Português: Características de Memórias de um Sargento de Milícias

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Características de Memórias de um Sargento de Milícias


     1. Ironia: característica presente em todo o romance como elemento fundamental. Aliás, o discurso de Manuel António de Almeida é, antes de tudo, irónico. Esta ironia é o resultado de uma visão desenganada da sociedade e tem a função de nivelar a visão das personagens e, no fundo, de todo o ser humano. O nivelamento das personagens é também dado pela ausência de nome próprio de algumas personagens, pois o nome é uma forma de individualizar.
    Numa segunda parte, a ironia modifica-se, pois tem um âmbito mais psicológico e refere-se à maneira de ser das personagens. Obviamente, a ironia que acompanha Leonardo enquanto criança tem de ser diferente da vida de adulto.

    2. O esboço da sociedade da época acaba por ser o dominante na obra:
            - inexistência de traços idealizantes: as coisas são descritas tal como são;
            - objetividade na construção do romance.
    As personagens quase sempre aparecem dentro de um certo ambiente: por exemplo, Vidinha aparece inserida num ambiente e é nesse ambiente que a personagem é descrita. A profissão e o divertimento aparecem sempre na caracterização das personagens.
    No fundo, o romance é uma relação estreita entre um relato histórico e uma visão desenganada da existência. É Bosi que usa a expressão “trilhar o infortúnio” a respeito de Manuel Almeida. É, de facto, a personagem de Leonardo é isto: ele passa sucessivamente de momentos de fortuna para momentos de infortúnio, como se fosse um foguete da sorte e do destino.

    3. Humor: a ironia que se depara na obra não é uma ironia amarga, mas é quase sempre alegre, pautando-se pelo cómico e pelo humor, que no romance assume várias perspetivas:

- humor subtil (ou inglês);

- humor pícaro (ou espanhol), caracterizado pela sátira e cinismo. Este é muito comum no romance, sobretudo pelas duas primeiras características apontadas.

 
    4. Realismo: marca a diferença em relação à literatura deste tempo, sobretudo em relação a Iracema.
    O romance situa-se no Romantismo, mas passa além dele, o que pode justificar a pouca aceitação que teve. O Realismo resulta de três processos:

- caracterização das personagens;

- construção do processo narrativo;

- relação de unidade entre personagens e factos.

    A análise psicológica é o facto mais inovador e tem sobretudo importância no tratamento do desvio, da fuga à norma. Isto dá uma visão mais profunda da sociedade e da dificuldade que as personagens têm em se relacionar umas com as outras. Embora a análise psicológica não seja dominante no romance, dá uma grande contribuição para lhe conferir um pendor realista numa época dominada pelo Romantismo.

    5. Ordem e desordem: quem representa a ordem é o Major Vidigal, que cuida da ordem e da estabilidade na cidade. Juntamente com ele, encontram-se a comadre, D. Maria e o compadre. Não são personagens inteiramente íntegras, porém possuem alguma estabilidade social.
    Representando a desordem encontramos Vidinha, Teotónio (um malandro), o sacristão da Sé, entre outras personagens. Não obstante, há figuras que transitam entre os dois polos. Por exemplo, o Major Vidigal transgrediu a lei quando libertou e promoveu Leonardo por motivos amorosos e sexuais (a pedido de três mulheres e em troca de morar com a sua amante).


Aspetos a favor do “ponderado Realismo”

 
    O objeto escolhido e o modo de relatar o assunto mostram a transição para o Realismo. Mas há outros aspetos:

* Preocupação inovadora com o comportamento psicológico das personagens.

* Trato mais realista.

* Desenho do perfil psicológico das personagens.

* Registo irónico e cómico.

    Estes dois últimos traços já anunciam o Realismo de Machado de Assis e a aplicação de estratégias narrativas desenvolvidas posteriormente.

* Surpreendente parcialidade na contemplação das personagens. Mas a ironia, a crítica e o humor dão uma visão que não é parcial.

* Ausência de tensão entre o bem e o mal, típica do Romantismo. Isto originou um nivelamento, uma vez que todas as personagens partilham do bem e do mal; têm em si os dois polos. Mas a tendência para a análise introspetiva não é profunda nem pretende atingir a raiz do comportamento psicológico.

    O cinismo que se vêm em toda a obra não é amargurado, mas é mais o resultado de uma espécie de filosofia de vida.
    Temos de ver também a influência que a sua formação jornalística teve no seu “ponderado realismo”: é como se pretendesse fazer uma reportagem direta, superficial e crítica, revendo aspetos genéricos de uma sociedade urbana.

 
                Trata-se, além disso, de um romance de costumes:

 
* Presença de personagens-tipo: é como se tirasse um mínimo múltiplo a nível de comportamento, o que não impede que elas, por vezes, saiam dessa linha e tenham comportamentos diversos.

                Estas personagens-tipo constroem-se de várias formas:

- não atribuição de nomes próprios (exs.: comadre, compadre);

- uso de nomes eufemísticos (exs.: Maria da Hortaliça, Maria Regalada);

- colocação das personagens em cenários correspondentes (ex.: Canto dos Meirinhos);

- dissolução das personagens: elas acabam por não ter um estatuto principal perante o cenário.

 
* Romance horizontal, onde a ação é predominante. Trata-se sobretudo da análise da forma de convivência entre as pessoas e nesta o que mais ressalta é a fragilidade desse contacto. Dos processos mais importantes na narrativa, cabe a referência a acontecimentos sociais e ao modo como as personagens aparecem inseridas nesses acontecimentos sociais. Há uma sucessão de eventos vistos pela perspetiva das personagens.

 
* As referências ao tempo e ao espaço praticamente não existem ou não são apontadas especificamente. Quase sempre funcionam como introdução a acontecimentos e personagens, não havendo quase descrições.
Quanto ao tempo, temos apenas uma referência logo no início (“Era no tempo do rei…”) e a ideia do fluir do tempo pela referência ao crescimento de Leonardo.

 
* Personagens: só são relevantes quando presentes e vivem num movimento constante entre um “cá” e um “lá”, entre a sorte e o infortúnio. Por exemplo, Leonardo tanto está numa fase boa como numa má, a partir da qual logo vem outra boa. Há sempre um movimento aparentemente de queda que se revela de ascensão em alguns casos. Todo este movimento de oscilação influencia o ritmo do romance e é a quebra da oscilação que marca o fim do romance.

 
* Prosa: tem um estilo muito direto, simples, com uma ou outra descrição romântica, que são quase críticas. Este estilo reflete uma visão desencantada e parcial do mundo.

 
Conclusão:

O mais importante em Memórias de um Sargento de Milícias acaba por ser a crença de que todos os homens são mais ou menos iguais, nem maus nem bons, ou então bons e maus. A maioria das pessoas tem em si a dualidade: tanto faz o bem como o mal e passa de um extremo ao outro com grande facilidade. Isto acaba por afastar o romance do Romantismo, sobretudo no que diz respeito à teoria do herói romântico. A teoria do génio romântico fica muito em baixo nesta obra.

                A visão desencantada mostra já algo de Realismo.

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