1. Ironia: característica presente
em todo o romance como elemento fundamental. Aliás, o discurso de Manuel António
de Almeida é, antes de tudo, irónico. Esta ironia é o resultado de uma visão
desenganada da sociedade e tem a função de nivelar a visão das personagens e,
no fundo, de todo o ser humano. O nivelamento das personagens é também dado
pela ausência de nome próprio de algumas personagens, pois o nome é uma forma
de individualizar.
Numa
segunda parte, a ironia modifica-se, pois tem um âmbito mais psicológico e
refere-se à maneira de ser das personagens. Obviamente, a ironia que acompanha
Leonardo enquanto criança tem de ser diferente da vida de adulto.
2. O esboço da sociedade
da época acaba por ser o dominante na obra:
- inexistência
de traços idealizantes: as coisas são descritas tal como são;
- objetividade
na construção do romance.
As
personagens quase sempre aparecem dentro de um certo ambiente: por exemplo,
Vidinha aparece inserida num ambiente e é nesse ambiente que a personagem é
descrita. A profissão e o divertimento aparecem sempre na caracterização das
personagens.
No
fundo, o romance é uma relação estreita entre um relato histórico e uma visão
desenganada da existência. É Bosi que usa a expressão “trilhar o infortúnio” a
respeito de Manuel Almeida. É, de facto, a personagem de Leonardo é isto: ele
passa sucessivamente de momentos de fortuna para momentos de infortúnio, como
se fosse um foguete da sorte e do destino.
3. Humor: a ironia que se depara
na obra não é uma ironia amarga, mas é quase sempre alegre, pautando-se pelo
cómico e pelo humor, que no romance assume várias perspetivas:
- humor subtil (ou inglês);
- humor pícaro
(ou espanhol), caracterizado pela sátira e cinismo. Este é muito comum no
romance, sobretudo pelas duas primeiras características apontadas.
4. Realismo: marca a
diferença em relação à literatura deste tempo, sobretudo em relação a Iracema.
O
romance situa-se no Romantismo, mas passa além dele, o que pode justificar a
pouca aceitação que teve. O Realismo resulta de três processos:
- caracterização das personagens;
- construção do processo
narrativo;
- relação de unidade entre
personagens e factos.
A análise psicológica é o facto mais inovador e tem sobretudo importância no tratamento do desvio, da fuga à norma. Isto dá uma visão mais profunda da sociedade e da dificuldade que as personagens têm em se relacionar umas com as outras. Embora a análise psicológica não seja dominante no romance, dá uma grande contribuição para lhe conferir um pendor realista numa época dominada pelo Romantismo.
5. Ordem e desordem: quem
representa a ordem é o Major Vidigal, que cuida da ordem e da estabilidade na
cidade. Juntamente com ele, encontram-se a comadre, D. Maria e o compadre. Não
são personagens inteiramente íntegras, porém possuem alguma estabilidade
social.
Representando
a desordem encontramos Vidinha, Teotónio (um malandro), o sacristão da Sé,
entre outras personagens. Não obstante, há figuras que transitam entre os dois
polos. Por exemplo, o Major Vidigal transgrediu a lei quando libertou e promoveu
Leonardo por motivos amorosos e sexuais (a pedido de três mulheres e em troca
de morar com a sua amante).
Aspetos a favor do “ponderado
Realismo”
O
objeto escolhido e o modo de relatar o assunto mostram a transição para o Realismo.
Mas há outros aspetos:
* Preocupação
inovadora com o comportamento psicológico das personagens.
* Trato mais
realista.
* Desenho do
perfil psicológico das personagens.
* Registo irónico
e cómico.
Estes
dois últimos traços já anunciam o Realismo de Machado de Assis e a aplicação de
estratégias narrativas desenvolvidas posteriormente.
*
Surpreendente parcialidade na contemplação das personagens. Mas a ironia, a
crítica e o humor dão uma visão que não é parcial.
* Ausência de
tensão entre o bem e o mal, típica do Romantismo. Isto originou um nivelamento,
uma vez que todas as personagens partilham do bem e do mal; têm em si os dois
polos. Mas a tendência para a análise introspetiva não é profunda nem pretende
atingir a raiz do comportamento psicológico.
O
cinismo que se vêm em toda a obra não é amargurado, mas é mais o resultado de
uma espécie de filosofia de vida.
Temos
de ver também a influência que a sua formação jornalística teve no seu “ponderado
realismo”: é como se pretendesse fazer uma reportagem direta, superficial e
crítica, revendo aspetos genéricos de uma sociedade urbana.
Trata-se,
além disso, de um romance de costumes:
* Presença de personagens-tipo: é
como se tirasse um mínimo múltiplo a nível de comportamento, o que não impede
que elas, por vezes, saiam dessa linha e tenham comportamentos diversos.
Estas
personagens-tipo constroem-se de várias formas:
- não
atribuição de nomes próprios (exs.: comadre, compadre);
- uso de nomes
eufemísticos (exs.: Maria da Hortaliça, Maria Regalada);
- colocação
das personagens em cenários correspondentes (ex.: Canto dos Meirinhos);
- dissolução
das personagens: elas acabam por não ter um estatuto principal perante o
cenário.
* Romance horizontal, onde a ação
é predominante. Trata-se sobretudo da análise da forma de convivência entre as
pessoas e nesta o que mais ressalta é a fragilidade desse contacto. Dos
processos mais importantes na narrativa, cabe a referência a acontecimentos
sociais e ao modo como as personagens aparecem inseridas nesses acontecimentos
sociais. Há uma sucessão de eventos vistos pela perspetiva das personagens.
* As referências ao tempo e ao
espaço praticamente não existem ou não são apontadas especificamente. Quase
sempre funcionam como introdução a acontecimentos e personagens, não havendo
quase descrições.
Quanto
ao tempo, temos apenas uma referência logo no início (“Era no tempo do rei…”) e
a ideia do fluir do tempo pela referência ao crescimento de Leonardo.
* Personagens: só são relevantes
quando presentes e vivem num movimento constante entre um “cá” e um “lá”, entre
a sorte e o infortúnio. Por exemplo, Leonardo tanto está numa fase boa como
numa má, a partir da qual logo vem outra boa. Há sempre um movimento
aparentemente de queda que se revela de ascensão em alguns casos. Todo este
movimento de oscilação influencia o ritmo do romance e é a quebra da oscilação
que marca o fim do romance.
* Prosa: tem um estilo muito
direto, simples, com uma ou outra descrição romântica, que são quase críticas.
Este estilo reflete uma visão desencantada e parcial do mundo.
Conclusão:
O mais importante em Memórias
de um Sargento de Milícias acaba por ser a crença de que todos os homens
são mais ou menos iguais, nem maus nem bons, ou então bons e maus. A maioria
das pessoas tem em si a dualidade: tanto faz o bem como o mal e passa de um
extremo ao outro com grande facilidade. Isto acaba por afastar o romance do
Romantismo, sobretudo no que diz respeito à teoria do herói romântico. A teoria
do génio romântico fica muito em baixo nesta obra.
A visão
desencantada mostra já algo de Realismo.
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