Português: Análise do poema "Transição", de Cecília Meireles

domingo, 23 de julho de 2023

Análise do poema "Transição", de Cecília Meireles


    Este poema foi publicado em 1972, na obra Mar Absoluto, e trata o tema da fugacidade do momento, como o título, desde logo, indicia. De facto, a palavra “transição” remete para a passagem do tempo.
    O sujeito poético – feminino (“adjetivo “intacta”) – mostra “o amanhecer e o anoitecer”, que aponta para a rapidez com que as coisas transitam, pela sugestão da sucessão de muitos dias e noites. Contudo, essa celeridade que caracteriza a sucessão das coisas não afeta o «eu» poético: “parece deixarem-me intacta”. É como se estivesse frente ao espelho e não visse as mudanças por que vai passando. Apenas consegue ver o agora, o que é naquele momento: “mas os meus olhos estão vendo / o que há de mim, de mesma e exata”.
    A segunda estrofe inicia-se com uma antítese (“tristeza e alegria”) que mostra como o sujeito lírico se sente, que esses sentimentos que experimenta e entrelaçam os seus pensamentos o moldam a cada instante e o fazem constatar que a cada transformação que sofre um «eu» se «despedaça» para que outro nasça: “na que estou sendo a cada instante, / outra imagem se despedaça”. O sujeito poético evidencia a natureza dialética do tempo, cuja principal lei é a transformação. A cada instante algo muda com o tempo: os pensamentos, os sentimentos e as emoções do ser que sofre com a transitoriedade da vida.
    O sujeito poético vive o mistério da vida entre a tristeza e a alegria e esse mistério pertence-lhe, mas não é percecionado por ninguém de fora, apenas por ele mesmo, que o percebe na vivência do ser através dos “turvos rostos sucedidos” que guarda na memória. O nome «tanque» é uma metáfora que sugere o reservatório das memórias ou o lugar onde as lembranças estão armazenadas. De acordo com o «eu», essa memória é clara, ou seja, o «eu» consegue lembrar-se facilmente das suas recordações nos turvos rostos que se sucederam e já não possui mais.
    Na quarta estrofe, o sujeito poético exprime, de forma melancólica, que “ninguém distingue a leve sombra / que o autêntico desenho mata”, ou seja, ninguém consegue compreender as mudanças sentimentais que ocorrem em si, mesmo que estejam estampadas na figura do ser, pois, para todos, apesar da transitoriedade do amanhecer e do anoitecer, ela continua “a mesma, continuada e exata”, ou seja, não mudou.
    A última estrofe, uma quintilha, contém uma reflexão sobre a passagem e a duração do tempo. O sujeito poético reconhece as mudanças por si sofridas e as que estão por acontecer. Além disso, chora pelas mutações por que passou e chorará pelas que ainda sofrerá no futuro: “chorai, olhos de mil figuras [hipérbole] / pelas mil figuras passadas [hipérbole] / e pelas mil que vão chegando” [hipérbole].
    Na penúltima e na última estrofe, o sujeito poético reflete e alude à noite e ao dia, enfatizando a passagem descrita no início do poema (“amanhecer e anoitecer”), portanto é nessa passagem do tempo entre noite e dia que os rostos se sucederam, onde mil figuras passaram e onde outras mil estão por vir. Essas mudanças, embora “não consentidas”, são “recebidas e esperadas”, como alguém que não admite a velhice e a morte, mas espera por elas, mesmo que não sejam certas e exatas, cabendo-lhe apenas a tarefa de as aguardar e aceitar.
    Cada momento da vida do «eu» leva-o a vivenciar diferentes acontecimentos e sentimentos, como o amor, a tristeza e a felicidade. No entanto, se a vida é tão breve e passageira, esses sentimentos são tao fugazes como os instantes que se passam? Ou eternizam-se nas suas ações a ponto de permanecerem no seu “tanque da memória”?

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