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terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Leituras interpretativas de Frei Luís de Sousa


1. Panorâmica de uma recepção interpretativa

            Empenhado política e culturalmente num processo de renovação do teatro nacional, com Um Auto de Gil Vicente (1838), Almeida Garrett tinha fundado o teatro português moderno, ao gosto da nova estética para o drama romântico. Cinco anos volvidos apresenta a sua obra-prima teatral: Frei Luís de Sousa.
            Várias datas significativas rodeiam a apresentação e representação desta obra:
· 1843, 6 de Maio: apresentando publicamente, pela primeira vez, a peça, Garrett lê uma Memória ao selecto auditório do Conservatório Real. Nessa ocasião, procede à primeira leitura do seu mais recente drama, apresentando explicações de natureza vária (sobre a génese da obra, o seu estilo, o género literário, etc.).

· 1843, 19 de Maio: Garrett faz nova leitura da peça, na intimidade da casa da sua amiga Maria Krus.

· 1843, 4 de Julho: em consequência da anterior leitura, o drama é apresentado, pela primeira vez, no pequeno teatro particular da Quinta do Pinheiro; nesta primeira representação, feita por actores amadores, o próprio Garrett desempenhou o papel de Telmo Pais.

· 1844: é publicada a 1.ª edição, em livro, da peça (Lisboa, Imprensa Nacional, cujo prefácio é datado de Dezembro de 1843)[1].

· 1847: dá-se a primeira representação da peça no modesto Teatro do Salitre, embora censurada, já que lhe fora amputada a última cena do Acto I, a fim de “evitar complicações diplomáticas”.

· 1850, 24 de Fevereiro: ocorre a representação da peça no teatro Nacional D. Maria II, instituição que Garrett ajudara a criar.

Entretanto, fazia-se uma hábil divulgação da peça na imprensa do tempo, com disfarçados auto-elogios do próprio autor e alguns ataques aos poderes de Costa Cabral que obstaculizavam a sua representação nos teatros do Salitre (1847) e de D. Maria II (1850).



2. Leituras críticas de Frei Luís de Sousa

2.1. Leitura histórico-genética

Uma das primeiras leituras críticas da peça relaciona-se com a indagação das suas fontes históricas e literárias, isto é: onde se inspirou o dramaturgo para conceber o enredo desta peça? Que relações tem a obra de ficção teatral com a realidade histórica? Que obras terá lido para se informar sobre o assunto?
De facto, Garrett inspirou-se num tema nacional, numa figura histórica para compor o seu drama. Ao dramatizar a vida de Manuel de Sousa Coutinho, o dominicano Frei Luís de Sousa, insigne historiador e prosador seiscentista, Garrett combina habilmente informação histórica e ficção. Esta recriação estava prescrita, aliás, pela teorização do drama romântico.
Na Memória ao Conservatório Real, o próprio Garrett enumerou as fontes que o influenciaram à escrita da obra, desde a representação da “comédia famosa” do teatro ambulante, na Póvoa de Varzim, até às fontes histórico-literárias mais ou menos recentes. Na livre composição da sua ficção dramática, aproveitava o essencial de uma fábula trágica, mas introduzia-lhe alterações justificáveis pela economia dramática e atmosfera romântica. Não podendo ser escravo da cronologia, para Garrett, a verdade dramática implicava uma consciente alteração da verdade histórica[2].
Além das influências que Garrett confessa, há outras igualmente importantes que ele conhecia, mas não menciona: 1.ª) o romance em prosa Manuel de Sousa Coutinho, de Paulo Midose, publicado n’O Panorama, em 1842; 2.ª) a comovente lenda de Frei Luís de Sousa, narrativa poética em rima oitava, do Romanceiro de Inácio Pizarro de Morais Sarmento.


2.2. Leitura biográfico-psicológica: a ficcionalização de um caso pessoal

Esta perspectiva procura relacionar o conteúdo do drama garrettiano com as circunstâncias da vida do autor, em particular com o caso pessoal de Garrett.
Deste modo, esta interpretação valoriza o drama íntimo da figura de D. Madalena, que amou ilicitamente o segundo homem da sua vida, Manuel de Sousa Coutinho, estando ainda casada com o primeiro. É precisamente este facto que atormenta a consciência desta mulher, confessando-o dolorosamente ao velho Telmo Pais. O regresso inesperado, mas sempre receado, do primeiro marido (D. João de Portugal) desfaz a nova família, tornando ilegítima a filha desta relação (Maria de Noronha). Sobretudo para D. Madalena, ao crime do adultério de pensamento, sucedeu o castigo da desagregação familiar, da morte da filha e da morte para o mundo (solução religiosa, tipicamente romântica).
À luz de um biografismo algo primário, este drama íntimo configuraria a projecção romântica do caso pessoal do próprio dramaturgo. Separado da primeira esposa, Luísa Midosi, mas casado com ela aos olhos da Igreja, Almeida Garrett conhecera e mantivera uma relação com a jovem Adelaide Pastor, de quem tivera uma filha, Maria Adelaide. Porém, esta mulher morrera inesperadamente em 1841, deixando o escritor com uma filha ilegítima nos braços, face aos olhos da sociedade conservadora do tempo. Quer na vida quer na ficção dramática, o inocente fruto de uma relação pecaminosa seria objecto de marginalização social e condenação moral.
Por conseguinte, a aflitiva situação existencial, vivida nos dois anos que antecederam a primeira apresentação da peça, teria alimentado a imaginação do dramaturgo durante a composição da sua obra teatral, pretendendo com ela exorcizar publicamente a sua culpa. É esta a posição de Teófilo Braga: “E Maria, a débil criança, que morre de vergonha vendo que se separam os seus progenitores, porque ainda está vivo o marido de sua mãe, surgia-lhe na mente, diante de sua filhinha Maria Adelaide de pouco mais de dois anos, que lhe ficara desses atormentados amores de Adelaide Deville, extinta aos vinte e dois anos. Esse pressentimento realizou-se; porque D. Maria Adelaide na adolescência veio a saber que D. Luísa Midosi, esposa de seu pai, estava viva em Paris, vindo a confinar-se na vida doméstica com a vergonha do seu nascimento.”
Esta tese é aprofundada por Costa Pimpão, para quem a história trágica de Frei Luís de Sousa surgiria, deste modo, associada ao drama pessoal do próprio Garrett. Assim se compreenderia o sacrifício final da jovem e inocente Maria de Noronha. Com esta morte de dor e de vergonha antes da cerimónia religiosa, despertava-se o terror e a piedade, e expiava-se a culpa dos seus progenitores, através da noção cristã de pecado e respectivo remorso. Deste modo, a peça seria um apelo patético a favor das inocentes vítimas da moral social, bem diversa da moral cristã. Pensando na filha, Garrett teria procurado ganhar para Maria a piedosa adesão dos espectadores. E essa seria, portanto, a personagem central.
No entanto, são vários os perigos redutores e os inconvenientes desta perspectiva, até porque as semelhanças entre a fábula dramática e uma dada fase da vida do autor são dispensáveis à compreensão da obra.


2.3. Leitura religiosa: entre a angústia, a revolta e a esperança cristã

Intimamente relacionada com a interpretação precedente, está uma leitura religiosa e metafísica. A fé católica e os seus princípios morais regem as consciências e a actuação das personagens centrais do drama, família “honesta e temente a Deus” (Memória ao Conservatório Real). Não faltam os ícones e signos representativos da Divina Providência (a Palavra de Deus, a Cruz ou a Igreja), nem o caso dos condes de Vimioso (que também entraram para a vida conventual), várias vezes convocado com uma função pressagiadora do próprio desfecho do drama. A enformar a tragédia estão pressupostos religiosos característicos da vivência portuguesa de Seiscentos: a visão católica da indissolubilidade matrimonial, o escrúpulo de consciências exigentes atormentadas pelo remorso do pecado, mesmo só quando praticado em espírito.
Nesta abordagem, destacam-se três ideias. A primeira diz respeito à angustiante consciência do pecado por parte de D. Madalena, existente desde a primeira cena. Atormentada pelos fantasmas do passado e pela sua consciência, D. Madalena vive em constante e profunda ansiedade. Não só teme o regresso do primeiro marido, como se sente uma mulher angustiada por ter amado ilicitamente o homem que viria a ser o seu segundo esposo, estando ainda casada com o primeiro (consciência de adultério em pensamento). Quem também a atormenta é Telmo Pais, quer quando conversa com Maria sobre o passado e a esperança sebastianista, quer quando afronta a sua ama, ousando dizer-lhe que Maria era digna “De nascer em melhor estado” (I, 2). Mais tarde, é a própria Madalena que, na cena anterior à aparição do Romeiro, confessa a Frei Jorge a razão da sua infelicidade que a sua consciência de cristã se encarrega de lhe lembrar.
A segunda ideia é a da desafiadora revolta de Maria nos instantes que precedem a sua morte por tuberculose. Ela irrompe pela Igreja de S. Paulo quando os seus pais se preparam para tomar o hábito, morrendo para o mundo e abraçando a mortalha da vida religiosa e os novos nomes (Frei Luís de Sousa e Sóror Madalena). Não a prepararam para tão duro golpe, nem lhe perguntaram a opinião; apenas a confrontaram com aquele violento abandono. Tenta ainda demovê-los de tão cruel resolução: “Esperai: aqui não morre ninguém sem mim. Que quereis fazer? Que cerimónias são estas?” (III, 11).
É neste contexto que surge a invectiva de Maria contra a falta de humanidade de um Deus justiceiro e vingador que assim lhe rouba os pais: “Que Deus é esse que está nesse altar e quer roubar o pai e a mãe a sua filha?” (Para os circunstantes.) Vós quem sois, espectros fatais?... Quereis-mos tirar dos meus braços? Esta é a minha mãe, este é o meu pai. Que me importa a mim com o outro?” (III, 11). O dramaturgo suscita assim a piedade para a única vítima inocente. As razões e os valores religiosos, sobretudo a indissolubilidade do casamento (ordem divina), vencem as razões do coração e o fruto de uma união apaixonada (plano humano).
Por último, cabe mencionar a resolução do casal (solução religiosa), tomada decididamente por Manuel de Sousa e aceite por D. Madalena. Acolhendo resignadamente os insondáveis desígnios de Deus, os dois decidem entregar-se à divina Providência. Recordando à esposa o caso dos condes de Vimioso, o marido é levado a reconhecer que a única solução (romântica) do drama familiar reside na “sepultura de um claustro”.
O mesmo sentimento de revolta de Maria fora momentaneamente partilhado pelo seu pai. Com efeito, no início do derradeiro acto, aparece-nos um Manuel de Sousa profundamente transtornado pela dor, invocando Deus na sua desgraça, dominado apenas por um doloroso sentimento: a perdição da sua filha no “abismo da vergonha”, vítima inocente do drama familiar. Recebe, então, os conselhos de resignação e acatamento dos desígnios da divina Providência, por parte de Frei Jorge, que lhe recomenda o abandono do mundo: “E Deus há-de levar em conta essas amarguras. Já que te não pode apartar o cálix dos beiços, o que tu padeces há-de ser descontado nela, há-de resgatar a culpa”. Deus velaria paternalmente pelo seu pobre anjo: “Deus, Deus será o pai de tua filha” (III, 1). Fora, aliás, a própria mãe, momentos antes da cerimónia religiosa, que a oferecera a Deus como uma espécie de cordeiro imolado para expiar o seu próprio pecado. A filha desonrada e perdida tinha sido também o motivo da explosão de dor perante a anagnórise incompleta (II, 13).
Depois da interrupção da cerimónia religiosa por Maria, a peça termina com um sentimento misto de resignação e esperança cristãs: ser transitório, o homem confia plenamente a sua existência na misericordiosa mão de Deus. Todos rezam pela alma daquele anjo inocente que acaba de falecer, comungando do sentimento expresso pelo celebrante dominicano: “Meus irmãos, Deus aflige neste mundo àqueles que ama. A coroa de glória não se dá senão no Céu” (III, 12). Ao pecado do adultério de pensamento e à ilicitude da relação matrimonial, impõe-se a solução religiosa, como forma de repor a desejada ordem moral – ao crime sucede a expiação, através da Cruz redentora. Consuma-se, deste modo, a anunciada catástrofe do “duplo e tremendo suicídio” (Memória ao Conservatório Real): suicídio moral dos esposos e morte física da vítima filha.


2.4. Leitura genológica: a discussão do género

O Frei Luís de Sousa é um drama romântico ou a renovação da tragédia antiga? A resposta é adiantada pelo próprio Garrett: drama de índole trágica (hibridismo genológico).
Por um lado, Frei Luís de Sousa não respeita todos os cânones poético-retóricos da tragédia clássica (assunto antigo, uso do verso ou a divisão em cinco actos), sem deixar de ser uma “verdadeira tragédia”. Embora optando por assunto português e relativamente moderno, a fábula é determinada por leis superiores (religião e moral social), personagens de perfil trágico. O leitor/espectador é ainda confrontado com a relativa observação da lei das três unidades (acção, espaço e tempo). Por último, mencione-se o facto de o coro da tragédia clássica ser desempenhado ora por Telmo, ora por Frei Jorge. Por outro, inspirando-se em temática nacional e em circunstâncias biográficas (ingredientes do drama moderno), a obra também não observa toda a moderna estética do drama romântico, o que leva Garrett a observar: “Só peço que a não julguem pelas leis que regem, ou vedem reger, essa composição de forma e índole nova; porque a minha, se na forma desmerece da categoria, pela índole há-de ficar pertencendo sempre ao antigo género trágico”.
A não observância da rígida lei das três unidades da tragédia antiga é compensada pelo aproveitamento de três procedimentos técnico-compositivos:
a) a estrutura interna:
‑ exposição do conflito (primeiras cenas do acto I);
‑ adensamento e clímax dramáticos (até ao final do acto II);
‑ desenlace trágico (morte simbólica dos pais – profissão religiosa – e morte física de Maria).
b) a concentração dramática:
‑ da acção que, da exposição inicial do conflito, caminha inexoravelmente para o adensamento trágico e anagnórise gradual, até ao desenlace final;
‑ do tempo, que se vai chegando gradualmente, até ao dia fatal de 4 de Agosto de 1599, vinte e um anos depois da batalha de Alcácer Quibir;
‑ do espaço, que se vai afunilando gradualmente até à austeridade do palácio de D. João de Portugal e do retrato, e depois da capela onde decorre a celebração religiosa final na sóbria igreja de S. Domingos;
c) o estilo e a arte do diálogo: o estilo da peça caracteriza-se pela sobriedade lexical e pela exploração de determinados recursos reveladores dos estados emocionais das personagens (alusões, exclamações, reticências, interrogações, etc.); por outro lado, Garrett adequa o estilo ao momento, perfil e ideologia de cada personagem – nervoso e angustiado em D. Madalena; emocionado e inquiridor em Maria; respeitoso e digno em Telmo; nobre e decidido em Manuel de Sousa.
Além disso, os dois primeiros actos são de índole mais trágica, enquanto que o terceiro, sobretudo com a melodramática morte de Maria, é mais sombrio e patético. Nos dois primeiros, sobressai um clima crescente de medo, em que uma família é ameaçada pelo pecado e ensombrada pela figura do ausente/presente D. João de Portugal, encarnação de um Destino fatal; no terceiro, mais declamatório, é o cristianismo romântico que impõe a morte de Maria, como uma espécie de expiação.
Por conseguinte, podemos concluir que o Frei Luís de Sousa é formalmente um drama romântico, servido por um enredo nacional de fundo trágico.


2.5. Leitura político-sociológica: relações especulares

Tão importante como o tempo da intriga recriado pela peça (finais do séc. XVI e início do séc. XVII) é a época da escrita (década de 1840). Lida à luz do contexto em que a obra foi escrita, apresentada e publicada, a peça configurar-se-ia como uma censura mais ou menos velada e simbólica da situação político-social portuguesa, das “violências palatino-cabralistas”, vividas sob o governo conservador e autoritário de Costa Cabral.
Assim sendo, não surpreende que a censura cabralista persiga a obra, amputando-lhe os actos ou falas de bravura revolucionária diante da tirania castelhana (incêndio do palácio de Manuel de Sousa Coutinho), argumentando com as consequências para as relações diplomáticas entre os dois estados peninsulares. Aliás, terão sido as ideias políticas mais revolucionárias de Garrett que, exonerado dos cargos políticos ligados directamente à reforma do teatro português, impediram, durante algum tempo, a representação do Frei Luís de Sousa.
Almeida Garrett terá, assim, explorado a similitude entre as duas épocas históricas: o moderno autoritarismo cabralista (do séc. XIX), sob a aparência de um regime liberalista, assemelha-se à despótica e opressora ocupação castelhana de finais do séc. XVI. Neste sentido, a obra não deixa de ser uma crítica à política vigente, ressaltando a revolta e sublevação de um homem (Manuel de Sousa) contra a tirania de um regime imposto e em prol do elevado valor da liberdade e da independência ideológica. O acto de Manuel de Sousa deve ser interpretado como um significativo acto de vontade por parte de um homem que preza a liberdade contra todas as formas de tirania.


2.6. Leitura psicocrítica e imagética: o conflito e a psicologia profunda

Segundo esta leitura, com a peça estaria em causa a dualidade do Homem, no seu conflito entre o ser e o parecer, entre o Eu profundo e o Eu de superfície.
António José Saraiva sustenta que Telmo, verdadeira personagem central do drama, simboliza a alma profunda e fragmentada do autor, no seu conflito de fidelidades (o culto sebástico e a crença no regresso de D. João, a par da profunda afeição por Maria), de impossível harmonização.
O dramatismo intensifica-se quando Telmo se consciencializa da passagem do tempo, dando-se conta de que a antiga admiração por D. João, que vive apenas na sua “lembrança”, é substituída por uma afeição bem real e viva por Maria. Mudam-se os tempos e as circunstâncias, mudam os corações, e a convivência de sentimentos torna-se impossível. Perante este dilema interior, o velho aio acaba por se transformar no anunciador da “morte do impostor” (D. João). Essa morte do passado é-lhe solicitada expressamente pelo antigo amo, mas esse pedido estava já entranhado no perturbado coração de Telmo.
Resumidamente, o Frei Luís de Sousa pode ser visto como um drama do Eu. Telmo exprimiria “a dor de não ser constante e inteiro no amor, a mágoa, a que se mistura algo de remorso, de viver repartido entre duas afeições inconciliáveis, dois compromissos, uma para com o passado (no caso de Telmo, a fidelidade a D. João) e outro para com o presente (no caso de Telmo, a entranhada estima por Maria), que o leva a desejar que o antigo amo nunca mais volte”.
Mário Garcia visualiza em Telmo um conflito entre o Eu social, de aparências e disfarces, e o Eu desvelado, profundo e verdadeiro. Manuel de Sousa, que incendeia heroicamente o seu palácio, impelido pela honra, representaria “o contributo para a regeneração espiritual de Garrett, através do sentido de paternidade”.
Para João Mendes, Garrett viveu um inquestionável drama da fidelidade entre um homem social, de aparências e máscaras, e um homem sensível, íntimo e real. Ora, esse conflito de fidelidade é projectado nas dramáticas figuras de D. Madalena e de Telmo, tendo sido esta última interpretada pelo dramaturgo na primeira representação. A saída para o conflito e divisão interior de Garrett residia no sacrifício de Manuel de Sousa: “Manuel de Sousa é o Garrett ideal, como ele desejaria ter sido e nunca foi, por falta de coragem”.
Segundo uma leitura histórico-psicológica, Manuel de Sousa simbolizaria a reabilitação de Almeida Garrett perante a sua filha Maria Adelaide e perante a sociedade. Manuel de Sousa simbolizaria o Garrett romântico (tese), enquanto o Carlos das Viagens na Minha Terra configuraria o homem devorado pelo amor-paixão (antítese), encontrando-se a síntese n’ As Folhas Caídas, entre Manuel de Sousa e Carlos. O incêndio da casa e o permanente estado febril de Maria remetem para a bivalência da imagem arquetípica do fogo: ora significando a auto-expiação de Manuel de Sousa e “confissão” de Garrett; ora a purificação do sangue, manifestada na febre da jovem Maria, fruto do pecado de uma relação extra-conjugal. O incêndio depurador da paixão prepararia, deste modo, o desfecho religioso do drama.


2.7. Leitura mítico-cultural: o Sebastianismo e o destino português

Para Garrett, desencantado com o rumo do país, ligado a um passado quinhentista, e vivendo à sombra de uma pesada memória, o Portugal do séc. XIX só teria futuro se se libertasse da nostalgia passadista.
As crenças no sebastianismo eram sinónimo de passadismo, de estéril paragem do tempo. Regressar ao passado é sinónimo de morte do presente e de sério comprometimento do futuro.
A crença sebástica é difundida por Telmo Pais. Amigo de Luís de Camões, ele acredita no regresso de D. João, que acompanhara o jovem rei D. Sebastião à nefasta batalha de Alcácer Quibir. Ao comunicar estas crenças à jovem e influenciável Maria, Telmo desperta gradualmente o terror em D. Madalena, logo a partir da cena II do acto I. Estas referências ao sebastianismo prosseguem ao longo de toda a obra, o que só serve para acentuar o desespero de Madalena.
Por outro lado, de acordo com a didascália que antecede o acto II, destacavam-se, no palácio de D. João, pela sua singular localização, os retratos de D. Sebastião, Camões e D. João de Portugal, que merecem a atenção de Maria.
Reactualizando comicamente o sebastianismo, Garrett concebe-o, no Frei Luís de Sousa, à luz da tradição sebástica, como o mito imperial que deu corpo à nostalgia de uma idade de ouro. Com a perda do jovem monarca, Portugal afunda-se numa época de inércia e de brumas, à espera de um refundador e heróico rei-salvador, sobretudo em momentos de profunda crise política.
Por conseguinte, nesta abordagem crítica, na peça de Garrett, mais do que personagens de um drama familiar, temos seres simbólicos, representativos do destino colectivo português, num dado momento da sua história. Neste contexto, uma última leitura situa-se ao nível mitológico, recuperando o significado dos temas da saudade e do sebastianismo. D. Sebastião seria, assim, a anunciada “maravilha fatal da nossa idade” (Camões) e dos tempos futuros.
Para Garrett, o sebastianismo constituía o mito da nossa decadência. Portugal renegava, por um mito, a realidade; morria para a história, apático e desfeito em sonho; envolvia-se, para entrar no sepulcro, na mortalha de uma esperança messiânica. O sebastianismo era o mito da nossa fraqueza e compensação, da nossa fuga da realidade; é um refúgio para a realidade dos acontecimentos; é uma afirmação de esperança nacionalista, de fé patriótica em épocas de profunda crise política, como a da perda da independência. Será isso que Garrett transmitiu na peça: um choro de aflições tristes, uma resignação heroicamente passiva, uma esperança vaga, etérea, na imaginação de uma rapariga tísica e no tresvario de um escudeiro sebastianista.
Maria de Lourdes Vieira considera que o mito do Encoberto (tratado desde o Bandarra até à Mensagem de Pessoa) é perspectivado, negativamente, como sinónimo de paragem no tempo, de irrealidade, de sacrifício do herói na catástrofe final. O regresso do (falso) D. Sebastião, na figura de D. João, implica a alteração do rumo da história e o aniquilamento. Por isso, diante do espelho do seu retrato, o representante do Portugal morto e sebástico se define como Ninguém. O Portugal do futuro não pode alimentar-se de estéreis utopias passadistas.
Podemos assim dizer que o incêndio do palácio de Manuel de Sousa, além de acto de patriotismo, simboliza a resoluta busca de uma nova ordem e novo espaço para uma família assombrada pelo passado, isto é, uma nação que vivia à sombra de mitos, sonhos ou utopias. O regresso ao velho palácio de D. João representa um anacrónico e impossível regresso ao trágico ao passado. A História não pode regredir e imobilizar-se num pretérito mítico. O Portugal moderno tem de, edipianamente, matar o velho pai para mudar o rumo da sua história, nem que para isso tenha que sacrificar a própria vida, como fez Manuel de Sousa.
Para Eduardo Lourenço, Frei Luís de Sousa será a representação da tragédia colectiva de um povo. O drama reflete sobre Portugal num momento em que ele se interroga pela boca de Garrett. É um país que vive um presente hipotecado, à sombra de um sentimento de saudade passadista e sebastianista. Neste sentido, é uma peça assombrada por dois fantasmas – um quase fantasma (D. João) e um fantasma mítico (D. Sebastião). O simbolismo alegórico que une os dois personagens está bem representado no nome do primeiro: o primeiro nome (D. João) remete-nos para alguns monarcas da História de Portugal; e no sobrenome (de Portugal) está cristalizado o próprio nome da Nação, num momento crucial da sua História. É preciso matar ou exorcizar o passado, para que Portugal possa ter futuro.
Deste modo, estaremos perante uma culpa metafísica, personificada em D. João, a figura que simboliza um Portugal sem presente, sonâmbulo e doente de sebastianismo. Nesta ordem de ideias, a regeneradora Maria representa o sacrifício necessário para exorcizar os fantasmas do passado e definir o futuro de Portugal. Só assim teria sentido o absurdo castigo-expiação de Maria, culpada de não ter culpa, que morre, romanticamente, de excesso e de vontade.
Esta problematização do modo de ser português será, portanto, feita a partir do duplo e simbólico espaço da casa-palácio e da igreja-convento. O drama de Garrett é fundamentalmente a teatralização de Portugal como povo que só já tem ser imaginário (ou mesmo fantasmático) – realidade indecisa, incerta do seu perfil e lugar na História, objecto de saudades impotentes ou pressentimentos trágicos.
Neste sentido, o conflito particular ou o drama humano e familiar da peça mais não é do que uma metáfora do nosso devir colectivo: “Quem responde pela boca de D. João, definindo-se como ninguém, não é um mero marido ressuscitado fora de estação, é a própria Pátria. O único gesto redentor do seu herói (Manuel de Sousa) é deitar fogo ao palácio e enterrar-se fora do mundo, da História.
Por conseguinte, pela boca do Romeiro, fantasma de um outro fantasma (D. Sebastião), é Portugal inteiro que se auto-interroga, olhando no espelho da sua identidade e não se encontrando. O velho Portugal já não se revê na nova ordem estabelecida, nem é facilmente reconhecido pelos seus mais fiéis seguidores (Telmo Pais). Portugal desapareceu em Alcácer Quibir, perdeu irremediavelmente a sua identidade, até à sua refundação em 1640. O Portugal heróico, aventureiro e cavaleiresco estava definitivamente defunto. Dessa morte simbólica, que implicou o sacrifício de vidas mais ou menos inocentes nascia um Portugal novo.



Sintetizando as várias perspectivas críticas:


Interpretações


Ideias nucleares


1. Leitura histórico-ge-nética


. Fontes histórico-literárias da peça, reconhecidas pelo autor ou omitidas;
. Recriação ficcional de assunto histórico: tradição + imaginação dramática.



2. Leitura biográfico-psicológica


. Encenação do caso pessoal de Garrett, com base nas significativas coincidências entre a situação biográfica e o enredo dramático da obra.



3. Leitura religiosa e metafísica


. Da consciência do pecado (D. Madalena), à desafiadora revolta (Maria) e ao sacrifício à esperança cristã (tomada de hábito do casal).



4. Leitura genológica e arquitextual


. Classificação quanto ao género: drama ou tragédia?
. Tragédia de destino, de assunto moderno; drama romântico, de fundo trágico.



5. Leitura político-soci-ológica


. Homologias entre a decadência quinhentista e o autoritarismo agiota cabralista.
. Crítica velada ao rumo da política portuguesa sob o governo de Costa Cabral.



6. Leitura psicocrítica e imagética


. Drama interior de Telmo e D. Madalena, divididos entre duas fidelidades.
. Numa imagética do fogo, Manuel de Sousa Coutinho seria o Garrett ideal.



7. Leitura mítico-cultural


. Enterro simbólico do sebastianismo no seu fantasmático representante (D. João).
. Interrogação psicanalítica de Portugal: a fragilidade ôntica da pátria portuguesa.



Bibliografia:
. http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/zips/candid12.rtf


[1] Nesta altura, fez-se uma edição de quinze exemplares da peça. Existe um fac-símile do Frei Luís de Sousa da edição da Quinta do Pinheiro, apresentada por M.ª Leonor Machado de Sousa, Lisboa, Inst. da Biblioteca Nacional e do Livro, 1993. Em bom rigor, esta primeira publicação constitui a verdadeira editio princeps da peça garrettiana.
[2] Entre as alterações da verdade factual, salientam-se: 1.ª) D. Madalena esperou 7 anos por notícias do primeiro marido a que, somada a idade de Maria, perfaz 21 anos, quando historicamente terão sido 17 ou 18 anos; 2.ª) D. Madalena aparece em cena atemorizada com a marginalização que se abaterá sobre a sua única filha, do seu segundo casamento com Manuel de Sousa, embora a realidade histórica refira a existência de mais três filhas do primeiro casamento; 3.ª) Manuel de Sousa incendeia patrioticamente o seu palácio de Almada, quando, de facto, não terá sido por um acto de heroísmo, nem ele se terá notabilizado por reacções anti-castelhanas, antes pelo contrário; 4.ª) por fim, a solução religiosa fica a dever-se à inesperada aparição de D. João, quando, historicamente, a opção pela vida conventual por parte de Manuel de Sousa e da esposa não tem nada a ver com essa lenda.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Génese de 'Os Lusíadas'


            Publicada em 1572, numa altura em que o império português mostrava já sinais claros de crise e ruína próxima, a obra canta a Glória do povo português (“o peito ilustre lusitano”), com incidência no seu período de maior fulgor – a época dos Descobrimentos, representada pela viagem de Vasco da Gama de 1498 – descoberta do caminho marítimo para a Índia.
            Sendo a epopeia considerada a expressão mais alta da literatura, a necessidade do surgimento de uma epopeia portuguesa que glorificasse a gesta heroica do povo lusitano vinha a ser sentida e reclamada desde há muito. A partir do século XV, tinham começado a surgir alguns poemas de conteúdo histórico, mas sem relevância literária. No século XVI, autores como Garcia de Resende, no prólogo do Cancioneiro Geral, João de Barros, Diogo de Teive, Angelo Poliziano e, sobretudo, António Ferreira. Começaram a alertar para a necessidade de se cultivar o género épico, estimulando outros poetas à criação da epopeia portuguesa.
            E Portugal tinha, de facto, todas as condições para a criação de um grande poema épico. Com efeito, as andanças pelo mundo, as descobertas e o heroísmo dos navegantes lusos eram comparáveis às viagens marítimas descritas na Odisseia e na Eneida. Por outro lado, a empresa dos Descobrimentos, para além do interesse nacional, revestia-se de carácter universal. Além disso, o orgulho nacional estimulava a celebração dos feitos portugueses e à corte interessava a apresentação da política de expansão ultramarina como forma de dilatação da fé cristã, na tentativa de contrariar a ideia de que a verdadeira motivação dessa política fosse meramente comercial.
            Em suma, todos tinham consciência clara do caráter épico da história nacional e de que a empresa requeria alguém de génio invulgar. E esse génio será Camões, que responderá ao apelo e realizará a empresa: dotar o mundo moderno com uma réplica dos poemas épicos antigos; conferir aos feitos dos portugueses uma categoria nacional; enobrecer a língua com a realização nela do género literário considerado máximo. O seu génio fá-lo-á adotando com originalidade a estrutura clássica da epopeia a narração da viagem de Vasco da Gama, à volta da qual se inseriu a História de Portugal. Note-se que alguns dos feitos extraordinários dos portugueses ocorreram durante a juventude do escritor, o qual também andou pela Índia (a partir de 1553) e deambulou pelo Oriente durante muitos anos.

            Observemos agora o contexto de produção. A obra demorou, aproximadamente, vinte anos a ser elaborada. Esse espaço de tempo coincidiu com o momento posterior ao auge da expansão, a saber:
. após a fase das descobertas da Índia, do Extremo Oriente e da conquista de Malaca;
. após a fase da consolidação do Império, que ocorre no tempo dos dois primeiros vice-reis da Índia – D. Francisco de Almeida (1505-1509) e Afonso de Albuquerque (1509-1515).
            Em meados do século XVI, ocorre uma série de acontecimentos nefastos para Portugal:
. o abandono de algumas praças do Norte de África que exigiam um enorme esforço financeiro (Sanfim e Azamor em 1541; Arzila em 1549; Alcácer Quibir em 1550) – conservam-se apenas Ceuta, Tânger e Mazagão;
. o ponto anterior enfatiza as dificuldades sentidas pelo reino português para manter um império vasto e disseminado, possuindo o reino um diminuto número de habitantes;
. a morte, em 1554, do princípio D. João, herdeiro da coroa e filho único sobrevivente dos dez que D. João III tivera;
. o nascimento de D. Sebastião, em 1554, em quem são concentradas todas as esperanças da sobrevivência da dinastia;
. a morte, em 1555, do infante D. Luís, irmão do rei, figura culta e estimada que era vista como solução para a sucessão ao trono, morte essa que agravou o sentimento de insegurança nacional quanto ao futuro da independência nacional;
. a morte do rei D. João III em 1557, que deu origem à regência da sua viúva, dada a tenra idade de D. Sebastião;
. a sobreposição da exploração nacional e dos interesses económicos ao espírito de serviço e de dedicação à pátria.

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Análise das Cenas 7 e 8 do Ato III de Frei Luís de Sousa


● D. Madalena, acompanhada de Frei Jorge, deseja entrar no compartimento, pois ouviu vozes conversando dentro e, supondo que uma delas é a de Manuel de Sousa, deseja falar com ele. A sua entrada em cena mostra-nos uma mulher «desgrenhada e fora de si, procurando com os olhos todos os recantos da casa», sinal de que quer desesperadamente encontrar Manuel de Sousa e julga que a estão a impedir. D. Madalena “vive” estas duas cenas desesperada e completamente dominada pelos sentimentos, ao gosto romântico, sem controlo sobre as suas emoções, como se pode comprovar através da didascália “(Entrando desgrenhada e fora de si, procurando, com os olhos, todos os recantos da casa)”.


● D. Madalena deseja falar com ele por um motivo claro: tentar remediar a situação, impedir a tomada de hábito. Para tal, argumenta que talvez estejam a agir de forma precipitada, ao acreditarem nas palavras de “um romeiro, um vagabundo… um homem enfim que ninguém conhece”, mas Manuel de Sousa, tratando-a novamente pelo primeiro nome, contraria-a, jurando-lhe que o amor de ambos é impossível. Ele mostra-se decidido a aceitar o seu destino, chamando a atenção de D. Madalena, na cena 8, para a impossibilidade de o mudarem.


● Esta postura diferente de Manuel e Madalena é facilmente justificável: ele conhece toda a verdade, ou seja, que o Romeiro é D. João de Portugal, ao contrário dela, que ainda ignora este facto, e vê a entrada no convento como a única solução digna para a situação. E critica mesmo a esposa e, num tom ríspido e decidido, despede-se dela.


● O tom inicial com que Manuel de Sousa se dirige à esposa é ríspido e frio, tratando-a, de forma formal, por “senhora”, o que a deixa magoada: “Oh, que ar, que tom, que modo esse com que me falas.”. Comovido (“enternecendo-se”), Manuel trata-a então pelo nome próprio, mas logo cai em si e retoma a formalidade e rispidez iniciais.
De facto, ele dirige-se à esposa usando diferentes formas de tratamento:
. formal (“senhora”): atitude de distanciamento;

. familiar (“querida”): atitude de proximidade, de intimidade.


● Esta oscilação das formas de tratamento traduz o contraste entre o amor que Manuel de Sousa sente por D. Madalena (que lhe corresponde) e a dor de não o poder cultivar e marca a despedida emotiva entre ambos.


● Na parte final da cena 7, Telmo procura falar à parte com Frei Jorge (“Tenho que vos dizer, ouvi.”) e os dois “Conversam ambos à parte.”. Embora não saibamos as palavras que trocaram entre si, é fácil deduzir que o velho aio estará a dar seguimento à solicitação de D. João, tentando convencer o frade de que o Romeiro é um impostor. A finalidade é evitar a destruição da família, nomeadamente de Maria.


● Ao constatar que a sua tentativa fracassou, procura fazer o mesmo junto de D. Madalena, mas sem sucesso, visto que Frei Jorge o impede de falar com ela: “Telmo sai com repugnância, e rodeando para ver se chega ao pé de Madalena. Jorge, que o percebe, faz-lhe um sinal imperioso; ele recua, e finalmente se retira pelo fundo.”.


● Por que razão age Frei Jorge assim?
Contrariamente a D. Madalena, o frade sabe que o Romeiro é D. João de Portugal, por isso, enquanto membro do clero, assume a defesa da verdade dos factos, impedindo Telmo de mentir para salvar Maria. Ele não pode aceitar uma mensagem que iria contra as leis de Deus. Na sua perspetiva de religioso, a única solução para a situação será o ingresso na vida monástica. Pelo contrário, se tivesse aceitado a proposta de D. João via Telmo, estaria a ser conivente com uma relação adúltera e bígama. Estando D. João vivo, ali ou na Palestina, o segundo casamento de D. Madalena com Manuel de Sousa era nulo. Eles viviam em pecado e Maria era uma filha ilegítima. Esta situação, agora que a verdade é conhecida, não pode continuar.


● A cena 8, na sequência da anterior, confirma as atitudes contrastantes de Manuel e de D. Madalena:
- Madalena: crê que é possível recuperar a sua família e que a mensagem do Romeiro não passou de um embuste (cena 7);
- Manuel: não vê salvação e, decidido, enfrenta a vida religiosa.


● As didascálias ajudam a evidenciar o estado de espírito e a postura de Manuel de Sousa [“(Caindo em si e gravemente)”, “(Tomando os hábitos de cima do banco.)”, “(Vai para a abraçar e recua)”, “(Foge precipitadamente pela porta da esquerda)”]: racional e determinado, pega nos hábitos que vai usar juntamente com D. Madalena, recusa abraçá-la e sai rapidamente para evitar mais sofrimento.


● A fala final de Manuel de Sousa da cena 8 está prenhe de expressões que associam a decisão tomada a uma morte simbólica: “Para nós já não há senão estas mortalhas (tomando os hábitos de cima da banca), e a sepultura de um claustro.”. A referência aos condes de Vimioso é significativa neste contexto.

domingo, 13 de novembro de 2011

Contexto histórico e cultural do Barroco

1. O desastre de Alcácer Quibir

         Conta-nos António Sérgio, na Breve Interpretação da História de Portugal, que o «infante D. João, filho de D. João III, morreu em 1554, três anos antes do monarca. Seu filho póstumo, D. Sebastião (o Desejado), sucedeu no trono a D. João III, sob a regência da avó, D. Catarina, que em 1562 se retirou para Espanha, deixando na regência o cardeal D. Henrique. O reizito, em 1568, foi declarado maior pelas Cortes. Este rapazola tresloucado foi convencido por alguns fanáticos a fazer-se paladino da fé católica contra o Protestante e o Maometano. Por isso apercebeu uma armada que fosse em auxílio de Carlos IX quando se preparou, com o cardeal Alexandrino, a matança de S. Bartolomeu; e por isso se abalançou a conquistar Marrocos, contra o conselho sensato dos mais experimentados capitães. Reuniu em Lisboa um exército aparatoso, que acampou em tendas de seda, vestindo luxuosamente, bebendo, cantando, "fazendo desonestidades". Chegado à África, cumulou erro sobre erro, com desespero dos capitães, que pensaram em prender o tonto. No dia da batalha (Alcácer Quibir, 4 de agosto de 1578), mandou que ninguém se mexesse sem ordem sua, mas esqueceu-se de dar a ordem. O exército inimigo, formado em crescente, envolveu a pequena hoste, e submergiu-a. Foi um desastre completo, que, sabido no reino, o aniquilou de espanto e dor» (Sérgio, 1981: 103-104).
            Como D. Sebastião morre sem deixar herdeiro, sobe ao trono o cardeal D. Henrique, seu tio, «caquético de 66 anos, alimentado aos peitos de uma ama; sete pretendentes à sucessão, entre os quais Filipe II de Castela, que tinha a vantagem decisiva da força: a força do ferro e a força do ouro, gasto habilidosamente pelo seu enviado Cristóvão de Moura. Opôs-se-lhe, antes, a eloquência patriótica de Febo Moniz; depois, a audácia de D. António, prior do Crato, proclamado rei em Santarém. O duque de Alba invadiu Portugal pelo Alentejo, ao passo que a esquadra castelhana se dirigia para Lisboa; e perto da cidade, em Alcântara, varreu facilimamente a tropa de D. António. Este fugiu para a França, e Filipe II foi proclamado rei (Agosto de 1580).» (Ibidem)


2. A hegemonia espanhola
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          1580 é muito mais um ponto de chegada do que um ponto de partida: não será excessivo dizer-se que consagra dinasticamente a viragem de estrutura de meados do século. Então, com efeito, os Portugueses abandonaram vários dos presídios-portos marroquinos, o ouro da Mina deixou de dar os lucros que até aí dava, e acentuou-se a recuperação dos tratos levantinos, concorrentes da rota do Cabo; em contrapartida, lançara-se a ascensão do açúcar de S. Tomé e do Brasil, indo este dominar o mercado mundial durante um século. Deste modo, o império, conquanto permaneça oriental, por um lado, torna-se sul-atlântico, por outro, Angola serve, a partir do último quartel de Quinhentos, de reservatório de escravos para as fazendas e engenhos de além-Atlântico. Enquanto o afluxo em massa de prata mexicano-peruana a Sevilha favorece o renovo mediterrâneo e firma a hegemonia espanhola  -  a prata da Europa Central e Oriental entra em declínio  -, a rota do Cabo absorve quantidades crescentes desse metal precioso, quer para a compra da pimenta quer para o comércio da China: o mundo vai ser inundado pelos reales. Assim, a ligação de Lisboa com Antuérpia enfraquece, do mesmo passo que se estreitam os laços com os empórios andaluzes e outros mercados na própria Península.


3. O domínio filipino e as desilusões da nobreza
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          Nos primeiros quarenta anos do domínio filipino, a união das coroas permitiu vencer a crise financeira em que Alcácer Quibir e a conjuntura de então lançara a nobreza portuguesa, pois os Estados reforçaram-se mutuamente quanto a segurança e finanças públicas. Além disso, essa união abria aos fidalgos e a cavaleiros portugueses perspectivas de ascensão e melhoria de estado graças aos campos de serviço em grande parte da Europa - e muitos não deixaram de as aproveitar, mesmo se para final de certo modo compulsoriamente (pretendia Olivares afastá-los da mãe-pátria). Continuarão vários deles, consumado 1640, a servir o monarca espanhol, e mesmo para Espanha fugirão ainda outros nessa altura. Por outro lado, todavia, o prosseguimento do regime filipino não pôde deixar de trazer amargas desilusões a vários nobres: a corte nunca chegou a estanciar duradouramente em Lisboa, e portanto havia que ir a Madrid requerer mercês, buscar desagravos; apoiar pretensões; a ausência da corte régia escamoteava uma boa parte da existência fidalga e cavalheiresca, não permitia participar de perto na condução dos negócios públicos, anulava ensejos de convívio e ostentação, inibia actividades de criação literária, teatral e artística. Como mostrou Oliveira França, a nobreza ruraliza-se, torna-se provincial - e provinciana -, é a época das «cortes na aldeia» (Rodrigues Lobo), e a própria moda da poesia bucólica reflecte e exprime tal configuração geográfico-social. A corte dos Braganças é em Vila Viçosa, nem sequer numa cidade de província. Acanhados em horizontes campestres, fidalgos e cavaleiros sentem-se frustrados, quando muito, rememoram através da poesia épica também em voga as passadas glórias. Para muitos não se rasgam perspectivas, é a frustração e o viver moroso, ou a inquietação insatisfeita mas sem pontos de mira; quantos não se sentem falhados.
          Mentalidade barroca, que anseia pelo fausto e pela exibição, nos círculos nobres como nos religiosos - uma religião de exuberância decorativa, aquietando-se nos ritos de subterrâneas inquietações, satisfazendo-se na exterioridade de uma insatisfeita interioridade. Religião em que a milícia de cruzada - sentido primitivo da companhia - cedeu o passo à sociedade organizada política e economicamente, transformada em potência que trafica na prata do Japão e seda da China e domina vastas áreas da América do Sul, Estado dentro do estado. Ao mesmo tempo, todas as ordens religiosas multiplicam os seus institutos e enriquecem os seus bens, o peso da organização eclesiástica sobre a sociedade civil é cada vez maior.
        Vitorino Magalhães Godinho, Ensaios



4. A repressão do Estado e da Inquisição
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          Dominante, dentro da Península, o grupo senhorial monopoliza inteiramente o Estado, de que faz parte, coisa sua. O rei abandona o seu papel tradicional de árbitro entre as diversas forças nacionais. O Estado torna-se absorvente, destrói as minorias, sejam elas os lavradores vilãos e livres, os hebreus ou os «mouriscos», impõe uma vigorosa disciplina ideológica, esmagando todas as dissidências e oposições e regressando à ideologia tradicional da grande época do feudalismo. Quando estala a grande revolução da Reforma, os dois impérios da Espanha alinham decididamente, passadas as primeiras hesitações, ao lado dos que preconizam a restauração da Igreja medieval, sem compromisso com os reformados. Com o agravamento das suas dificuldades aumenta inevitavelmente a repressão dos grupos dissidentes cujas raízes, todavia, mergulhando nas novas condições económicas, não podiam ser destruídas. (...)
          Tudo quanto constituía apanágio do Humanismo, a humanização da religião, a divulgação directa da palavra evangélica, a reabilitação da natureza, a crítica anticlerical, foi reprimido pela censura inquisitorial portuguesa.
António José Saraiva, A Inquisição Portuguesa



5. A decadência
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          O século XVII foi uma etapa decisiva no caminho do pensamento e da ciência moderna. É o século de Galileu, de Descartes, de Pascal, de Espinosa, de Bacon, de Newton. Foi também um tempo de esplendor para as letras e para as artes; grandes obras-primas foram pintadas ou escritas entre 1600 e 1700: quadros de Rembrandt, Van Dyck, Velázquez, teatro de Shakespeare, Cervantes, Corneille, Molière, Racine. A esse período excepcionalmente criador e brilhante corresponde em Portugal uma época apagada.
          Dentre os maiores nomes europeus, alguns têm relação com Portugal. Espinosa era filho de um judeu português que a Inquisição obrigou a fugir para a Holanda; Velázquez era filho de um homem do Porto que teve de ir procurar trabalho em Sevilha. São meras casualidades, mas que apontam duas das causas fundamentais da decadência: a repressão inquisitorial, com o isolamento e paralisação das iniciativas culturais que provocou, e a crise económica e política que culminou com a perda da independência em 1580 e que conduziu a uma situação de depressão e de desânimo incompatível com o brilho das letras e das artes.


6. O ensino dos Jesuítas
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          A acção dos Jesuítas foi fundamental durante todo o século XVI português. Foram eles que promoveram o ensino e que fomentaram quase toda a actividade cultural quem, apesar de tudo, se verificou. É um dos muitos aspectos que estabelecem contraste entre a obra da Companhia de Jesus e a da Inquisição: esta quis impedir a cultura, aquela tentou fomentá-la. Isso resultava do próprio fim para que tinha sido criada: para combater as ideias da Reforma. Em todos os países em que se instalaram, os Jesuítas chamaram a si o ensino e exerceram-no com grande eficiência. Em Portugal funcionaram colégios em Lisboa (o actual Hospital de S. José funciona no edifício do Colégio de Santo Antão; para esquecer isso, o Marquês de Pombal mudou o nome e escolheu o do rei), Évora, Braga, Bragança, Angra, Funchal, Faro, Portalegre, Ponta Delgada, Santarém, Porto, Elvas, Horta, Setúbal, Portimão, Beja, Pernes, Vila Viçosa, e houve vários outros no Brasil, África e Índia. Foi essa a primeira cobertura geral do território por uma organização de ensino de nível secundário. Os livros de estudo foram cuidadosamente preparados; os mais bem organizados compêndios didáticos até hoje produzidos em Portugal são os grossos in-fólios do Curso Conimbricense. Reunia-se aí todo o saber ortodoxo, isto é, o saber que no ambiente da Contra-Reforma se considerava harmónico com as verdades da fé. Esses livros, redigidos em latim, foram a base do ensino até ao tempo de Pombal, que lhes proibiu o uso.


7. O patriotismo e a História

          Não existia apenas a censura religiosa da Inquisição, mas também a censura política do governo espanhol, que reprimia tudo o que pudesse representar expressão do sentimento patriótico. O patriotismo refugiou-se, então, entre a gente culta, nas letras e, em especial, na história. Uma das formas menos arriscadas de ser patriota era ler Os Lusíadas; o grande poema foi a obra mais lida em todo o século XVII; entre 1580 e 1640 editaram-se vinte e quatro vezes as obras de Camões. O passado servia de compensação ao presente, e verificou-se uma espécie de êxodo para a história. Sem excepção, todos os escritores procuraram temas para a prosa nos tempos passados. O mais importante monumento que ficou desse gosto pela história foi a Monarquia Lusitana, constituída por oito partes, que foram publicadas ao longo de todo o século, entre 1597 e 1729. É a primeira grande História de Portugal, depois da Crónica Geral do Reino que Fernão Lopes compôs na primeira metade do século XV; as partes mais notáveis foram as escritas por Frei António Brandão, que tinha verdadeiro estofo de historiador e a quem se deve boa parte do que hoje se sabe dos primeiros reinados.


8. Templos, talha, azulejo

          As belas-artes foram pobres. A maior parte dos edifícios da  época foi construída pelos Jesuítas, o que já levou a falar-se num estilo jesuítico. O que não há dúvida é que o espírito da Companhia de Jesus marcou grandemente a arquitectura religiosa do século XVII em Portugal.
          A igreja é concebida como um grande auditório, uma enorme sala de aula. A lição é o sermão, e tudo se dispõe de forma que a figura do pregador seja vista e a sua voz ouvida de toda a parte. Desaparecem as colunas interiores, as grandes reentrâncias, e saliências, que, com o seu movimento e força, tinham marcado a arte do período anterior. As fachadas são lisas, altas, lógicas, e fazem pensar no rigor geométrico da dogmática, na proibição da fantasia, na disciplina vertical. O templo resulta assim de uma severidade fria e desinteressante. Mas essa austeridade não tarda a desaparecer sob a decoração impetuosa do azulejo e da talha, que desempenham nas artes uma função que faz lembrar a que o adagiário popular teve nas letras.
          A azulejeria e a talha são as grandes criações da arte portuguesa no século XVII. Aí não tivemos mestres estrangeiros; os ceramistas e entalhadores eram artistas do povo (de pouquíssimos se conservam os nomes) e a evolução desses géneros reflecte a cultura e o gosto populares com a sua devoção festiva e as reminiscências de arte oriental. Foi no génio popular que se encontrou a resposta para as novas condições da vida nacional; o azulejo substituiu nas paredes das igrejas e dos palácios as caras tapeçarias que dantes vinham da Flandres e da Holanda (as panos de rás) e cuja importação se tornara impossível por causa das guerras que os espanhóis ali travaram durante quase todo o século. Os especialistas falam em azulejos de «tipo tapete» e em «tapeçarias cerâmicas», designações bem significativas. A talha substituiu em grande parte a escultura em pedra (a imaginárias seiscentista é quase toda de madeira e a dos períodos anteriores quase toda de pedra) e substituiu também outros materiais muito caros: o ouro e a prata dourada. Muitos objectos de culto (relicários, sacrários, candelabros, castiçais, estantes de altar), anteriormente feitos de metal, passaram a ser feitos de madeira dourada e trabalhada por modo a parecer de metal. O material é barato e a produção destes ourives marceneiros atinge proporções enormes. O interior dos templos torna-se então magnífico e o ouro da talha, combinado com o azul do azulejo, consegue admiráveis efeitos decorativos. Por ser tão popular e tão português, o êxito desta decoração é imenso e duradouro. Prolonga-se por quase todo o século seguinte e, levado pelos emigrantes, enraíza no Brasil. A Baía é, hoje, a capital da talha portuguesa; em muitos casos, a madeira adoptada foi o castanho. No país do jacarandá, os entalhadores portugueses continuaram a recordar os soutos das suas aldeias.

José Hermano Saraiva, História Concisa de Portugal


9. O abismo entre a Nobreza e o Povo
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          O espetro da fome encontrava-se no horizonte visual da grande maioria dos homens de então e condicionava os aspectos fundamentais da vida seiscentista, nas suas faces social, política e cultural: o abismo entre as classes privilegiadas e o povo, a latente revolta popular que se exacerbava em momentos de aperto (fomes e preços elevados), não tanto porventura contra a nobreza (à qual cabia, por imposição de um destino inexorável, não só a posse dos bens terrenos, como as esperanças transcendentes), mas contra a avidez do fisco real e dos seus executores.
          Ao invés do que viria a ocorrer na Holanda, na Inglaterra e na França, a expansão marítima e colonial peninsular reforçou o poderio da classe dos grandes detentores da terra. Quaisquer que venham a ser, em última instância, as causas do facto, é incontrovertível que a nobreza hispânica beneficiou com a empresa marítimo-comercial ultramarina, o que lhe permitiu, mesmo iniciada a decadência da hegemonia peninsular, encasular-se nos seus domínios e preparar-se para durar. No século XVII ela alcança o zénite da sua trajectória histórica moderna, o que se poderá comprovar pela pujança da mundividência barroca  -  na literatura, na arte, no pensamento, assim como na arte de viver e de morrer, que, ao nível do devir das civilizações e da conjuntura, individualiza e define tal centúria. Ora, de um ponto de vista de história social, o barroquismo é sinónimo de mundividência aristocrática ou aristocratizante, aliás contaminada e impregnada, na Península, de influência ideológica clerical.
Joel Serrão, As Alterações de Évora

10. A burguesia dos cristãos-novo
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          Dominando a economia comercial, isto é, a economia mercantil do século XVII a burguesia de cristãos-novos exerce um grande peso na política e na administração. É ela que se ocupa das magistraturas municipais. É ela que elabora com os reis os contratos de arrendamento, contratos de cobrança de impostos, que desempenham um papel essencial na organização de certos tráficos, como, por exemplo, o dos escravos.
          É ela que empresta dinheiro ao rei, quer pela criação de companhias de navegação e de comércio, encarregadas da protecção das colónias contra os ataques holandeses ou ingleses, quer simplesmente pela organização de frotas de guerra destinadas a qualquer expedição contra uma fortaleza ou uma companhia ocupada pelo inimigo.
          É ela que, em grande parte, provém para o dote da rainha de Inglaterra e para a paz com a Holanda. É ela que pelas suas relações com todas as colónias judaicas da diáspora europeia pode encontrar os fundos estrangeiros de que Portugal precisa.
          Mas a burguesia dos cristãos-novos não se interessa somente pela ciência económica. Os Judeus eram depositários da ciência muçulmana, isto é, da ciência grega e oriental transmitida pelos Árabes.
          Portugal não é no século XVII o único país a possuir uma burguesia e um grupo de cristãos-novos. Mas o que faz a sua originalidade é a confusão existente, de facto, entre burguês e cristão-novo. Burguesia judaica logo dominada por algumas famílias de grandes negociantes. Mas precisamente por causa deste carácter religioso, a burguesia não pode, como em França ou na Itália, tomar de assalto os títulos, as terras, os ofícios. Tentou fazê-lo antes da Inquisição. Mas, durante a Inquisição, somente uns três grandes burgueses o conseguiram por meio de falsas genealogias compradas a troco de grandes somas e de pretensiosas demonstrações da sua «limpeza de sangue»  -  e sem dúvida depois de várias gerações de «aristocratização» progressiva. A burguesia portuguesa permaneceu, sem dúvida, durante o século XVII, uma burguesia activa de negócios, muito mais do que as outras burguesias mediterrânicas ou europeias. Ela não caiu naquela «traição» de que fala Fernand Braudel, pelo menos porque Portugal é desde início um país marítimo e o desenvolvimento económico do Brasil foi um estímulo para os negócios. A evolução que sofreu no decurso do século não modificou fundamentalmente esta situação.

Frédéric Mauro, Études économiques sur l’Expansion portugaise


11. A Restauração portuguesa

          Em Portugal, como em Espanha, passa-se quase insensivelmente de um ambiente de incipiente Renascença para um ambiente de Contra-Reforma e para o estilo maneirista. No entanto, certas condições peculiares, nomeadamente um sensível desenvolvimento da burguesia durante o século XVII sob o estímulo da colonização brasileira e um tardio reforço do absolutismo e do feudalismo decadente, graças às minas do Brasil sob D. João V, justificariam que reservássemos a designação de Época Barroca para o período de intensa crise política, social e cultural que se processa entre a Restauração e as reformas de Pombal.
          Embora incluída no sistema do império da Casa da Áustria, a realidade portuguesa apresenta alguns caracteres específicos já antes da Restauração.
          Com efeito, a colonização brasileira, o comércio transatlântico do açúcar, do tabaco, do pau-brasil, além do contrabando da prata peruviana, o asiento (ou tráfico de negros africanos para a América do Sul) e a incrementada exportação do sal, sustentaram e desenvolveram a burguesia comercial, ligada a uma rede mundial de comércio constituída por «cristãos-novos» emigrados. Muitas linhagens fidalgas encontram uma solução para as suas dificuldades no cruzamento matrimonial com famílias de cristãos novos, outras no comércio açucareiro. Nos colégios jesuítas, sobretudo no de Santo Antão em Lisboa e no Colégio das Artes de Coimbra, e depois nas universidades, sobretudo na de Coimbra (que desde D. João III perdeu muitos privilégios a favor da de Évora, inteiramente jesuíta, e do Colégio das Artes), muitos filhos da burguesia, em grande parte cristãos-novos, alcançam o acesso à alta convivência, apesar das terríveis revoadas de repressão inquisitorial.
          Com estas circunstâncias, e também com a resistência popular espontânea à castelhanização forçada, se relaciona a produção, em todo o período filipino, de uma intensa literatura oral ou manuscrita, e por vezes impressa, de oposição antifilipina, desde as sátiras clandestinas atribuíveis aos dois Rodrigues Lobo, até aos pasquins eborenses da sublevação rural e urbana do Sul do País em 1637, assinados com o nome de Manuelinho: são coplas, romances, cartas, diálogos, entremezes, actas supostas de câmaras municipais sertanejas, etc. Este género de literatura prolonga-se para além da Restauração, em denúncias constantes das conspirações de certos altos aristocratas e clérigos contra D. João IV, e intervém mais tarde nas intrigas em torno dos comandos militares, da corrupção burocrática, da questão judaica, do golpe de estado de Castelo Melhor, etc. A obra-prima desta literatura panfletária anónima é a Arte de Furtar. Já muito anteriormente corriam as cópias das Trovas de Bandarra, sapateiro de Trancoso condenado pela Inquisição em 1541, que foram interpretadas em sentido messiânico e especialmente sebastianista e anticastelhano, e pela primeira vez impressas em 1644 em Nantes.
          Há outras manifestações de uma certa ascensão da classe média desde fins do século XVI. A exaltação do idioma e a intensificação do seu estudo gramatical, a multiplicação de compêndios de história nacional, de elogio aos antigos reis portugueses, as reedições sucessivas d’Os Lusíadas e das Rimas de Camões, uma série de comentaristas camonianos e de poemas épicos que sucedem desde D. Sebastião, se por vezes reflectem mais particularmente um patético preconceito da linhagem (caso das epopeias), correspondem em geral a um sentimento nacional de resistência, assente principalmente na burguesia comercial e togada, nos grupos urbanos; a isto acrescem o descontentamento geral (à medida que a crise final do regime filipino intensifica a exploração tributária e a mobilização militar), que atinge artífices e camponeses, as esperanças de tolerância futura para a minoria designada com o nome de «Cristãos-Novos», as preocupações da Companhia de Jesus, atingida na sua expansão ultramarina pela Guerra dos Trinta Anos e consequente expansão à custa das possessões portuguesas, e finalmente a desilusão de uma parte da nobreza, preterida na corte madrilena por estrangeiros ou por funcionários de origem menos ilustre e, por isso, mais submissos aos ministros filipinos.
          O historiador Oliveira Marques conta-nos, no entanto, que em Novembro de 1640 «a conspiração dos aristocratas conseguira finalmente o apoio formal do duque de Bragança. Na manhã do Primeiro de Dezembro, um grupo de nobres atacou o palácio real de Lisboa e prendeu a duquesa de Mântua.» D. João de Bragança é aclamado rei, «entrando em Lisboa alguns dias mais tarde. Por quase todo o Portugal metropolitano e ultramarino as notícias da mudança do regime e do juramento de fidelidade ao Bragança foram bem recebidas e obedecidas sem qualquer dúvida. Apenas Ceuta permaneceu fiel à causa de Filipe IV.» A proclamação da independência «fora assim coisa relativamente fácil. Mais difícil seria agora conseguir mantê-la, o que custou vinte e oito anos de luta e provou ser tarefa muito mais árdua» (Marques, 1980: 440).
          Os Portugueses de 1640, tal como em 1580, estavam longe de ser unidos: «Se as classes inferiores conservavam intacta a fé nacionalista e aderiram a D. João IV sem sombra de dúvida, já a nobreza, muitas vezes com laços familiares em Espanha, hesitou e só parte dela (de onde havia provindo o núcleo revolucionário) alinhou firmemente com o duque de Bragança.» (Ibidem: 441-442). Muitos nobres conservavam-se em posição duvidosa, «outros esperaram algum tempo até se decidirem, outros ainda continuariam a servir Filipe IV, sendo recompensados com títulos e dignidades (três nobres portugueses foram governadores dos Países Baixos e um deles foi vice-rei da Sicília depois de 1640)» (Ibidem: 442). A maior parte dos burocratas apoiou D. João IV, «tornando-se seus secretários e propagandistas. Todavia, alguns escolheram a causa de Espanha e alinharam como conspiradores contra o novo regime. Quanto aos burgueses, a grande maioria não participou no movimento separatista e foi apanhada de surpresa. A sua atitude depois de 1640 mostrou-se, geralmente, de expectativa neutral. Muitos mercadores e capitalistas estavam metidos em negócios em Espanha, possuindo aí, ou no Império Espanhol, boa parte dos seus bens. Outro grupo, porém, com um núcleo importante de cristãos-novos e conexões de relevo fora da Península Ibérica – na Holanda e na Alemanha sobretudo – apoiou a revolução e ajudou a financiá-la. É que os negócios deste grupo dependiam muito mais do tráfico atlântico (Brasil) e do tráfico com a Europa Ocidental e Setentrional» (Ibidem: 442)


12. As minas do Brasil e o apogeu do Barroco em Portugal

          A descoberta do ouro e dos diamantes do Brasil, o incremento das exportações de vinhos (estabilizadas pelo tratado de Methuen em 1703) adiam de novo o problema económico e social, propiciam o prolongamento e reajuste das formas barrocas em Portugal. No tempo de D. João V, com efeito, o ouro brasileiro repete os efeitos das especiarias de Quinhentos: a indústria, ainda mesteiral, definha (excepto em certos ramos sumptuários), no movimento comercial externo destaca-se a exportação visível do ouro, como moeda cunhada ou por interpole (contrabando); emigram massas enormes de artífices e camponeses, sobretudo nortenhos; a burguesia prefere dedicar-se ao contrabando, aos contratos fiscais, ao comércio externo, ao funcionalismo e às profissões liberais; o orgulho de classe da aristocracia exacerba-se, enchendo os conventos de mulheres sem casamento condigno, o que relaxa e mundaniza a disciplina monástica; enchem-se as rodas de «expostos» (enjeitados), e as portarias conventuais ou senhoriais nos dias de esmola ou do caldo; a escolástica jesuíta repele transigências que ainda tinha em 1630 com a mecânica, e torna-se sebenteira.
          Há a orgia do espectaculoso, dos efeitos artísticos redundantes e cumulativos; a ópera de Metastásio, profusa de coros, bastidores e «tramóias»; a arquitectura imponente e recheada inteiramente de talha ou mármores variegados; procissões espaventosas, principalmente as de Corpus Christi, em que figuram inclusivamente alegorias mitológicas; recepções solenes, faustosíssimas, de embaixadores ou de prelados; autos-de-fé copiosos, com a pompa tradicional; touradas intérminas; coches monumentais.
          Publica-se então o mais extenso cancioneiro do barroquismo versejante, a Fénix Renascida, que depois será antologizada e actualizada sob o título de Postilhão de Apolo. Os títulos dos livros são muito longos e pomposos. Em 1720 cria-se a Academia Real das Ciências, que, pelo culto da documentação, progride a historiografia seiscentista, mas reproduz na erudição a mesma ansiedade do monumental que D. João V herdou de Luís XIV.
          Por outro lado, na medicina, na balística, na engenharia, na cartografia, na astronomia, na mineração, na pedagogia, como na arquitectura, na pintura, na música orquestral ou vocal, na cenografia, D. João V precisa de mandar vir estrangeiros, de consultar portugueses estrangeirados (incluindo cristãos-novos), precisa mesmo de enviar portugueses a industriar-se no estrangeiro. Oratorianos e Teatinos, mais condescendes com o espírito científico das sociedades então aburguesadas, quebram o monopólio do ensino jesuíta. Pelas fendas que se abrem nas necessidades mais clamorosas, penetra o ar de uma mentalidade antiescolástica e antibarroca. Põe-se agudamente o problema de como educar de modo mais útil a classe dirigente. A baixa na extracção do ouro e noutros produtos coloniais, que se acentuará na 1.ª metade do século XVIII, torna urgente um programa de fomento mercantilista.
          Alguns homens mais actualizados, como Martinho de Mendonça Pina e Proença, D. Luís da Cunha, Diogo de Mendonça Corte Real, Alexandre de Gusmão, Ribeiro Sanches, Verney e outros, esboçam já no reinado de D. João V o programa que o marquês de Pombal tentará levar a cabo.
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