Português: 21/08/24

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Caracterização de Ofélia

    Ofélia é uma de duas personagens femininas de Hamlet, mas a trama que a envolve está intimamente relacionada com três figuras masculinas: Polónio, seu pai, Laertes, seu irmão, e Hamlet, o seu interesse amoroso.
    Ofélia é uma mulher dinamarquesa nobre, jovem e bela, doce e inocente, honesta, gentil, sensível e inteligente, mas controlada e manipulada por forças que lhe são superiores, nomeadamente os homens da sua vida.
    A sua relação com Hamlet é complexa. No início da peça, aparentemente os dois compartilham um afeto genuíno (por exemplo, Ofélia refere ter recebido cartas do príncipe, nas quais este expressava o seu amor por ela), mas o relacionamento é ambíguo. Porém, desde logo se percebe que a jovem depende das figuras masculinas para lhe dizerem como se comportar e o que fazer. De facto, o pai e o irmão advertem-na para não confiar nas expressões de amor de Hamlet, sugerindo que o sentimento dele pode não ser sincero e que ela pode ser desonrada) e, mais do que isso, Polónio usa-a para espiar o príncipe e tenta descobrir a origem da sua loucura e, em última análise, força-a a devolver as cartas de Hamlet e a renunciar ao seu afeto. Ofélia, obediente, corta os laços com ele, o que desperta a fúria do príncipe, que começa a trata-la de forma cruel e desconcertante, o que pode ser lido como um reflexo da própria dor de Hamlet, mas também como uma estratégia tendente a afastá-la ou a protegê-la como parte do seu esquema para parecer louco. Exemplificativa de tudo isto é a sugestão para que se torne freira. A morte de Polónio, seu progenitor, às mãos de Hamlet sela o destino trágico do relacionamento entre ambos e da própria Ofélia. De facto, esta, já num estado de fragilidade emocional devido ao comportamento errático e inconsistente do príncipe, fica devastada pela morte do pai, o que a leva à loucura e, posteriormente, à morte em circunstâncias ambíguas. A reação de Hamlet ao passamento da jovem, de arrependimento e dor, indica que os seus sentimentos por ela eram genuínos.
    A relação entre Ofélia e Polónio é marcada pela obediência da filha relativamente ao pai e pelo controle deste sobre ela, o que traduz uma grande desigualdade de poder, característico de uma sociedade patriarcal e machista. De facto, a jovem é uma filha obediente, respeitosa e submissa, seguindo as ordens e os conselhos do pai sem os questionar. Por seu turno, Polónio procura controlar a vida de Ofélia, nomeadamente a amorosa, essencialmente porque desconfia das reais intenções de Hamlet relativamente à filha e, porque acredita que o interesse não é sério, instrui-a a cortar relações com ele. No fundo, isto significa que Polónio a usa como um peão na sua demanda de poder e influência na corte. Exemplificativo desta ideia é o modo como a usa para espiar o príncipe, o que, em última análise, a coloca numa situação de vulnerabilidade e perigosa. Em todo o trajeto, nunca este pai parece ter em consideração os sentimentos e os interesses da sua filha, antes a manipula e usa para atingir os seus objetivos, sem se preocupar com o impacto emocional que pode ter sobre ela. Exemplifica isso o facto de a usar para testar a sinceridade do amor e as intenções de Hamlet, não considerando como esse plano poderia afetá-la emocionalmente. No entanto, nada disto afeta o amor de Ofélia pelo pai, daí o desamparo e a dor que sente aquando da sua morte, que a deixa devastada e desamparada.
    Relativamente a Laertes, existe entre ambos um amor filial e uma afeição sinceros. O irmão mostra sempre grande cuidado e preocupação com ela, procurado protegê-la como irmão mais velho, aconselhando-a a ser cautelosa relativamente aos avanços amorosos de Hamlet. No fundo, Laertes reflete a mentalidade da época, que associava a dignidade e a honra da mulher ao seu comportamento e castidade. Em simultâneo, essa postura traduz uma atitude paternalista sobre a figura feminina, que necessita de alguém que a guie e proteja dos próprios sentimentos e das intenções dos homens que a rodeiam.
    Por outro lado, embora não de forma tão intensa, também Laertes exerce controle sobre a vida de Ofélia, influenciando e condicionando as suas decisões, o que significa que, apesar de amada, vive cercada por figuras masculinas que limitam a sua autonomia. Ela, por sua vez, respeita e ouve os conselhos dele, que confia que a irmã seguirá as suas recomendações, o que configura uma confiança mútua entre ambos. Assim sendo, não é de estranhar que Laertes, após a sua morte, seja consumido pela culpa e pela dor, pois sente-se culpado por não ter estado presente para a proteger, o que o leva a procurar vingar-se de Hamlet, por o considerar culpado do desenlace trágico da irmã.
    Ofélia vê-se envolvida em intrigas políticas e é manipulada por figuras de poder, não obstante manter uma relação distante e formal com o casal real, que olha para a jovem como um instrumento para espiar Hamlet, desconsiderando os seus sentimentos e o seu bem-estar. Curiosamente, ou não, embora esteja próxima do poder e da corte, Ofélia não possui qualquer influência nela, antes vive subordinada à autoridade política. No fundo e em suma, ela é uma vítima do poder: não exerce qualquer influência sobre os acontecimentos e, pelo contrário, é manipulada pelas forças políticas que a envolvem. Enquanto jovem mulher na corte, ela é ensinada a ser obediente e submissa, quer pelo pai, quer pela própria corte. É possível que a jovem se sinta culpada pela morte do pai, ainda que indiretamente, pois foi a sua relação com Hamlet que precipitou os eventos trágicos.
    Ofélia possui uma visão idealizada e romântica do amor, exprimindo um apelo genuíno por Hamlet e acredita nas suas promessas amorosas. O seu amor por ele é puro e inocente, refletindo a sua inocência e a sua sensibilidade, mas acaba por ser colocado à prova pela manipulação e pela desconfiança que pairam sobre ele. Por outro lado, a jovem é ensinada a valorizar a castidade e a pureza, como a sociedade esperava de uma jovem nobre. O sexo é encarado por ela como algo que deve estar conectado à honra pessoal e a mulher deve preservar a sua virgindade e castidade. No final, a jovem vive uma grande confusão emocional perante a sucessão de acontecimentos negativos que marcam a sua vida, começando pela forma como Hamlet a trata a partir de certo momento e que faz com que o amor se torne em fonte de sofrimento. Todo este caldo de cultura faz com que Ofélia nunca tenha oportunidade de expressar a sua sexualidade ou o seu amor de forma plena, pois é constantemente condicionada pelos homens da sua vida, que a oprimem e levam ao silenciamento dos seus desejos e sentimentos.
    Em suma, Ofélia é uma jovem nobre, inocente, pura e obediente que contrasta com a corrupção que caracteriza a corta da Dinamarca e que, no fundo, destrói as referidas pureza e inocência, esmagadas pelo mundo em que vive, prenhe de violência, traição e manipulação. Por outro lado, ela é vítima de uma sociedade patriarcal que controla e oprime as mulheres, determinando o seu comportamento e escolhas. Além disso, a sua loucura simboliza o modo como aquela sociedade marginaliza aqueles que se desviam do caminho esperado, bem como a fragilidade da mente humana perante a vivência de traumas e de pressões insuportáveis.
    Em vários momentos da peça, Ofélia canta canções sobre flores e a própria morte ocorre no contexto do afogamento num rio, no meio de grinaldas de flores que tinha juntado, o que representa a sua ligação à natureza. Note-se que várias das flores a que está associada representam as suas emoções e as relações com outras personagens. Por exemplo, o alecrim remete para a lembrança, enquanto a violeta, a fidelidade.
    A sua morte, para a qual parece fadada desde o início da obra, é ambígua, pois é sugerido que ela se afogou num rio de forma acidental, mas também existem indícios de que se trata de suicídio. De facto, a rainha narra a morte de forma poética, porém a imagem de que ela era uma jovem desesperada, incapaz de suportar o seu infortúnio, que se deixou levar pela água indicia que, no seu estado de insanidade, desistiu de lutar. Por outro lado, tratando-se efetivamente de um suicídio, tal pode significar que, nos seus derradeiros momentos, Ofélia ganhou uma espécie de autonomia de que nunca usufruiu ao longo da vida.

Caracterização de Gertrudes

    Gertrudes é a rainha da Dinamarca, esposa de Cláudio, que desposou recentemente, e viúva do seu irmão, o rei Hamlet, com quem teve um filho, o protagonista da peça, homónimo do pai.
    Gertrudes é uma personagem complexa e intrigante, pois são mais as perguntas que o texto levanta sobre ela do que as respostas. A rainha amava o primeiro marido? Ama o segundo? Por que razão desposou Cláudio: por amor ou apenas para conservar o seu status e a sua posição social e política? Estava envolvida amorosamente com Cláudio ainda em vida do primeiro marido? Sabia, ou pelo menos, suspeitava das ações de Cláudio? Acredita em Hamlet quando este afirma que está louco ou finge acreditar simplesmente para se proteger? Trai a confiança do filho intencionalmente para agradar ao marido ou crê estar a proteger o segredo do jovem?
    Fisicamente, não há grandes dados sobre Gertrudes. Dada a idade de Hamlet, tratar-se-á de uma mulher de meia-idade, provavelmente na faixa dos 40, 50 anos, certamente com uma aparência majestosa, nobre, elegante, graciosa e nobre. Ou seja, a sua fisionomia refletirá a sua condição de rainha e a sua posição de poder, envergando trajes luxuosos e joias de acordo com o seu estatuto social.
    Psicologicamente, a rainha é uma mulher vulnerável, superficial, frágil e dependente que procura afeto, estabilidade e proteção num ambiente corrupto e instável. Além disso, evidencia uma certa tendência para usar os homens para satisfazer o seu instinto de autopreservação, o que, naturalmente, a coloca na dependência das figuras femininas da sua vida. De facto, enquanto rainha da Dinamarca, a sua segurança a todos os níveis e a sua posição social dependem da ligação a um homem poderoso, uma realidade que poderá explicar o seu casamento célere com Cláudio, após a morte do primeiro marido. Outra hipótese poderá ter a ver com o seu receio de ficar sozinha. Em simultâneo, é alguém que parece procurar evitar os conflitos e manter uma imagem (aparente) de normalidade na corte. Além disso, mostra-se sempre incapaz de compreender plenamente os sentimentos de Hamlet, o que traduz uma certa falta de empatia relativamente aos que a rodeiam, ou então uma negação consciente para manter a sua paz interior.
    Algumas ações e a sua morte no final da peça aproximam-na do estatuto de vilã. Por exemplo, o facto de se casar com Cláudio, o irmão do falecido marido, pouco depois da morte deste, põe em causa a sua lealdade e a sua moralidade. Esta perspetiva parece ganhar sustentação através da acusação do filho, segundo o qual padece de luxúria e fraqueza moral, sugerindo que cedeu às pressões e à tentação de Cláudio. Assim sendo, porque age ela dessa forma? Quase certamente, porque deseja manter a sua posição social e política e assegurar uma vida protegida e confortável, mesmo que para tal tenha de descurar questões como a justiça e a verdade.
    Por outro lado, enquanto rainha, Gertrudes encontra-se no olho do furacão, no centro do poder político e das maquinações e jogadas políticas que o seu exercício implica. Essa sua posição obriga-o a sustentar uma fachada de felicidade e dignidade, sobretudo nos tempos de mudança e incerteza que se vivem na Dinamarca. Em contrapartida, a sua postura coloca-a numa circunstância que a expõe e torna vulnerável às críticas e à desconfiança, especialmente no que respeita à sua lealdade ao rei Hamlet.
    A sua relação com Cláudio constitui, de facto, uma das facetas controversas da peça, desde logo porque ele é o irmão do falecido monarca e tio do príncipe Hamlet. Depois, o antigo soberano morreu em circunstâncias suspeitas e, por último, o matrimónio é célere. O filho considera essa decisão cruel e calculista, porém há que considerar que uma mulher na sua posição, naquela sociedade, não dispõe de grandes alternativas. Quando Hamlet a confronta sobre o passo que deu, Gertrudes admite que refletir sobre a sua decisão de casar com Cláudio, ex-cunhado, é algo demasiado doloroso para pensar. Deste modo, não se sabendo se ela tem consciência do papel do atual marido na morte do anterior, parece preferir não pensar e não aprofundar o assunto. Receito das consequências que daí poderão advir? Medo da descoberta de uma verdade dolorosa? No fundo, de acordo com uma certa perspetiva, o segundo enlace de Gertrudes terá sido uma opção pragmática. Seja como for, a ambiguidade rodeia este relacionamento, pois efetiva-se por amor, por conveniência ou por uma conjugação de ambos.
    Em suma, Gertrudes é uma personagem controversa e ambígua e alguém que não quer ou não é capaz de refletir criticamente sobre si e sobre o contexto em que se insere, parecendo antes atuar de forma instintiva, como é o caso do momento em que corre para Cláudio após o seu diálogo tumultuoso com Hamlet.
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