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quinta-feira, 20 de julho de 2023

O tempo em Senhora


    O tempo em si, em certo ponto, é linear, embora se verifiquem três analepses: uma que ocupa quase toda a segunda parte e outras muito mais breves. Aparecem pela necessidade de justificar atitudes e comportamentos; são funcionais e não fortuitas.
    É também de notar uma íntima relação entre o fluir da ação e o fluir do tempo: no primeiro capítulo da parte III, relata-se amiúde todos os comportamentos e atitudes. É um tempo muito curto, que ocupa longas páginas.
    A indicação do tempo aparece nos vários capítulos, sobretudo no seu início:

2.º capítulo: “Seriam nove horas do dia.”

3.º capítulo: “Era a hora do almoço.”

    O tempo é uma das categorias principais e no Romantismo é fundamental.
    As analepses não são meros recuos no tempo, mas são importantíssimas:

 
=> 1.ª analepse (6.º cap., I parte): caracterização de Seixas, relação com a mãe e irmãs e como se deixa submeter pela sociedade. Por vezes, sente remorsos e a única via é cair de novo na sociedade para arranjar um casamento rico. Mas após o casamento não há muitas referências à sua preocupação com a mãe e com as irmãs.

 
=> 2.ª analepse: mostra-nos as razões que impelem a heroína ao desmascaramento da sociedade. Ela foi vítima, aprendeu e agora aparece como vingadora. Conhece Seixas ainda quando era pobre e continua a guardar o seu amor, mas guarda também a amargura, que a leva à vingança.

 
=> 3.ª analepse: mostra a evolução de todo o sentimento de Aurélia em relação ao casamento. É uma analepse não de ação, mas de explicação da evolução operada no espírito de Aurélia.


A ação de Senhora


    O motor da intriga é o casamento de Aurélia e Seixas. Situa-se na 1.ª parte e as outras desenvolvem-se em função desta: na 2.ª parte, justifica-se o acontecido num regresso ao passado; as 3.ª e 4.ª partes são uma espécie de jogo. António Cândido diz que se trata de “um jogo de avanços e recuos, de diálogos construídos como pressões e concessões, um enredo latente de manobras secretas no correr do qual a posição dos cônjuges se vai alterando”. Se o amor e o desejo os começa a juntar, o orgulho continua a separá-los.
    Esta caracterização do romance vem na sequência das características das narrativas do século XIX, entre as quais se aponta a linearidade. Os acontecimentos sucedem-se em continuidade e linearidade. O romance constitui-se como sequência e consequência das ações; a intriga obedece a uma causalidade e temporalidade lineares e bi-implicadas. Existe um princípio, um meio e um fim em relação de anterioridade/posterioridade e mesmo numa relação de causa-efeito. Aurélia reage como reage, porque é motivada por razões anteriores. O mesmo se passa com Seixas. Há toda uma dualidade que caracteriza o texto.

Estrutura da ação de Senhora


    O romance Senhora está dividido em quatro partes:

= 1.ª parte: O preço.

= 2.ª parte: Quitação.

= 3.ª parte: Posse.

= 4.ª parte: Resgate.

    O título de cada uma corresponde ao seu conteúdo.

 
1. “O Preço”: o título é muito significativo e refere-se a dois aspetos:

=> Atitude de Aurélia, que cotava cada homem que dela se aproximava com um certo preço, um valor monetário e eles correspondiam a essa atitude com gracejos, mas ela fazia-o com desprezo. Era uma forma de reagir contra uma sociedade onde imperava o dinheiro, de reagir contra o casamento como transação negocial:

“Assim costumava ela indicar o merecimento relativo de cada um dos pretendentes, dando-lhes certo valor monetário. Em linguagem financeira, Aurélia cotava os seus adoradores pelo preço que razoavelmente poderiam obter no mercado matrimonial.” – pág. 13.

 
“Muito devia a cobiça embrutecer esses homens, ou cegá-los a paixão, para não verem o frio escárnio com que Aurélia os ludibriava nestes brincos ridículos, que eles tomavam por garridices de menina, enão eram senão ímpetos de uma irritação íntima e talvez mórbida.” – pág. 15.

 
=> Mas o título tem um significado mais profundo, quando Seixas se vende por 100 contos de réis, mesmo sem saber a quem. O seu comportamento é influenciado pela sociedade. Este casamento é o fulcro de toda a intriga. Aurélia estabelece o casamento como um negócio. Mas logo a seguir, ela mostra que coloca nesse “negócio” muita afetividade: “… Desejo como é natural obter o que pretendo, o mais barato possível; mas o essencial é obter; e portanto até metade do que possuo não faço de questão de preço. É a minha felicidade que vou comprar.” – pág. 32.

    O casamento, que deve ser uma relação de amor, é aqui uma relação de compra e venda. Seixas, mais à frente, refere-se a Aurélia como Senhora e a ele como escravo – situação feudalizante. Ligada à ideia do casamento como negócio, está o testamento que Aurélia faz logo.

 
2. “Quitação”: esta parte é uma longa analepse, exceto o último capítulo, onde se retorna ao quarto nupcial, onde se dera o drama. A analepse é uma justificação das atitudes e comportamentos de Aurélia. Ao longo de 10 capítulos é descrita a vida de Aurélia antes de receber a herança de seu avô, como se apaixonou por Seixas (página 109) e como ele a traiu (pg. 112) e se vendeu a Adelaide por um dote de 30 contos de réis. A sua origem modesta e mesmo pobre, antes da herança, justifica a sua atitude para com a sociedade, onde pesa mais o dinheiro. É uma sociedade burguesa, onde os valores da velha educação brasileira são esquecidos em detrimento do dinheiro. É contra isto que Aurélia vai guiar a sua luta.

    Enquanto era pobre, sua família ignorava-a; agora que enriquecera era bajulada. Mas ela escolhe seu tio Lemos para tutor, porque o podia dominar (pág. 131).

 
3. “Posse”: Aurélia casa com Seixas e ambos vivem uma vida aparente de felicidade, o que é constrangedor. Esta parte descreve as atitudes e comportamentos que marcam a relação de ambos. As personagens são acompanhadas passo a passo e, por isso, a ação pouco avança. É fundamental a análise psicológica das personagens, que se pautam pela ironia.

    Várias são as passagens que ilustram esta ironia e tom sarcástico que domina as conversas de Aurélia e Seixas: pp. 153, 164-166; pp. 178-180; pp. 191-192; pp. 200-202.Aurélia propõe o divórcio, mas Seixas não aceita: “A Senhora fará o que for de sua vontade. A minha obrigação é obedecer-lhe, como seu servo, contando que não lhe falte com o marido que a senhora comprou.” É o orgulho de ambos que causa o conflito.

 
4. “Resgate”: há uma ligeira aproximação de Aurélia e Seixas, o que reflete na ligeira quebra da ironia que atinge os seus diálogos e que chega a ser referida pelas personagens. Isto é um sinal de que a ação se encaminha para um final feliz.

    Ao ciúme, motivado pelo desejo e pela posse, que os aproxima, contrapõe-se o orgulho e é este que faz com que a reconciliação se faça apenas no final. É Aurélia que cede, quando ele a deixa. Mas tinha de ser mesmo ela, pois foi ela que impôs a prova, logo tinha de ser Aurélia a reconhecer que ele já estava pronto para a merecer. Só assim se estabelece equilíbrio na relação.

    Na página 215, vemos que o desejo crescente é quebrado pelo orgulho e pela situação de submissão a que está submetido Seixas.

    É o ciúme que os começa a aproximar: o ciúme de Aurélia por Adelaide (pp. 223-228) e o ciúme de Seixas em relação a Abreu (pp. 230-232).

    A partir da cena da valsa (pp. 236-246), começam a sentir a necessidade de acabar com a ironia e, assim, se vai preparando um final feliz.

Alencar e Senhora


    Este é um dos melhores romances de Alencar. No entanto, não há muito estudos sobre a obra, ao contrário do que seria de esperar. Foi de tal modo valorizada a “vertente indianista” de Alencar que as suas outras vertentes (vertente urbana, histórica, regionalista) foram descuradas.
    Grande parte dos romances de Alencar têm como elemento fulcral o índio, elemento típico brasileiro. Alencar busca, assim, um passado que corresponde à necessidade de busca da nacionalidade e um passado heroico, o que é típico do Romantismo.
    No entanto, a composição dos seus romances, a nível de forma, estrutura, abundância de adjetivos, metáforas, descrições estão presentes com muita força na sua última fase, quando as obras passam a refletir sobre a sociedade urbana. A globalidade da sua obra, apesar de dividida em diferentes vertentes (indianista, urbana, histórica, regionalista) tem, contudo, um motivo unitário: a profunda necessidade de evasão no tempo e no espaço, a par de um radical egotismo, traços visceralmente românticos.

 
    A sua vertente urbana ou citadina, onde se destacam obras como Diva, Sonhos d’Ouro, Lucila, Senhora, desenvolve um novo núcleo temático centrado em alguns tópicos:

- Relacionamento entre homem e mulher, que quase nunca é calmo, mas entrelaçado de conflitos.

- Tratamento do “Eu” e neste o que mais salta à vista é o orgulho, suscetibilidade, ciúme, dualidades, etc.

- Intimismo.

    Senhora retoma, de forma satírica e irónica, a vida em sociedade da segunda metade do séc. XIX. O seu estudo é importante não só para um maior equilíbrio na abordagem da obra de Alencar, mas também no estudo de uma fase muito importante na literatura brasileira: Romantismo. É nesta fase que a literatura do Brasil se afirma como independente de qualquer outra literatura e é também no Romantismo que se definem as linhas mestras de uma literatura que se quer peculiar de um povo.
    Senhora já anuncia a atitude e o modo de escrever de Machado de Assis e impõe uma nova dimensão à ficção brasileira.
    Das Memórias (1853) se disse que já anunciavam o Realismo. Quanto à Senhora, as opiniões divergem: uns dizem que já anuncia o Realismo; outros que o realismo da descrição não é sequer realismo. Esta é, sem dúvida, uma obra romântica, embora seja publicada na mesma época em que surgem as primeiras obras de Machado de Assis (1875).

Análise da obra Senhora, de José de Alencar

                A - Alencar e Senhora


                B - Estrutura do romance


                C - Ação


                D - Tempo


                E - Espaço


                F - Narrador


                G - Discurso


                H - Personagens

                        1. Aurélia

                        2. Seixas


                I - Relação Senhora / Alencar


                J - Dimensão social de Senhora


                K - Senhora: Possível Realismo?


                L - Obra essencialmente romântica


Características de Memórias de um Sargento de Milícias


     1. Ironia: característica presente em todo o romance como elemento fundamental. Aliás, o discurso de Manuel António de Almeida é, antes de tudo, irónico. Esta ironia é o resultado de uma visão desenganada da sociedade e tem a função de nivelar a visão das personagens e, no fundo, de todo o ser humano. O nivelamento das personagens é também dado pela ausência de nome próprio de algumas personagens, pois o nome é uma forma de individualizar.
    Numa segunda parte, a ironia modifica-se, pois tem um âmbito mais psicológico e refere-se à maneira de ser das personagens. Obviamente, a ironia que acompanha Leonardo enquanto criança tem de ser diferente da vida de adulto.

    2. O esboço da sociedade da época acaba por ser o dominante na obra:
            - inexistência de traços idealizantes: as coisas são descritas tal como são;
            - objetividade na construção do romance.
    As personagens quase sempre aparecem dentro de um certo ambiente: por exemplo, Vidinha aparece inserida num ambiente e é nesse ambiente que a personagem é descrita. A profissão e o divertimento aparecem sempre na caracterização das personagens.
    No fundo, o romance é uma relação estreita entre um relato histórico e uma visão desenganada da existência. É Bosi que usa a expressão “trilhar o infortúnio” a respeito de Manuel Almeida. É, de facto, a personagem de Leonardo é isto: ele passa sucessivamente de momentos de fortuna para momentos de infortúnio, como se fosse um foguete da sorte e do destino.

    3. Humor: a ironia que se depara na obra não é uma ironia amarga, mas é quase sempre alegre, pautando-se pelo cómico e pelo humor, que no romance assume várias perspetivas:

- humor subtil (ou inglês);

- humor pícaro (ou espanhol), caracterizado pela sátira e cinismo. Este é muito comum no romance, sobretudo pelas duas primeiras características apontadas.

 
    4. Realismo: marca a diferença em relação à literatura deste tempo, sobretudo em relação a Iracema.
    O romance situa-se no Romantismo, mas passa além dele, o que pode justificar a pouca aceitação que teve. O Realismo resulta de três processos:

- caracterização das personagens;

- construção do processo narrativo;

- relação de unidade entre personagens e factos.

    A análise psicológica é o facto mais inovador e tem sobretudo importância no tratamento do desvio, da fuga à norma. Isto dá uma visão mais profunda da sociedade e da dificuldade que as personagens têm em se relacionar umas com as outras. Embora a análise psicológica não seja dominante no romance, dá uma grande contribuição para lhe conferir um pendor realista numa época dominada pelo Romantismo.

    5. Ordem e desordem: quem representa a ordem é o Major Vidigal, que cuida da ordem e da estabilidade na cidade. Juntamente com ele, encontram-se a comadre, D. Maria e o compadre. Não são personagens inteiramente íntegras, porém possuem alguma estabilidade social.
    Representando a desordem encontramos Vidinha, Teotónio (um malandro), o sacristão da Sé, entre outras personagens. Não obstante, há figuras que transitam entre os dois polos. Por exemplo, o Major Vidigal transgrediu a lei quando libertou e promoveu Leonardo por motivos amorosos e sexuais (a pedido de três mulheres e em troca de morar com a sua amante).


Aspetos a favor do “ponderado Realismo”

 
    O objeto escolhido e o modo de relatar o assunto mostram a transição para o Realismo. Mas há outros aspetos:

* Preocupação inovadora com o comportamento psicológico das personagens.

* Trato mais realista.

* Desenho do perfil psicológico das personagens.

* Registo irónico e cómico.

    Estes dois últimos traços já anunciam o Realismo de Machado de Assis e a aplicação de estratégias narrativas desenvolvidas posteriormente.

* Surpreendente parcialidade na contemplação das personagens. Mas a ironia, a crítica e o humor dão uma visão que não é parcial.

* Ausência de tensão entre o bem e o mal, típica do Romantismo. Isto originou um nivelamento, uma vez que todas as personagens partilham do bem e do mal; têm em si os dois polos. Mas a tendência para a análise introspetiva não é profunda nem pretende atingir a raiz do comportamento psicológico.

    O cinismo que se vêm em toda a obra não é amargurado, mas é mais o resultado de uma espécie de filosofia de vida.
    Temos de ver também a influência que a sua formação jornalística teve no seu “ponderado realismo”: é como se pretendesse fazer uma reportagem direta, superficial e crítica, revendo aspetos genéricos de uma sociedade urbana.

 
                Trata-se, além disso, de um romance de costumes:

 
* Presença de personagens-tipo: é como se tirasse um mínimo múltiplo a nível de comportamento, o que não impede que elas, por vezes, saiam dessa linha e tenham comportamentos diversos.

                Estas personagens-tipo constroem-se de várias formas:

- não atribuição de nomes próprios (exs.: comadre, compadre);

- uso de nomes eufemísticos (exs.: Maria da Hortaliça, Maria Regalada);

- colocação das personagens em cenários correspondentes (ex.: Canto dos Meirinhos);

- dissolução das personagens: elas acabam por não ter um estatuto principal perante o cenário.

 
* Romance horizontal, onde a ação é predominante. Trata-se sobretudo da análise da forma de convivência entre as pessoas e nesta o que mais ressalta é a fragilidade desse contacto. Dos processos mais importantes na narrativa, cabe a referência a acontecimentos sociais e ao modo como as personagens aparecem inseridas nesses acontecimentos sociais. Há uma sucessão de eventos vistos pela perspetiva das personagens.

 
* As referências ao tempo e ao espaço praticamente não existem ou não são apontadas especificamente. Quase sempre funcionam como introdução a acontecimentos e personagens, não havendo quase descrições.
Quanto ao tempo, temos apenas uma referência logo no início (“Era no tempo do rei…”) e a ideia do fluir do tempo pela referência ao crescimento de Leonardo.

 
* Personagens: só são relevantes quando presentes e vivem num movimento constante entre um “cá” e um “lá”, entre a sorte e o infortúnio. Por exemplo, Leonardo tanto está numa fase boa como numa má, a partir da qual logo vem outra boa. Há sempre um movimento aparentemente de queda que se revela de ascensão em alguns casos. Todo este movimento de oscilação influencia o ritmo do romance e é a quebra da oscilação que marca o fim do romance.

 
* Prosa: tem um estilo muito direto, simples, com uma ou outra descrição romântica, que são quase críticas. Este estilo reflete uma visão desencantada e parcial do mundo.

 
Conclusão:

O mais importante em Memórias de um Sargento de Milícias acaba por ser a crença de que todos os homens são mais ou menos iguais, nem maus nem bons, ou então bons e maus. A maioria das pessoas tem em si a dualidade: tanto faz o bem como o mal e passa de um extremo ao outro com grande facilidade. Isto acaba por afastar o romance do Romantismo, sobretudo no que diz respeito à teoria do herói romântico. A teoria do génio romântico fica muito em baixo nesta obra.

                A visão desencantada mostra já algo de Realismo.

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Classificação de Memórias de um Sargento de Milícias


    A classificação de Memórias de um Sargento de Milícias é complexa, desde logo porque os estudiosos não se entendem sobre a matéria e, por isso, apresentam diversos enquadramentos. Assim, há quem sustente que se enquadra na tradição do romance picaresco, cuja génese remonta à Espanha, nomeadamente com a publicação de Lazarilho de Tormes, obra anónima, em 1554.
    O termo «pícaro» refere-se às personagens que fogem ao conceito tradicional de herói e que vivem de astúcias e trapaças, sobrevivendo a partir de expedientes vários. É o que sucede com Leonardo, uma criança enjeitada pelos pais pouco tempo depois do seu nascimento, criada pelo padrinho e, posteriormente, pela madrinha. Deste modo, Manuel António de Almeida narra as suas aventuras e desventuras na “baixa sociedade fluminense”.
    Há quem o considere uma crónica de costumes, dado que retrata os costumes da sociedade num tom que se aproxima bastante do jornalístico. Na capa do primeiro volume da edição de 1875, surge como subtítulo a denominação “romance de costume brasileiros”, a qual não constava do original.
    Em rigor, talvez não seja possível rotular a obra com uma classificação específica.

Estrutura de Memórias de um Sargento de Milícias


    A obra está dividida em duas partes: a primeira é composta por 23 capítulos e a segunda por 25.
    Por outro lado, temos dois momentos na narrativa, que correspondem a preocupações diferentes:

. na primeira, temos o tratamento irónico das personagens;

. a segunda começa no capítulo XVIII da 1.ªparte da obra e caracteriza-se por aumentar a análise psicológica e introspetiva. Há uma mudança no drama, na intriga urdida entre as personagens e também a nível da estratégia narrativa. Na verdade, na 2.ª parte, a peça fundamental é Leonardo enquanto adulto e não Leonardo criança, com as suas travessuras e criancices.

    Assim, passa-se de uma parte, em que era fundamental o cómico para uma parte em que prevalece a análise psicológica. O cómico como que é substituído pelo que o narrador pensa das personagens. Podemos quase contrapor a infância (cómico) e a vida adulta (análise psicológica) de Leonardo, embora haja elementos que se mantêm:

. pseudo-superficialidade: resulta do caráter cómico e irónico da obra. Embora possa parecer que ele apenas se interessa por este aspeto, tudo o que escreve abrange um domínio mais profundo, chegando a fazer crítica moral e social;

. pragmatismo: esta característica nota-se em toda a sua escrita; tudo o que diz tem uma função. Se ele refere um dado elemento, é porque é importante, seja qual for a sua função. Isto é verdade, quer em relação à linguagem, personagens ou costumes;

. simplicidade de ações e no tratamento das personagens e dos factos;

. primitivismo no tratamento dos factos e das personagens. É como que a conclusão de todas estas características. Apesar de M. A. Almeida não se inserir ainda no Realismo totalmente, a sua ligação a este movimento deve-se precisamente a este primitivismo. Ele não é romântico, mas também ainda não é totalmente realista.

    Os acontecimentos narrados na primeira parte parecem esparsos, mantendo pouca relação entre si, como se estivéssemos perante recortes de eventos marcantes da sociedade, concretamente dos estratos médio e baixo, do Rio de Janeiro na época de D. João VI. Ao longo das páginas, predomina o tom de crónica jornalística, em episódios como, por exemplo, o batizado de Leonardo ou a Via Sacra do Bom Jesus. Já a segunda parte é típica de um romance, focando-se em Leonardo e na sua história.
    Os diversos episódios narrados funcionam com grande autonomia, sendo ligados pela presença de Leonardo, o que confere ao texto uma estrutura mais novelística do que de romance.

O narrador de Memórias de um Sargento de Milícias


    A obra é narrada na terceira pessoa por um narrador observador, não obstante o vocábulo «memórias» figurar no título, o qual poderia pressupor que o relato fosse feito na primeira pessoa, contudo a sua presença justifica-se pelo facto de o romance possuir traços históricos, visto que retrata cenas e costumes de uma época passada, e conta acontecimentos passados.

    Relativamente à focalização, estamos na presença de um narrador omnisciente, isto é, que sabe tudo, incluindo os pensamentos das personagens.

    A narrativa caracteriza-se pelo humor e pelo cinismo do narrador, que intervém nas situações que conta com ironia, enquanto descreve as personagens e os costumes da época. Deste modo, rompe com a postura idealizadora do narrador caracteristicamente romântico relativamente às personagens.

O tempo de Memórias de um Sargento de Milícias


    A narrativa é feita de acordo com a cronologia, embora seja entrecortada por vezes para o narrador produzir os seus comentários, introduzir uma ou outra analepse ou explicar algo.
    A ação decorre no início do século XIX, no período em que a família real portuguesa vivida no Brasil, depois de ter fugido às Invasões Francesas. Essa instalação da corte no Rio trouxe mudanças à cidade. Uma delas foi a criação de novas instituições, como a Real Junta do Comércio, a Mesa do Desembargo do Paço e a Intendência-Geral da Polícia, que está presente ao longo da obra através da figura do Major Vidigal. A ação da polícia estendia-se por um campo amplo, desde a segurança pública até às questões de saúde, passando pelos conflitos familiares e pelo recrutamento, exemplificado pelo de Leonardo filho. O Intendente da Polícia da Corte e do Estado do Brasil atuava, na prática, como uma polícia política, dado que mantinha a estabilidade das instituições políticas da nova corte; garantia a segurança pública (através da criação de quartéis para a Guarda Real da Polícia, em articulação com os juízes do crime dos bairros da cidade); controlava os espetáculos e os festejos populares (como as súcias do grupo de amigos de Leonardo e do antigo sacristão da Sé); fichava os moradores da cidade; coletava informações sobre a conduta de pessoas suspeitas de algo; arbitrava conflitos conjugais e familiares; era o depósito de mulheres desprotegidas, nomeadamente por motivos de divórcio; elaborava devassas e sumários da criminalidade na cidade do Rio de Janeiro; perseguia os marinheiros desertores, etc. Um dos traços e temas que caracterizam a obra é a repressão policial do período joanino, personificada na figura autoritária e omnipresente do Major Vidigal.
    Outros aspetos características da época são as modinhas populares difundidas pelo gosto popular na nova corte; as festas, patuscadas, comemorações; a burocracia transmigrada para o Rio, coincidente com a mudança da corte, exemplificada pelos oficiais superiores do Pátio dos Bichos, figuras meramente decorativas do Palácio Real; a presença e a ação de imigrantes portugueses no Brasil; a Justiça e as transformações ocorridas com a vinda da corte, exemplificadas pela figura de D. Maria, alucinada por demandas judiciais e a descrição dos meirinhos e da sua importância naquele tempo; a corrupção, bem visível no capítulo sobre os meirinhos; a maledicência; as festas e tradições populares, nomeadamente as religiosas; a capoeira, representada por Chico-Juca; os costumes dos ciganos, retratados como pessoas ociosas e festivas entregues a expedientes proibidos; as práticas educativas da época, simbolizadas pela figura do mestre-de-rezas, sempre com a palmatória à mão); as profissões de homens livres e pobres, etc., etc., etc.

Caracterização de Maria Regalada

    Maria Regalada é a amante de Vidigal. Intervém algumas vezes, a pedido de D. Maria e da comadre, em benefício de Leonardo. Numa dessas ocasiões, promete ao Vidigal, segredando-lhe ao ouvido, ir viver com ele se libertar o jovem.

Caracterização de Chiquinha

    Chiquinha é filha da comadre. Casa com Leonardo Pataca depois de Maria da Hortaliça o ter traído e abandonado.

Caracterização de Maria da Hortaliça

    Maria da Hortaliça é uma vendedora dos mercados de Lisboa que emigra para o Rio de Janeiro. A bordo do navio que a transporta, conhece Leonardo Pataca e envolve-se amorosamente com ele, acabando por engravidar. No Rio, moram juntos, embora não sejam casados, porém, passado algum tempo, ela começa a traí-lo com diferentes homens. Quando Pataca confirma as suas suspeitas de traição, agride-a, o que a leva a abandoná-lo e ao filho de ambos, fugindo na companhia do capitão de um navio.

Caracterização de Leonardo Pataca


    Leonardo Pataca é oficial de justiça e pai de Leonardo. Durante a viagem de barco rumo ao Rio de Janeiro, conhece a bordo Maria da Hortaliça, com quem se envolve sexualmente, engravidando-a. Já no Brasil, desconfia da fidelidade da companheira e, quando confirma a sua traição, agride-a fisicamente. Na sequência, ela foge com o capitão de uma embarcação e Leonardo entrega o filho ao barbeiro e acaba por casar com Chiquinha.
    Trata-se de um homem sentimental que tem um fraquinho por mulheres. Uma das com quem se envolve depois de Maria da Hortaliça é uma cigana, que, porém, o abandona, pelo que ele recorre a algo proibido na época – a feitiçaria –, para a conseguir de volta e que lhe traz problemas com Vidigal.
    Apesar de ser oficial de justiça, envolve-se em atividades suspeitas. O seu apelido – Pataca – deriva do facto de possuir dinheiro. Recorde-se que o termo «pataca» designava uma moeda de prata com o valor de 320 réis, que foi emitida por Portugal até ao século XIX.

Caracterização do Major Vidigal


    O Major Vidigal é um militar que persegue Leonardo e o prende algumas vezes, mas acaba por o integrar nas suas forças milicianas, primeiro como granadeiro, depois como sargento de milícias, para permitir que se casasse. É uma figura temida e respeitada por todos, severa e punidora, desempenhando ao mesmo tempo os papéis de polícia e juiz.
    Major Vidigal é uma personagem construída com base numa pessoa que existiu e viveu na época chamada Miguel Nunes Vidigal, que era chefe da Guarda Real, uma posição criada por D. João VI em 1809, para policiar o Rio de Janeiro.
    No que diz respeito à sua representatividade, o Vidigal configura o símbolo da repressão arbitrária e socialmente injusta, temida por todos aqueles que – tenham ou não problemas com a lei – são pobres e não dispõem de recursos nem beneficiam da proteção trazida pela amizade com alguém poderoso. Representa, de facto, a ordem do Rio de Janeiro, combatendo a malandragem e a vagabundagem da época. No entanto, apesar de ser o símbolo da Lei e da Justiça, acaba por as quebrar ocasionalmente, cedendo, nomeadamente, aos desejos da amante, com quem vai viver num relacionamento não oficial.

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