Português: Análise do poema "Poema tirado de uma notícia de jornal"

domingo, 23 de julho de 2023

Análise do poema "Poema tirado de uma notícia de jornal"


    Este poema foi publicado pela primeira vez no jornal “A Noite”, do Rio de Janeiro, em 1925, integrando uma espécie de crónica da vida brasileira. De facto, o poeta transforma ima notícia de um jornal, que relata a história trágica de um homem de origem humilde, e converte-a em prosa.
    A composição poética é constituída por uma única estrofe de seis versos (sextilhas), sem qualquer pontuação, alternando versos longos e curtos. Por outro lado, tem uma clara estrutura narrativa, com uma ação com início (a descida de João Gostoso do morro), desenvolvimento (a entrada de João Gostoso no bar) e conclusão (a sua morte, resultante da queda nas águas da lagoa Rodrigo de Freitas e o consequente afogamento); personagens (João Gostoso); espaço (referências ao morro da Babilónia, ao bar Vinte de Novembro e à Lagoa Rodrigo de Freitas); tempo (passado – «era», «chegou» – indefinido – “Era uma vez”, fórmula característica das narrativas tradicionais; “Uma noite”); um narrador-observador, o sujeito poético.
    O tímido é bastante longo e contrasta com o caráter reduzido do poema e, através dele, o «eu» poético estabelece uma analogia com o jornal, sugerindo uma transformação do texto poético. Ao usar o particípio passado do verbo «tirar» («tirado»), que quer dizer fazer sair de algum ponto ou lugar, o «eu» poético recria poeticamente a vida simples de um brasileiro: João Gostoso.
    A notícia focaliza uma ocorrência pontual, efémera, como, por exemplo, a morte de um simples «carregador» de feira libre, no entanto o «eu» transforma esse facto insignificante para a humanidade em assunto de um poema. Deste modo, a poesia valoriza o quotidiano, imortalizando-o.
    O primeiro verso, o mais longo do poema, descreve uma personagem, indicando (a) o nome próprio (João), (b) a alcunha (Gostoso), (c) a atividade profissional (carregador de feira livre), (d) o local onde mora (o morro da Babilónia) e (e) a residência propriamente dita (um barracão sem número). Atentemos no apelido (“Gostoso”), pois trata-se de um termo coloquiam tipicamente brasileiro, que sugere estarmos na presença de uma pessoa leviana, sedutora e malandra, mas também alguém que se julga superior. Deste modo, estamos na presença de uma alcunha que imprime uma certa comicidade à figura em questão. Mais: proveniente das camadas populares, a personagem tem uma profissão e uma morada, mas a sua vida insignificante resume-se a uma única linha do poema.
    Os espaços geográficos referidos (“morro da Babilónia”, “bar Vinte de Novembro”, “Lagoa Rodrigo de Freitas”) impõem-se à existência da personagem, ao seu isolamento e solidão, reforçando a sua insignificância no contexto da cidade do Rio de Janeiro. As suas origens humildes, a sua pobreza e a sua solidão ficam bem evidentes quando atentamos na referência a um “barracão sem número”. A ausência de um lugar preciso reforça o isolamento e a insignificância de alguém completamente à margem do olhar público. Note-se que essa ausência de uma referência a um lugar específico, concreto, contrasta ironicamente com o bar, cujo nome contém um número (Vinte de Novembro), e com a lagoa onde a personagem morre afogada, que possui nome e sobrenome (Rodrigo de Freitas). Note-se que o nome «morro» indica um espaço geográfico situado num ponto alto, longe do espaço do desenlace trágico (a lagoa). Esta alternância entre um espaço alto, outro baixo e a ideia de descida não se refere unicamente aos espaços geográficos, mas a um ponto de partida para a descida e a morte. Por seu turno, o nome próprio «Babilónia», derivado de Babel, a cidade e torre bíblicas que conotam «confusão», «balbúrdia», adquire múltiplos significados, o que não sucederia na notícia, dado o seu caráter objetivo. Por sua vez, como já vimos, a expressão “barracão sem número” marca um espaço anónimo da residência e do morador. Não se trata apenas de um barracão, mas perde-se entre os outros, o que aponta para a falta de identidade e ausência de valor da personagem em questão. No meio da multidão do morro, o ser humano perde-se, entra no bar, bebe, canta e dança.
    Todo este jogo de nomes, alcunhas, números, exclusões, serve para reforçar a insignificância da personagem. Talvez por isso, o sujeito poético parece solidarizar-se com ela e com o seu entorpecimento na cidade, ao descrever as ações desenvolvidas durante a última noite de vida, em que deambula pela cidade, bêbedo e solitário.
    João Gostoso, a personagem anónima do barracão sem número, desenvolve uma série de ações corriqueiras, num determinado tempo e vive um destino trágico: bebe, canta e dança, acabando por se suicidar na lagoa que embeleza a paisagem. Deste modo, podemos considerar que João Gostoso é o herói anónimo que sucumbe à voracidade da cidade grande. E tudo se concretiza em “Uma noite”, fórmula que marca o início da narração, localizando-a num tempo indefinido, e que nos lembra as narrativas tradicionais. Para o poeta, não são necessárias muitas palavras, métrica ou rima para compor a «tragédia»; os factos valem por si mesmos. A noite, associada à chegada ao bar, representa um momento de prazer e de libertação de um simples carregador de feira livre, morador do morro, num barracão sem número. A noite representa uma perspetiva nova que se abre para João Gostoso, não mais uma figura anónima. O ápice da libertação atinge-se no último verso: “Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogada”.
    Estamos, pois, na presença de um poema tipicamente modernista: análise crítica da sociedade e da realidade brasileiras, expressa através de uma linguagem coloquial, sucinta, em que os factos se reduzem ao essencial, como acontece numa notícia.
    A finalidade do poema não passa por marcar um acontecimento no tempo e no espaço, mas mostrar, através desse incidente trágico do quotidiano, uma metáfora do ser humano em busca da sua identidade e da sua liberdade. A vida e a morte fundem-se numa amplitude de sentidos, até porque configuram dois movimentos antagónicos, mas complementares da mesma realidade. A solidão da vida aparenta constituir apenas uma espécie de ensaio da grande solidão que atinge cada ser humano. Os movimentos de vida e morte complementam-se na busca empreendida por João Gostoso, na queda para a sua libertação. Depois de viver um momento de festa e alegria, a personagem suicida-se na lagoa. Porquê? É o fim da festa; o indivíduo liberta-se da sua vida sinistra, difícil, miserável, solitária e desumana. Esse mergulho trágico, porque leva à morte, é encarado como libertação: movimento, queda, imagem, purificação e libertação. Por outro lado, o último ato de João Gostoso está prenhe de dramatismo, por causa da sua brevidade, que aproxima, de forma seca, a rápida sequência das ações da personagem (“Bebeu / Cantou / Dançou”), na sua aparente expressão da alegria de viver, manifestada num crescendo de expansão efusiva, até ao abrupto desfecho do último verso.
    O poema constitui um olhar sobre o quotidiano de um homem comum, sobre os desprovidos de voz, o indivíduo solitário que diariamente se perde e passa despercebido nas páginas dos jornais das grandes metrópoles. Sob a capa de qualquer homem simples, há a existência de uma complexidade humana que o singulariza.
    O não-sentido da morte de João Gostoso (o lançar-se de modo fortuito, gratuito, na lagoa) ou a ”inferência” de um drama pessoal (a sua peripécia derradeira, culminando no suicídio) deixam o leitor atónito, como diante de um enigma a exigir decifração. Se é verdade que a composição poética recupera o género da notícia, não o é menos que rompe com ele ao apresentar uma espécie de esqueleto de um drama que não é desenvolvido (afinal, o texto é constituído por meros 6 versos) e que a simples menção dos atos da personagem não abarca. Deste modo, João Gostoso torna-se «imortal» ao ser convertido em poesia, e não ser apenas uma mera de nota efémera de jornal. Manuel Bandeira retira do quotidiano um incidente, uma notícia de jornal, transformando-o em algo poético.

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