Português: O narrador de Senhora

sábado, 22 de julho de 2023

O narrador de Senhora


    É um narrador heterodiegético, porque nunca participa na diegese, e também omnisciente, pela introspeção que faz do íntimo das personagens. Isto faz com que assumisse uma função de criador: dono do mundo ficcional que cria. Ele instaura-se como criador e, como tal, dá-nos a verdade. Todas as suas interpelações são indiscutíveis. O narrador heterodiegético e omnisciente tem uma enorme autonomia sobre o texto e não é possível discutir os seus valores. Ele apresenta a verdade e, por isso, por detrás da aparência de Seixas e Aurélia, ele mostra-nos o seu íntimo autêntico. Apresenta os dois aspetos como tentativa de repor sempre a verdade. Assim, cria-se um equilíbrio no mundo ficcional, possível através das interpelações subjetivas do narrador. A sua apresentação da verdade não permite ao leitor equívocos ou entrar em contradição. Explica toda a ação e daí a recorrência à analepse com o objetivo de explicar as atitudes e os comportamentos das personagens. Garante a unidade e a verdade da narrativa.
    Se este é o seu objetivo, daqui vem a sua constante participação:

=> pág. 120: “Este fenómeno devia ter uma razão psicológica, de cuja investigação nos abstemos…”. O narrador instaura uma verdade; não deixa perspetiva em aberto.

    Mas além da constante participação do narrador, há uma íntima ligação texto-narrador-leitor:

=> pág. 136: “Tornemos à câmara nupcial, onde se representa a primeira cena do drama original, de que apenas conhecemos o prólogo.”: intriga os leitores no mundo ficcional como entidade a quem dirige o seu discurso e os valores que ele exprime;

=> pág. 193: “Convencido de que também o coração tem uma lógica…bem desejara o narrador deste episódio perscrutar a razão dos singulares movimentos que se produzem na alma de Aurélia.

    Como, porém, não foi dotado com a lucidez precisa para o estudo dos fenómenos psicológicos, limita-se a referir o que sabe, deixando à sagacidade de cada um atinar com a verdadeira causa de impulsos tão encontrados.”

=> pág. 222: há uma intertextualidade e dialogismo que se estabelece na obra: “Mal pensava Aurélia que o autor de Diva teria mais tarde a honra de receber indiretamente suas inconfidências, e escrever também o romance de sua vida, a que ela fazia alusão.”

    Há um necessário afastamento entre o narrador (entidade inerente à obra) e o autor empírico da obra. Se, por um lado, o narrador se coloca da parte de fora, apenas como depósito do que Aurélia lhe contara sobre sua vida, logo adquire um poder enorme sobre as personagens, modelando e fazendo-as evoluir por si próprias (ver a importância do diálogo para essa evolução) ou mostrando autênticos quadros de análise psicológica do interior das personagens. O narrador domina completamente as suas personagens, os acontecimentos; conhece as causas e os respetivos efeitos sem que se possa pôr em causa a sua autoridade. Daí ser heterodiegético.

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