Este
poema foi publicado pela primeira vez no jornal “A Noite”, do Rio de Janeiro,
em 1925, integrando uma espécie de crónica da vida brasileira. De facto, o
poeta transforma ima notícia de um jornal, que relata a história trágica de um
homem de origem humilde, e converte-a em prosa.
A
composição poética é constituída por uma única estrofe de seis versos
(sextilhas), sem qualquer pontuação, alternando versos longos e curtos. Por outro
lado, tem uma clara estrutura narrativa, com uma ação com início (a descida de
João Gostoso do morro), desenvolvimento (a entrada de João Gostoso no bar) e
conclusão (a sua morte, resultante da queda nas águas da lagoa Rodrigo de
Freitas e o consequente afogamento); personagens (João Gostoso); espaço
(referências ao morro da Babilónia, ao bar Vinte de Novembro e à Lagoa Rodrigo
de Freitas); tempo (passado – «era», «chegou» – indefinido – “Era uma vez”,
fórmula característica das narrativas tradicionais; “Uma noite”); um narrador-observador,
o sujeito poético.
O
tímido é bastante longo e contrasta com o caráter reduzido do poema e, através
dele, o «eu» poético estabelece uma analogia com o jornal, sugerindo uma transformação
do texto poético. Ao usar o particípio passado do verbo «tirar» («tirado»), que
quer dizer fazer sair de algum ponto ou lugar, o «eu» poético recria
poeticamente a vida simples de um brasileiro: João Gostoso.
A
notícia focaliza uma ocorrência pontual, efémera, como, por exemplo, a morte de
um simples «carregador» de feira libre, no entanto o «eu» transforma esse facto
insignificante para a humanidade em assunto de um poema. Deste modo, a poesia
valoriza o quotidiano, imortalizando-o.
O
primeiro verso, o mais longo do poema, descreve uma personagem, indicando (a) o
nome próprio (João), (b) a alcunha (Gostoso), (c) a atividade profissional
(carregador de feira livre), (d) o local onde mora (o morro da Babilónia) e (e)
a residência propriamente dita (um barracão sem número). Atentemos no apelido (“Gostoso”),
pois trata-se de um termo coloquiam tipicamente brasileiro, que sugere estarmos
na presença de uma pessoa leviana, sedutora e malandra, mas também alguém que
se julga superior. Deste modo, estamos na presença de uma alcunha que imprime
uma certa comicidade à figura em questão. Mais: proveniente das camadas
populares, a personagem tem uma profissão e uma morada, mas a sua vida insignificante
resume-se a uma única linha do poema.
Os
espaços geográficos referidos (“morro da Babilónia”, “bar Vinte de Novembro”, “Lagoa
Rodrigo de Freitas”) impõem-se à existência da personagem, ao seu isolamento e
solidão, reforçando a sua insignificância no contexto da cidade do Rio de
Janeiro. As suas origens humildes, a sua pobreza e a sua solidão ficam bem evidentes
quando atentamos na referência a um “barracão sem número”. A ausência de um
lugar preciso reforça o isolamento e a insignificância de alguém completamente
à margem do olhar público. Note-se que essa ausência de uma referência a um
lugar específico, concreto, contrasta ironicamente com o bar, cujo nome contém
um número (Vinte de Novembro), e com a lagoa onde a personagem morre afogada,
que possui nome e sobrenome (Rodrigo de Freitas). Note-se que o nome «morro»
indica um espaço geográfico situado num ponto alto, longe do espaço do
desenlace trágico (a lagoa). Esta alternância entre um espaço alto, outro baixo
e a ideia de descida não se refere unicamente aos espaços geográficos, mas a um
ponto de partida para a descida e a morte. Por seu turno, o nome próprio
«Babilónia», derivado de Babel, a cidade e torre bíblicas que conotam
«confusão», «balbúrdia», adquire múltiplos significados, o que não sucederia na
notícia, dado o seu caráter objetivo. Por sua vez, como já vimos, a expressão “barracão
sem número” marca um espaço anónimo da residência e do morador. Não se trata
apenas de um barracão, mas perde-se entre os outros, o que aponta para a falta
de identidade e ausência de valor da personagem em questão. No meio da multidão
do morro, o ser humano perde-se, entra no bar, bebe, canta e dança.
Todo
este jogo de nomes, alcunhas, números, exclusões, serve para reforçar a
insignificância da personagem. Talvez por isso, o sujeito poético parece
solidarizar-se com ela e com o seu entorpecimento na cidade, ao descrever as
ações desenvolvidas durante a última noite de vida, em que deambula pela
cidade, bêbedo e solitário.
João
Gostoso, a personagem anónima do barracão sem número, desenvolve uma série de
ações corriqueiras, num determinado tempo e vive um destino trágico: bebe,
canta e dança, acabando por se suicidar na lagoa que embeleza a paisagem. Deste
modo, podemos considerar que João Gostoso é o herói anónimo que sucumbe à voracidade
da cidade grande. E tudo se concretiza em “Uma noite”, fórmula que marca o
início da narração, localizando-a num tempo indefinido, e que nos lembra as
narrativas tradicionais. Para o poeta, não são necessárias muitas palavras,
métrica ou rima para compor a «tragédia»; os factos valem por si mesmos. A
noite, associada à chegada ao bar, representa um momento de prazer e de
libertação de um simples carregador de feira livre, morador do morro, num
barracão sem número. A noite representa uma perspetiva nova que se abre para
João Gostoso, não mais uma figura anónima. O ápice da libertação atinge-se no
último verso: “Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogada”.
Estamos,
pois, na presença de um poema tipicamente modernista: análise crítica da
sociedade e da realidade brasileiras, expressa através de uma linguagem
coloquial, sucinta, em que os factos se reduzem ao essencial, como acontece
numa notícia.
A
finalidade do poema não passa por marcar um acontecimento no tempo e no espaço,
mas mostrar, através desse incidente trágico do quotidiano, uma metáfora do ser
humano em busca da sua identidade e da sua liberdade. A vida e a morte
fundem-se numa amplitude de sentidos, até porque configuram dois movimentos
antagónicos, mas complementares da mesma realidade. A solidão da vida aparenta
constituir apenas uma espécie de ensaio da grande solidão que atinge cada ser
humano. Os movimentos de vida e morte complementam-se na busca empreendida por
João Gostoso, na queda para a sua libertação. Depois de viver um momento de
festa e alegria, a personagem suicida-se na lagoa. Porquê? É o fim da festa; o
indivíduo liberta-se da sua vida sinistra, difícil, miserável, solitária e
desumana. Esse mergulho trágico, porque leva à morte, é encarado como
libertação: movimento, queda, imagem, purificação e libertação. Por outro lado,
o último ato de João Gostoso está prenhe de dramatismo, por causa da sua
brevidade, que aproxima, de forma seca, a rápida sequência das ações da
personagem (“Bebeu / Cantou / Dançou”), na sua aparente expressão da alegria de
viver, manifestada num crescendo de expansão efusiva, até ao abrupto desfecho
do último verso.
O poema
constitui um olhar sobre o quotidiano de um homem comum, sobre os desprovidos
de voz, o indivíduo solitário que diariamente se perde e passa despercebido nas
páginas dos jornais das grandes metrópoles. Sob a capa de qualquer homem simples,
há a existência de uma complexidade humana que o singulariza.
O
não-sentido da morte de João Gostoso (o lançar-se de modo fortuito, gratuito,
na lagoa) ou a ”inferência” de um drama pessoal (a sua peripécia derradeira,
culminando no suicídio) deixam o leitor atónito, como diante de um enigma a
exigir decifração. Se é verdade que a composição poética recupera o género da
notícia, não o é menos que rompe com ele ao apresentar uma espécie de esqueleto
de um drama que não é desenvolvido (afinal, o texto é constituído por meros 6
versos) e que a simples menção dos atos da personagem não abarca. Deste modo,
João Gostoso torna-se «imortal» ao ser convertido em poesia, e não ser apenas
uma mera de nota efémera de jornal. Manuel Bandeira retira do quotidiano um
incidente, uma notícia de jornal, transformando-o em algo poético.
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