeridade da vida são temas presentes também nesta estrofe, tendo em conta que a tinta representa a ilusão, o engodo que vai da aparência pessoal (cabelo e rosto) para o mundo e a vida, e atinge o íntimo do  «eu» (o contentamento, o desgosto), ou seja, todos os sentimentos se tornam momentâneos e passageiros.
    A quarta estrofe abre com a referência a transformações ocorridas no exterior do sujeito lírico. Assim, exteriormente manifesta o desejo de ser como a moda o determinar. Neste contexto, a moda pode representar a busca do próprio estilo, todavia o bom gosto que ela dita escraviza e aprisiona os indivíduos, promovendo a despersonalização do «eu», que acaba por incorporar-se no todo e perder a noção da própria imagem.
    Por outro lado, como a moda é um fenómeno transitório, a moda representa tudo o que é superficial e passageiro, associando-se à vaidade dos seres humanos; trata-se de um estereótipo da beleza que se liga à imagem exterior. Tudo isto tem consequências para o sujeito poético: a morte. E quem é o responsável por esse desfecho? Exteriormente, o «eu» segue a moda; por dentro, perde-se, morre: “Por fora, serei como queira / a moda, que me vai matando.”
    A gradação dos versos 15 e 16 (“Que me levem pele e caveira ao nada”) sugere que, para o «eu», a morte é natural e esperada. A presença da morte acentua-se nas duas últimas estrofes, aparecendo, neste caso, ligada ao domínio do religioso. Porquê e para quê? Se é verdade que a busca interior lhe trouxe dor e sofrimento, ele espera que mais tarde terá a recompensa de encontrar Deus, falar com ele. A forma verbal «viu», no pretérito perfeito do indicativo, aspeto perfetivo, indica uma ação concluída (a lembrança do sofrimento), enquanto «falará», no futuro do indicativo, remete para a certeza do encontro com a divindade.
    Filosoficamente, a morte representa a libertação do sofrimento e das preocupações, não constituindo um fim em si mesma. Pelo contrário, “mors ianua vitae” (a morte é a parte da vida), isto é, ela constitui a libertação da alma e uma forma de a pessoa se arrepender dos pecados. Por outro lado, a visão religiosa da morte aponta para a ideia de eternidade. Deste modo, o fim da existência deixa de constituir algo terrível e dramático e passa a ser encarado como uma forma de se tornar eterno e alcançar o paraíso, proporcionando descanso para a alma, o espírito. A presença do polissíndeto (“olhos, braços e sonhos seus / e morreu pelos seus pecados” – vv. 18-19) sugere as etapas necessárias para se obter a redenção.
    O primeiro verso da última estrofe indicia a libertação do sujeito poético dos seus pecados, o espírito purificado da cabeça aos pés, quando se concretizar o encontro com Deus: “Falará, coberta de luzes, / do alto penteado ao rubro artelho”. De seguida, no penúltimo verso é introduzido o símbolo da cruz e, no último, o do espelho. Assim, algumas pessoas “expiram sobre cruzes”, isto é, constroem um modo de vida assente nos princípios de uma religião, buscando um Deus, mesmo que tal implique dor e sofrimento (as cruzes). Por seu turno, o espelho representa a procura de si, seguindo as materialidades do mundo (a beleza, a moda, a vaidade, etc.), numa tentativa de a pessoa se encontrar. Seja como for, opte-se por qualquer uma das hipóteses, o desenlace será sempre o mesmo: a morte, porque todos morremos.

Análise do poema "Transição", de Cecília Meireles


    Este poema foi publicado em 1972, na obra Mar Absoluto, e trata o tema da fugacidade do momento, como o título, desde logo, indicia. De facto, a palavra “transição” remete para a passagem do tempo.
    O sujeito poético – feminino (“adjetivo “intacta”) – mostra “o amanhecer e o anoitecer”, que aponta para a rapidez com que as coisas transitam, pela sugestão da sucessão de muitos dias e noites. Contudo, essa celeridade que caracteriza a sucessão das coisas não afeta o «eu» poético: “parece deixarem-me intacta”. É como se estivesse frente ao espelho e não visse as mudanças por que vai passando. Apenas consegue ver o agora, o que é naquele momento: “mas os meus olhos estão vendo / o que há de mim, de mesma e exata”.
    A segunda estrofe inicia-se com uma antítese (“tristeza e alegria”) que mostra como o sujeito lírico se sente, que esses sentimentos que experimenta e entrelaçam os seus pensamentos o moldam a cada instante e o fazem constatar que a cada transformação que sofre um «eu» se «despedaça» para que outro nasça: “na que estou sendo a cada instante, / outra imagem se despedaça”. O sujeito poético evidencia a natureza dialética do tempo, cuja principal lei é a transformação. A cada instante algo muda com o tempo: os pensamentos, os sentimentos e as emoções do ser que sofre com a transitoriedade da vida.
    O sujeito poético vive o mistério da vida entre a tristeza e a alegria e esse mistério pertence-lhe, mas não é percecionado por ninguém de fora, apenas por ele mesmo, que o percebe na vivência do ser através dos “turvos rostos sucedidos” que guarda na memória. O nome «tanque» é uma metáfora que sugere o reservatório das memórias ou o lugar onde as lembranças estão armazenadas. De acordo com o «eu», essa memória é clara, ou seja, o «eu» consegue lembrar-se facilmente das suas recordações nos turvos rostos que se sucederam e já não possui mais.
    Na quarta estrofe, o sujeito poético exprime, de forma melancólica, que “ninguém distingue a leve sombra / que o autêntico desenho mata”, ou seja, ninguém consegue compreender as mudanças sentimentais que ocorrem em si, mesmo que estejam estampadas na figura do ser, pois, para todos, apesar da transitoriedade do amanhecer e do anoitecer, ela continua “a mesma, continuada e exata”, ou seja, não mudou.
    A última estrofe, uma quintilha, contém uma reflexão sobre a passagem e a duração do tempo. O sujeito poético reconhece as mudanças por si sofridas e as que estão por acontecer. Além disso, chora pelas mutações por que passou e chorará pelas que ainda sofrerá no futuro: “chorai, olhos de mil figuras [hipérbole] / pelas mil figuras passadas [hipérbole] / e pelas mil que vão chegando” [hipérbole].
    Na penúltima e na última estrofe, o sujeito poético reflete e alude à noite e ao dia, enfatizando a passagem descrita no início do poema (“amanhecer e anoitecer”), portanto é nessa passagem do tempo entre noite e dia que os rostos se sucederam, onde mil figuras passaram e onde outras mil estão por vir. Essas mudanças, embora “não consentidas”, são “recebidas e esperadas”, como alguém que não admite a velhice e a morte, mas espera por elas, mesmo que não sejam certas e exatas, cabendo-lhe apenas a tarefa de as aguardar e aceitar.
    Cada momento da vida do «eu» leva-o a vivenciar diferentes acontecimentos e sentimentos, como o amor, a tristeza e a felicidade. No entanto, se a vida é tão breve e passageira, esses sentimentos são tao fugazes como os instantes que se passam? Ou eternizam-se nas suas ações a ponto de permanecerem no seu “tanque da memória”?

Senhora: Obra essencialmente romântica


    Senhora é na essência e na estrutura uma obra romântica, correspondendo às convenções de uma escola literária e ao próprio modo de ser de Alencar, já por si romântico.
    O Romantismo tem de ser visto a nível da:

=> Expressão: neste domínio, há vários aspetos a apontar e que mostram esse romantismo:

= construção das personagens através da caracterização física e identificando o físico e o moral. Seixas e Aurélia são fisicamente perfeitos e esta beleza física corresponde à peculiaridade interior e moral;

= ausência de distanciamento crítico da personagem, beneficiando a descrição exterior e a condução da ação e do discurso das personagens, conseguindo um equilíbrio entre o drama (uso do diálogo), narrativa e descrição, que são fundamentais no romance;

= presença constante do narrador no texto que narra, o que implica o uso de uma linguagem subjetiva, partindo de princípios que se misturam como indiscutíveis desde o início do romance;

= linguagem, que quase que transforma as personagens em figuras comprovativas de uma tese. O narrador apresenta os seus pressupostos no início e tudo o que se passa vai no sentido de os confirmar.

=> Conteúdo: também a este nível, a obra é essencialmente romântica, porque:

= possibilidade de confronto entre o Bem e o Mal, implicando assim a existência de um vilão (ao contrário do que acontece nas Memórias);

= contradição, espírito antitético, jogo de causa-efeito;

= motivo da mulher ferida, profundamente magoada, mas que mantém o seu amor eterno e intocável;

= apologia e defesa do amor; pureza e autenticidade desse amor devem ser guardadas e servem como instrumento de crítica social;

= existência de um final feliz, em que o amor aparece vitorioso, amor esse que se encarna em Aurélia e representa a recuperação dos valores ideológicos que se tinham perdido em Seixas;

= presença da natureza, não só como cenário, mas também como elemento de purificação e recuperação;

= a mulher na sua dualidade: oscila sempre entre a sensualidade e a pureza, entre o desejo e o orgulho.

    Alencar desenha em Aurélia e Seixas dois caracteres psicológicos e, por isso, há quem chame este romance de fisiológico. Mas estas personagens, sobretudo Seixas, transformam-se à medida que o romance se desenvolve, pois ele tem de recuperar para se reabilitarem os valores defendidos por Alencar e que Aurélia sempre teve. A unidade da obra resulta deste equilíbrio, que fora perdido por instantes.

 

Senhora: Possível Realismo?


    A construção do romance e das personagens mostra um caminho para o romance de análise social (típico do Realismo) da sociedade de fins do império, de uma mentalidade que recusa os valores antigos. Aceita-se a vivência pelo interesse, mas quando vem imbuído do luxo e do dinheiro.
    Mas poder-se-á falar de uma aproximação ao Realismo? Que Realismo?
    Alencar faz uma descrição de Seixas e de seus aposentos muito pormenorizada e usa também a técnica de estabelecer uma relação entre a caracterização do ambiente e das personagens. Mas será isto uma técnica realista?
    Alencar faz uma descrição de Seixas e de seus aposentos muito pormenorizada e usa também a técnica de estabelecer uma relação entre a caracterização do ambiente e das personagens. Mas será isto uma técnica realista?
    Bosi diz que não; que é apenas o gosto por uma descrição minuciosa e não uma preocupação realista. Alencar critica, mas está dentro daquilo que critica, ao contrário de Manuel António de Almeida, que critica de fora. Assim, para Bosi, não há um verdadeiro Realismo nem sequer uma aproximação ao Realismo, mas um gosto pelo pitoresco.
    Se se critica o mundo social, essa crítica é feita dentro dos moldes românticos.

Dimensão social de Senhora


    Esta dimensão social é evidente a dois níveis:

= Caracterização de lugares, modas e maneiras de ser;

= Assunto do romance: casamento de conveniência que assenta em pressupostos sociais e a compreensão deles é essencial para o significado da obra.

    A análise do assunto possibilita-lhe uma análise profunda da sociedade, pois representa e critica ao mesmo tempo os costumes da época.
    A análise social e a estrutura do romance estão ligadas numa relação de funcionalidade. O que forma a estrutura do livro é o duelo que se estabelece entre duas personagens: Seixas, a quem a primeira humilhação o leva a recuperar, e Aurélia, que se instala como vingadora, que esmaga o objeto que compra. É um binómio de compra-venda que vem substituir os valores do casamento. É isto que Alencar critica.
    Na época em que Alencar escreve, o casamento por conveniência era algo aceite. É quando as pessoas começam a ter possibilidade de escolha e a casar por amor que este casamento por conveniência passa a ser visto como hipócrita. Assim, o matrimónio de Seixas é aceite na sociedade; só é falso pelo amor que Aurélia sente. Ele próprio diz que os novos valores se estruturam segundo uma perspetiva burguesa, em que o dinheiro impera.
    Partindo assim de motivo social, o romance retrata a sociedade da segunda metade do século XIX, uma sociedade urbana e burguesa, sustentada por um sistema mercantilista e esclavagista e ainda o homem brasileiro, romântico, profundamente inserido e influenciado pela sociedade.
    Senhora tem uma grande dimensão histórica e social

Relação Senhora / Alencar


    Não será muito legítimo fazer esta aproximação, mas Senhora reflete alguns traços do comportamento de Alencar: desilusão, orgulho ferido e uma certa superioridade de inteligência, que não lhe é reconhecida. A caracterização de Aurélia é o reflexo de um mesmo espírito crítico e desiludido, o que se mostra principalmente nas atitudes de arrogância e desprezo pela sociedade em questão. O modo como Seixas reage em relação à sociedade é o mesmo de Aurélia.
    Seixas aparece como produto típico de uma sociedade que sufoca e prende. Aurélia mantém-se inteira, tanto enquanto pobre como rica; mantém sempre o seu espírito; é como se fosse o reflexo dos velhos valores da educação brasileira.
    Na perspetiva de Alencar, a sociedade e o desenvolvimento urbano funcionavam como elemento de dissolução dos costumes, afastamento do plano mais inerente à personalidade humana e atrofiamento de pessoas. A degradação que provocam os falsos valores sociais destroem o indivíduo pela base, como acontece com Seixas.
    A recuperação de Seixas é possível segundo duas perspetivas:

= Validade que Artur atribui ainda aos valores do passado, que Aurélia representa.

= Ótica romântica: nesta perspetiva, é o amor que permite recuperar o equilíbrio que se perdera.

    Aurélia acaba por ser o elemento que provoca a recuperação de Seixas, estimulando o reaparecimento de valores já perdidos.
    Apesar da solução romântica, que tem o fulcro no amor e na mulher que ama, a crítica e a censura estão sempre presentes no romance. Mas o contraste de valores que o Romantismo mostra não implica um Alencar avançado; por criticá-los, não quer dizer que ele avança com novas ideias. Defende sempre o passado, que tem os valores, as virtudes, que funcionam como ponto de referência.
    Assim, Senhora, para além de obra de arte que mostra o espírito criador de Alencar, é também um documento de uma sociedade em mudança, destituída dos valores mais altos e fundamentais. Mas a crítica também não significa uma rutura com essa sociedade, porque Alencar, ao situar-se num mundo romântico, a sua atitude crítica é também uma característica desse mundo. É uma atitude do romântico estar na sociedade.

Caracterização de Seixas


    A caracterização de Seixa constrói-se como processo evolutivo e reação às situações com que se vai deparando.
    O capítulo VI, constituído por uma analepse sobre a vida de Seixas, é fundamental para caracterizar a personalidade da personagem. Nela, temos uma parte base e outra que aparece sempre. A sua personalidade-base foi-se modificando por influência da sociedade. A natureza ornara-o de excelentes qualidades e força de vontade. Mas é a sociedade que faz dele um homem acomodado a uma situação de ambição e prazer, desenvolvendo a vaidade e o luxo sem estabelecer um equilíbrio de alma que Aurélia sempre teve.
    Na perspetiva de Seixas, como se pode entender o casamento? Ambição? Imposição do dever (culpa por ter negligenciado a família)? Armadilha das circunstâncias?
    Quanto o tutor de Aurélia procura Seixas para lhe propor o negócio do casamento, ele recusa. Mas posteriormente haverá uma série de condicionantes que o farão mudar deposição.
    Ele aceita um casamento por conveniência e isto não era condenável, porque era aceite e respeitado naquela sociedade. Mas é em face do amor de Aurélia que o facto assume proporções de negócio, ou seja, só parece vil, porque Aurélia o ama.
    Ele é leviano, fácil, com um orgulho acomodado à sociedade e emudece com a primeira humilhação que lhe é infringida por Aurélia: “Vendido, sim: não tem outro nome. Sou rica, muito rica, sou milionária; precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas. O senhor estava no mercado; comprei-o. Custou-me cem contos de réis, foi barato; não se fez valer.” (pág. 88).
    Mas a sua revolta contra a situação não tarda e reveste-se principalmente de ironia e sarcasmo: “É verdade que a amei; mas a senhora acaba de esmagar a seus pés esse amor… Eu só a amaria agora, se a quisesse insultar; pois que maior afronta pode fazer a uma senhora, um miserável, do que marcando-a com o estigma da sua paixão…” (pág. 140).
    A recuperação de Seixas parte de alguns pontos: sobriedade, mantendo a sua natural elegância (pp. 169-172); autossuficiência monetária, mantendo o emprego de funcionário público, numa tentativa de comprar a sua liberdade (pp. 271-275).
    É o reconhecimento deste facto que leva Aurélia a retroceder no seu orgulho e a admitir que ama e é amada.
    A análise de Seixas acaba por ser mais importante do que a de Aurélia, embora se reconheça que é a pressão resultante do confronto destas duas personalidades que sustém e dá vida a esta intriga.

Caracterização de Aurélia


    A análise do caráter de Aurélia é feita desde o início e mantém um certo equilíbrio sem grandes mudanças. Mas isto não quer dizer que seja uma personagem linear; é uma personalidade forte e complexa, por si e pela pressão dos acontecimentos.
    No capítulo I, vemos o modo como Aurélia é aclamada quando aparece nos salões, onde a rodeia um conjunto de pretendentes. É interessante então ver o contraste entre o exterior e o íntimo de Aurélia: o seu exterior é de beleza e consegue captar muitos pretendentes; intimamente é dominada por um sentimento de desprezo que ela sente por todos que a rodeiam.
    Há assim um grande contraste entre um interior de desprezo e um exterior de beleza e alegria. Fisicamente bela e rica, ela é assaltada por muitos pretendentes. Mas a sua inteligência e sagacidade permitem-lhe manter-se íntegra, o que é principalmente fruto do conhecimento da vida, da sua própria experiência.
    O orgulho e a singularidade de caráter que a caracteriza inicialmente mantêm-se ao longo de toda a obra. Isto tem a ver com o seu caráter impulsivo e excêntrico: “D. Firmina, apesar de habituada desde muito ao caráter excêntrico de Aurélia…” (pág. 21).
    Mas é através da longa analepse da segunda parte que nos são apresentados muitos dos traços que caracterizam Aurélia: orgulhosa, perceção rápida do que a rodeia. Mas é uma mulher magoada, que conhece o poder da riqueza que possui.
    O que será que a anima? A vingança?
    Dois passos da obra podem exemplificar esta situação:

- pág. 86: “Não! – exclamou arrebatadamente. – Seria a profanação deste santo amor que foi e será toda a minha vida.”

- pág. 195: “O sentimento que animava Amélia podia chamar-se orgulho, mas não vingança. Era antes pela exaltação de seu amor que ela ansiava, do que pela humilhação de Seixas…”.

    Isto mostra que não era a vingança nem o desejo de humilhação de Seixas que animava Aurélia, mas sim a vontade de o fazer sentir quão grande era o amor dele. Ela mantém-se inteira ao longo do romance, endurecida pela mágoa, mas acreditando sempre no seu amor, puro e sacro, altar da sua vida, e no caráter de Seixas. O equilíbrio só se recupera, quando Seixas consegue atingir esse altar: “Pois bem, agora ajoelho-me eu a teus pés, Fernando, e suplico-te que aceites meu amor, que nunca deixou de ser teu, ainda quando mais cruelmente ofendia-te.” (pág. 276).
    Isto mostra como Aurélia reconhece o amor do marido e como tal já não há razão para se pensar em orgulho e humilhação. São duas almas que finalmente se encontram.

O discurso de Senhora


    Tanto a estrutura da obra como a linguagem são próprias do Romantismo.
    A linguagem caracteriza-se essencialmente por pertencer ao campo semântico dos sentimentos e ser muito retórica, em que se utiliza muito a metáfora, tanto na narração como nos diálogos. Assim, o romance Senhora e, sobretudo os diálogos, ficam muito próximos do teatro. De certo modo, a linguagem acompanha o inusitado da ação, das atitudes e comportamentos de Aurélia. A descrição desta e de Seixas mostra-os como peculiares e como tal a linguagem tem de ser peculiar e específica.
    Dois traços típicos do discurso são o diálogo e a descrição. Por vezes, o fluir da ação abranda e as pausas são preenchidas por diálogos e descrição.
    O diálogo é importante, sobretudo a partir da parte III, porque só pelo diálogo podemos perceber a verdadeira situação que as duas personagens estão a viver e a pressão de dois orgulhos que se chocam. O diálogo assume um caráter mordaz e cínico. Há como que uma luta que se estabelece no íntimo de cada um. Sem diálogos, esta terceira parte podia resumir-se a um capítulo. Mas temos quase oito capítulos em que se digladiam e que nos dão a imagem do sofrimento que infringiam. O diálogo interior permite um acesso mais direto ao íntimo das personagens.
    A descrição é um elemento que está omnipresente em todo o romance: descrição do espaço, dos ambientes e das personagens, em relação a quem se descreve os modos e o vestuário, para evidenciar a ligação entre o físico e a moral. O modo de vestir de Aurélia e Seixas pauta-se pela beleza, que terá ligação com o caráter moral.
    Mas mais importante é o relatar das atitudes e comportamentos e nisto evidencia-se o caráter funcional de tais descrições. A descrição, qualquer que seja, é sempre funcional em relação ao tratamento do modo de ser das personagens. No fundo, o romance Senhora trata uma história simples, mas complicada e extraordinária. Não é no casamento por dinheiro que reside essa questão extraordinária, mas sim no comportamento peculiar das personagens, sobretudo de Aurélia que, apesar de tudo, casa por amor.

sábado, 22 de julho de 2023

O narrador de Senhora


    É um narrador heterodiegético, porque nunca participa na diegese, e também omnisciente, pela introspeção que faz do íntimo das personagens. Isto faz com que assumisse uma função de criador: dono do mundo ficcional que cria. Ele instaura-se como criador e, como tal, dá-nos a verdade. Todas as suas interpelações são indiscutíveis. O narrador heterodiegético e omnisciente tem uma enorme autonomia sobre o texto e não é possível discutir os seus valores. Ele apresenta a verdade e, por isso, por detrás da aparência de Seixas e Aurélia, ele mostra-nos o seu íntimo autêntico. Apresenta os dois aspetos como tentativa de repor sempre a verdade. Assim, cria-se um equilíbrio no mundo ficcional, possível através das interpelações subjetivas do narrador. A sua apresentação da verdade não permite ao leitor equívocos ou entrar em contradição. Explica toda a ação e daí a recorrência à analepse com o objetivo de explicar as atitudes e os comportamentos das personagens. Garante a unidade e a verdade da narrativa.
    Se este é o seu objetivo, daqui vem a sua constante participação:

=> pág. 120: “Este fenómeno devia ter uma razão psicológica, de cuja investigação nos abstemos…”. O narrador instaura uma verdade; não deixa perspetiva em aberto.

    Mas além da constante participação do narrador, há uma íntima ligação texto-narrador-leitor:

=> pág. 136: “Tornemos à câmara nupcial, onde se representa a primeira cena do drama original, de que apenas conhecemos o prólogo.”: intriga os leitores no mundo ficcional como entidade a quem dirige o seu discurso e os valores que ele exprime;

=> pág. 193: “Convencido de que também o coração tem uma lógica…bem desejara o narrador deste episódio perscrutar a razão dos singulares movimentos que se produzem na alma de Aurélia.

    Como, porém, não foi dotado com a lucidez precisa para o estudo dos fenómenos psicológicos, limita-se a referir o que sabe, deixando à sagacidade de cada um atinar com a verdadeira causa de impulsos tão encontrados.”

=> pág. 222: há uma intertextualidade e dialogismo que se estabelece na obra: “Mal pensava Aurélia que o autor de Diva teria mais tarde a honra de receber indiretamente suas inconfidências, e escrever também o romance de sua vida, a que ela fazia alusão.”

    Há um necessário afastamento entre o narrador (entidade inerente à obra) e o autor empírico da obra. Se, por um lado, o narrador se coloca da parte de fora, apenas como depósito do que Aurélia lhe contara sobre sua vida, logo adquire um poder enorme sobre as personagens, modelando e fazendo-as evoluir por si próprias (ver a importância do diálogo para essa evolução) ou mostrando autênticos quadros de análise psicológica do interior das personagens. O narrador domina completamente as suas personagens, os acontecimentos; conhece as causas e os respetivos efeitos sem que se possa pôr em causa a sua autoridade. Daí ser heterodiegético.

O espaço em Senhora


    Tem uma grande importância no  romance. Aparecem muitas descrições do espaço, que é uma das principais categorias do romance.
    Apesar de ser um romance citadino, a natureza desempenha um papel importante. A descrição alterna entre ambientes íntimos de família e os salões, os teatros, onde se reunia a sociedade do Rio de Janeiro, em fins do século XIX.
    O espaço tem uma importância acrescida, o que se pode ver pelo tempo de discurso que ocupa. Há inúmeras e minuciosas descrições. O espaço que é descrito serve muitas vezes para introduzir as personagens, tal como já vimos em Memórias de um Sargento de Milícias.
    Como exemplo, temos a pág. 34: descrição dos aposentos de Seixas, onde se introduz a personagem. É uma descrição que marca o contraste entre a vida familiar de Seixas e o modo como se apresenta nos salões e na corte. Podemos pensar numa duplicidade de espaço: entre o ambiente natural de Seixas e a sociedade, que atuou no seu comportamento. Neste contraste, há uma separação entre a parte pobre e a parte rica, onde Seixas se insere como se a ela pertencesse.
    A descrição física desce a todos os pormenores, mesmo ao pé. O mesmo se passa em relação à casa.
    Outro exemplo temo-lo na pág. 84: descrição do quarto nupcial, feita nos mesmos moldes da anterior: Aurélia é inserida no ambiente descrito sem quebrar a sequência da descrição. É um ambiente rico e quase etéreo. É como se se inserisse uma deusa no seu próprio ambiente: o Olimpo. A imagem que nos fica dela é a de uma pessoa quase inatingível. Usa-se um vocabulário cheio de clichés.
    Na página 145, descreve-se a câmara para onde vai viver Seixas e o seu estado de espírito. Descreve-se o luxo que agora o envolve. O mais importante é o contraste entre a primeira cena descrita, onde se vê a pobreza de Seixas e os objetos ricos que possuía, e agora que tem um ambiente que lhe corresponde, no entanto o seu estado de espírito não é de felicidade.
    Outro aspeto importante é a natureza, uma natureza calma e serena. É a serenidade da natureza que acalma o espírito de Seixas. Por ser um romance citadino, a referência à natureza não é muito frequente, mas retoma-se um elemento romântico: ação da natureza sobre as personagens. Como exemplo temos a página 148, com a descrição minuciosa da natureza.
    Em todas as descrições se usa o mesmo vocabulário (grane e eloquente) e a mesma técnica descritiva, que lembra Castro Alves: pormenor e minúcia.
    O espaço tem importância pelo espaço que ocupa, mas também porque permite atingir muitas características psicológicas das personagens.

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Análise da letra da música "Chão de Giz", de Zé Ramalho


    "Chão de giz" é um tema musical interpretado pelo compositor e cantor brasileiro Zé Ramalho sobre a temática amorosa.

    A letra da música tem-se prestado a diversas interpretações. Deixamos aqui uma dessas interpretações [Cultura Genial].

quinta-feira, 20 de julho de 2023

O tempo em Senhora


    O tempo em si, em certo ponto, é linear, embora se verifiquem três analepses: uma que ocupa quase toda a segunda parte e outras muito mais breves. Aparecem pela necessidade de justificar atitudes e comportamentos; são funcionais e não fortuitas.
    É também de notar uma íntima relação entre o fluir da ação e o fluir do tempo: no primeiro capítulo da parte III, relata-se amiúde todos os comportamentos e atitudes. É um tempo muito curto, que ocupa longas páginas.
    A indicação do tempo aparece nos vários capítulos, sobretudo no seu início:

2.º capítulo: “Seriam nove horas do dia.”

3.º capítulo: “Era a hora do almoço.”

    O tempo é uma das categorias principais e no Romantismo é fundamental.
    As analepses não são meros recuos no tempo, mas são importantíssimas:

 
=> 1.ª analepse (6.º cap., I parte): caracterização de Seixas, relação com a mãe e irmãs e como se deixa submeter pela sociedade. Por vezes, sente remorsos e a única via é cair de novo na sociedade para arranjar um casamento rico. Mas após o casamento não há muitas referências à sua preocupação com a mãe e com as irmãs.

 
=> 2.ª analepse: mostra-nos as razões que impelem a heroína ao desmascaramento da sociedade. Ela foi vítima, aprendeu e agora aparece como vingadora. Conhece Seixas ainda quando era pobre e continua a guardar o seu amor, mas guarda também a amargura, que a leva à vingança.

 
=> 3.ª analepse: mostra a evolução de todo o sentimento de Aurélia em relação ao casamento. É uma analepse não de ação, mas de explicação da evolução operada no espírito de Aurélia.


A ação de Senhora


    O motor da intriga é o casamento de Aurélia e Seixas. Situa-se na 1.ª parte e as outras desenvolvem-se em função desta: na 2.ª parte, justifica-se o acontecido num regresso ao passado; as 3.ª e 4.ª partes são uma espécie de jogo. António Cândido diz que se trata de “um jogo de avanços e recuos, de diálogos construídos como pressões e concessões, um enredo latente de manobras secretas no correr do qual a posição dos cônjuges se vai alterando”. Se o amor e o desejo os começa a juntar, o orgulho continua a separá-los.
    Esta caracterização do romance vem na sequência das características das narrativas do século XIX, entre as quais se aponta a linearidade. Os acontecimentos sucedem-se em continuidade e linearidade. O romance constitui-se como sequência e consequência das ações; a intriga obedece a uma causalidade e temporalidade lineares e bi-implicadas. Existe um princípio, um meio e um fim em relação de anterioridade/posterioridade e mesmo numa relação de causa-efeito. Aurélia reage como reage, porque é motivada por razões anteriores. O mesmo se passa com Seixas. Há toda uma dualidade que caracteriza o texto.

Estrutura da ação de Senhora


    O romance Senhora está dividido em quatro partes:

= 1.ª parte: O preço.

= 2.ª parte: Quitação.

= 3.ª parte: Posse.

= 4.ª parte: Resgate.

    O título de cada uma corresponde ao seu conteúdo.

 
1. “O Preço”: o título é muito significativo e refere-se a dois aspetos:

=> Atitude de Aurélia, que cotava cada homem que dela se aproximava com um certo preço, um valor monetário e eles correspondiam a essa atitude com gracejos, mas ela fazia-o com desprezo. Era uma forma de reagir contra uma sociedade onde imperava o dinheiro, de reagir contra o casamento como transação negocial:

“Assim costumava ela indicar o merecimento relativo de cada um dos pretendentes, dando-lhes certo valor monetário. Em linguagem financeira, Aurélia cotava os seus adoradores pelo preço que razoavelmente poderiam obter no mercado matrimonial.” – pág. 13.

 
“Muito devia a cobiça embrutecer esses homens, ou cegá-los a paixão, para não verem o frio escárnio com que Aurélia os ludibriava nestes brincos ridículos, que eles tomavam por garridices de menina, enão eram senão ímpetos de uma irritação íntima e talvez mórbida.” – pág. 15.

 
=> Mas o título tem um significado mais profundo, quando Seixas se vende por 100 contos de réis, mesmo sem saber a quem. O seu comportamento é influenciado pela sociedade. Este casamento é o fulcro de toda a intriga. Aurélia estabelece o casamento como um negócio. Mas logo a seguir, ela mostra que coloca nesse “negócio” muita afetividade: “… Desejo como é natural obter o que pretendo, o mais barato possível; mas o essencial é obter; e portanto até metade do que possuo não faço de questão de preço. É a minha felicidade que vou comprar.” – pág. 32.

    O casamento, que deve ser uma relação de amor, é aqui uma relação de compra e venda. Seixas, mais à frente, refere-se a Aurélia como Senhora e a ele como escravo – situação feudalizante. Ligada à ideia do casamento como negócio, está o testamento que Aurélia faz logo.

 
2. “Quitação”: esta parte é uma longa analepse, exceto o último capítulo, onde se retorna ao quarto nupcial, onde se dera o drama. A analepse é uma justificação das atitudes e comportamentos de Aurélia. Ao longo de 10 capítulos é descrita a vida de Aurélia antes de receber a herança de seu avô, como se apaixonou por Seixas (página 109) e como ele a traiu (pg. 112) e se vendeu a Adelaide por um dote de 30 contos de réis. A sua origem modesta e mesmo pobre, antes da herança, justifica a sua atitude para com a sociedade, onde pesa mais o dinheiro. É uma sociedade burguesa, onde os valores da velha educação brasileira são esquecidos em detrimento do dinheiro. É contra isto que Aurélia vai guiar a sua luta.

    Enquanto era pobre, sua família ignorava-a; agora que enriquecera era bajulada. Mas ela escolhe seu tio Lemos para tutor, porque o podia dominar (pág. 131).

 
3. “Posse”: Aurélia casa com Seixas e ambos vivem uma vida aparente de felicidade, o que é constrangedor. Esta parte descreve as atitudes e comportamentos que marcam a relação de ambos. As personagens são acompanhadas passo a passo e, por isso, a ação pouco avança. É fundamental a análise psicológica das personagens, que se pautam pela ironia.

    Várias são as passagens que ilustram esta ironia e tom sarcástico que domina as conversas de Aurélia e Seixas: pp. 153, 164-166; pp. 178-180; pp. 191-192; pp. 200-202.Aurélia propõe o divórcio, mas Seixas não aceita: “A Senhora fará o que for de sua vontade. A minha obrigação é obedecer-lhe, como seu servo, contando que não lhe falte com o marido que a senhora comprou.” É o orgulho de ambos que causa o conflito.

 
4. “Resgate”: há uma ligeira aproximação de Aurélia e Seixas, o que reflete na ligeira quebra da ironia que atinge os seus diálogos e que chega a ser referida pelas personagens. Isto é um sinal de que a ação se encaminha para um final feliz.

    Ao ciúme, motivado pelo desejo e pela posse, que os aproxima, contrapõe-se o orgulho e é este que faz com que a reconciliação se faça apenas no final. É Aurélia que cede, quando ele a deixa. Mas tinha de ser mesmo ela, pois foi ela que impôs a prova, logo tinha de ser Aurélia a reconhecer que ele já estava pronto para a merecer. Só assim se estabelece equilíbrio na relação.

    Na página 215, vemos que o desejo crescente é quebrado pelo orgulho e pela situação de submissão a que está submetido Seixas.

    É o ciúme que os começa a aproximar: o ciúme de Aurélia por Adelaide (pp. 223-228) e o ciúme de Seixas em relação a Abreu (pp. 230-232).

    A partir da cena da valsa (pp. 236-246), começam a sentir a necessidade de acabar com a ironia e, assim, se vai preparando um final feliz.

Alencar e Senhora


    Este é um dos melhores romances de Alencar. No entanto, não há muito estudos sobre a obra, ao contrário do que seria de esperar. Foi de tal modo valorizada a “vertente indianista” de Alencar que as suas outras vertentes (vertente urbana, histórica, regionalista) foram descuradas.
    Grande parte dos romances de Alencar têm como elemento fulcral o índio, elemento típico brasileiro. Alencar busca, assim, um passado que corresponde à necessidade de busca da nacionalidade e um passado heroico, o que é típico do Romantismo.
    No entanto, a composição dos seus romances, a nível de forma, estrutura, abundância de adjetivos, metáforas, descrições estão presentes com muita força na sua última fase, quando as obras passam a refletir sobre a sociedade urbana. A globalidade da sua obra, apesar de dividida em diferentes vertentes (indianista, urbana, histórica, regionalista) tem, contudo, um motivo unitário: a profunda necessidade de evasão no tempo e no espaço, a par de um radical egotismo, traços visceralmente românticos.

 
    A sua vertente urbana ou citadina, onde se destacam obras como Diva, Sonhos d’Ouro, Lucila, Senhora, desenvolve um novo núcleo temático centrado em alguns tópicos:

- Relacionamento entre homem e mulher, que quase nunca é calmo, mas entrelaçado de conflitos.

- Tratamento do “Eu” e neste o que mais salta à vista é o orgulho, suscetibilidade, ciúme, dualidades, etc.

- Intimismo.

    Senhora retoma, de forma satírica e irónica, a vida em sociedade da segunda metade do séc. XIX. O seu estudo é importante não só para um maior equilíbrio na abordagem da obra de Alencar, mas também no estudo de uma fase muito importante na literatura brasileira: Romantismo. É nesta fase que a literatura do Brasil se afirma como independente de qualquer outra literatura e é também no Romantismo que se definem as linhas mestras de uma literatura que se quer peculiar de um povo.
    Senhora já anuncia a atitude e o modo de escrever de Machado de Assis e impõe uma nova dimensão à ficção brasileira.
    Das Memórias (1853) se disse que já anunciavam o Realismo. Quanto à Senhora, as opiniões divergem: uns dizem que já anuncia o Realismo; outros que o realismo da descrição não é sequer realismo. Esta é, sem dúvida, uma obra romântica, embora seja publicada na mesma época em que surgem as primeiras obras de Machado de Assis (1875).

Análise da obra Senhora, de José de Alencar

                A - Alencar e Senhora


                B - Estrutura do romance


                C - Ação


                D - Tempo


                E - Espaço


                F - Narrador


                G - Discurso


                H - Personagens

                        1. Aurélia

                        2. Seixas


                I - Relação Senhora / Alencar


                J - Dimensão social de Senhora


                K - Senhora: Possível Realismo?


                L - Obra essencialmente romântica


Características de Memórias de um Sargento de Milícias


     1. Ironia: característica presente em todo o romance como elemento fundamental. Aliás, o discurso de Manuel António de Almeida é, antes de tudo, irónico. Esta ironia é o resultado de uma visão desenganada da sociedade e tem a função de nivelar a visão das personagens e, no fundo, de todo o ser humano. O nivelamento das personagens é também dado pela ausência de nome próprio de algumas personagens, pois o nome é uma forma de individualizar.
    Numa segunda parte, a ironia modifica-se, pois tem um âmbito mais psicológico e refere-se à maneira de ser das personagens. Obviamente, a ironia que acompanha Leonardo enquanto criança tem de ser diferente da vida de adulto.

    2. O esboço da sociedade da época acaba por ser o dominante na obra:
            - inexistência de traços idealizantes: as coisas são descritas tal como são;
            - objetividade na construção do romance.
    As personagens quase sempre aparecem dentro de um certo ambiente: por exemplo, Vidinha aparece inserida num ambiente e é nesse ambiente que a personagem é descrita. A profissão e o divertimento aparecem sempre na caracterização das personagens.
    No fundo, o romance é uma relação estreita entre um relato histórico e uma visão desenganada da existência. É Bosi que usa a expressão “trilhar o infortúnio” a respeito de Manuel Almeida. É, de facto, a personagem de Leonardo é isto: ele passa sucessivamente de momentos de fortuna para momentos de infortúnio, como se fosse um foguete da sorte e do destino.

    3. Humor: a ironia que se depara na obra não é uma ironia amarga, mas é quase sempre alegre, pautando-se pelo cómico e pelo humor, que no romance assume várias perspetivas:

- humor subtil (ou inglês);

- humor pícaro (ou espanhol), caracterizado pela sátira e cinismo. Este é muito comum no romance, sobretudo pelas duas primeiras características apontadas.

 
    4. Realismo: marca a diferença em relação à literatura deste tempo, sobretudo em relação a Iracema.
    O romance situa-se no Romantismo, mas passa além dele, o que pode justificar a pouca aceitação que teve. O Realismo resulta de três processos:

- caracterização das personagens;

- construção do processo narrativo;

- relação de unidade entre personagens e factos.

    A análise psicológica é o facto mais inovador e tem sobretudo importância no tratamento do desvio, da fuga à norma. Isto dá uma visão mais profunda da sociedade e da dificuldade que as personagens têm em se relacionar umas com as outras. Embora a análise psicológica não seja dominante no romance, dá uma grande contribuição para lhe conferir um pendor realista numa época dominada pelo Romantismo.

    5. Ordem e desordem: quem representa a ordem é o Major Vidigal, que cuida da ordem e da estabilidade na cidade. Juntamente com ele, encontram-se a comadre, D. Maria e o compadre. Não são personagens inteiramente íntegras, porém possuem alguma estabilidade social.
    Representando a desordem encontramos Vidinha, Teotónio (um malandro), o sacristão da Sé, entre outras personagens. Não obstante, há figuras que transitam entre os dois polos. Por exemplo, o Major Vidigal transgrediu a lei quando libertou e promoveu Leonardo por motivos amorosos e sexuais (a pedido de três mulheres e em troca de morar com a sua amante).


Aspetos a favor do “ponderado Realismo”

 
    O objeto escolhido e o modo de relatar o assunto mostram a transição para o Realismo. Mas há outros aspetos:

* Preocupação inovadora com o comportamento psicológico das personagens.

* Trato mais realista.

* Desenho do perfil psicológico das personagens.

* Registo irónico e cómico.

    Estes dois últimos traços já anunciam o Realismo de Machado de Assis e a aplicação de estratégias narrativas desenvolvidas posteriormente.

* Surpreendente parcialidade na contemplação das personagens. Mas a ironia, a crítica e o humor dão uma visão que não é parcial.

* Ausência de tensão entre o bem e o mal, típica do Romantismo. Isto originou um nivelamento, uma vez que todas as personagens partilham do bem e do mal; têm em si os dois polos. Mas a tendência para a análise introspetiva não é profunda nem pretende atingir a raiz do comportamento psicológico.

    O cinismo que se vêm em toda a obra não é amargurado, mas é mais o resultado de uma espécie de filosofia de vida.
    Temos de ver também a influência que a sua formação jornalística teve no seu “ponderado realismo”: é como se pretendesse fazer uma reportagem direta, superficial e crítica, revendo aspetos genéricos de uma sociedade urbana.

 
                Trata-se, além disso, de um romance de costumes:

 
* Presença de personagens-tipo: é como se tirasse um mínimo múltiplo a nível de comportamento, o que não impede que elas, por vezes, saiam dessa linha e tenham comportamentos diversos.

                Estas personagens-tipo constroem-se de várias formas:

- não atribuição de nomes próprios (exs.: comadre, compadre);

- uso de nomes eufemísticos (exs.: Maria da Hortaliça, Maria Regalada);

- colocação das personagens em cenários correspondentes (ex.: Canto dos Meirinhos);

- dissolução das personagens: elas acabam por não ter um estatuto principal perante o cenário.

 
* Romance horizontal, onde a ação é predominante. Trata-se sobretudo da análise da forma de convivência entre as pessoas e nesta o que mais ressalta é a fragilidade desse contacto. Dos processos mais importantes na narrativa, cabe a referência a acontecimentos sociais e ao modo como as personagens aparecem inseridas nesses acontecimentos sociais. Há uma sucessão de eventos vistos pela perspetiva das personagens.

 
* As referências ao tempo e ao espaço praticamente não existem ou não são apontadas especificamente. Quase sempre funcionam como introdução a acontecimentos e personagens, não havendo quase descrições.
Quanto ao tempo, temos apenas uma referência logo no início (“Era no tempo do rei…”) e a ideia do fluir do tempo pela referência ao crescimento de Leonardo.

 
* Personagens: só são relevantes quando presentes e vivem num movimento constante entre um “cá” e um “lá”, entre a sorte e o infortúnio. Por exemplo, Leonardo tanto está numa fase boa como numa má, a partir da qual logo vem outra boa. Há sempre um movimento aparentemente de queda que se revela de ascensão em alguns casos. Todo este movimento de oscilação influencia o ritmo do romance e é a quebra da oscilação que marca o fim do romance.

 
* Prosa: tem um estilo muito direto, simples, com uma ou outra descrição romântica, que são quase críticas. Este estilo reflete uma visão desencantada e parcial do mundo.

 
Conclusão:

O mais importante em Memórias de um Sargento de Milícias acaba por ser a crença de que todos os homens são mais ou menos iguais, nem maus nem bons, ou então bons e maus. A maioria das pessoas tem em si a dualidade: tanto faz o bem como o mal e passa de um extremo ao outro com grande facilidade. Isto acaba por afastar o romance do Romantismo, sobretudo no que diz respeito à teoria do herói romântico. A teoria do génio romântico fica muito em baixo nesta obra.

                A visão desencantada mostra já algo de Realismo.
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