Português: 17/08/24

sábado, 17 de agosto de 2024

Análise do poema "Se é doce no recente ameno Estio", de Bocage


n Assunto: o sujeito poético, dirigindo-se à mulher amada, declara-lhe que, se é doce ver a suave alegria da manhã enfeitada de flores e amenizada pelo deslizar do manso rio, se é doce ouvir o doce chilrear dos passarinhos entre os aromas dos pomares, se é doce ver o suave colorido do mar e dos céus, mais doce é poder morrer de amor na posse da sua amada.
 
 
n Tema: a exaltação da mulher amada.
 
 
n Estrutura interna
 
1.ª parte (vv. 1-11) – Descrição de uma Natureza caracterizada pela doçura, pela amenidade, pela beleza, pela claridade, pela serenidade, pela alegria, pela suavidade, pela harmonia – um autêntico paraíso – “locus amoenus”.
 
2.ª parte (vv. 12-14) – A superioridade da mulher em relação à Natureza.
     De facto, o sujeito poético estabelece uma comparação entre a doçura e a alegria que ele experimenta ao observar a Natureza (com as características atrás apontadas) e a doçura que experimenta ao cair nos braços da mulher amada, vencida pelo seu amor. Mas os dois termos comparados não são iguais, porque se é doce sentir a Natureza, mais doce é cair nos braços da mulher; ou seja, a mulher é superior à Natureza em termos de beleza.
               A 1.ª parte do texto contém, por conseguinte, o primeiro termo de comparação e a 2.ª parte contém o segundo.
 
 
n Função da Mulher:
– divina, ideal, doce, carinhosa (comparada a tudo o que é doce e ameno);
– comparada à Natureza, é-lhe, porém, superior;
– deve dar “morte de amor”;
– é causadora do sofrimento, mas também confidente;
– deve deixar-se vencer pelos ais, pelo sofrimento do homem que a ama.
 
 
n Imagem da Natureza

            A suavidade da Natureza, a claridade, a alegria, ao nascer do Sol, irradiando também serenidade e paz, está dentro dos ideais clássicos da “aurea mediocritas”, isto é, da convicção que os clássicos tinham de que a suave alegria da natureza lançava na alma um bálsamo especial que suavizava as agruras da vida, e do “locus amoenus”. Notem-se as palavras e expressões que conotam suavidade, serenidade, paz: “doce”, “ameno Estio”, “mole e queixoso deslizar-se o rio”, “inocente desafio”, “esperta os corações” (no sentido de dar vida, libertar os corações dos pesares da vida.


n Recursos poético-estilísticos
 
            Para realçar a suavidade da Natureza temos, em primeiro lugar, a expressividade dos adjectivos: doce (repetido 4 vezes), ameno, mole e queixoso, inocente, gentil, querida, brandos. Destes, o adjetivo-chave é doce, que se repete anaforicamente e em lugar de destaque, no princípio das estrofes, e no grau comparativo (comparação) de superioridade (“mais doce é”) para, a partir da grande doçura que há na fruição da Natureza, realçar a infinita doçura encontrada na posse da mulher amada. Os verbos também designam acções realizadas suavemente: lambendo, deslizar-se (notar a expressividade do reflexo), modulando (o próprio gerúndio exprime a acção a deslizar suavemente). Estas apalavras, apontando no seu significado para a suavidade, são também suaves como significantes, isto é, no seu próprio som e na musicalidade que ajudam a construir no verso. Há no poema versos de um ritmo, de uma suavidade encantadora: “Mole e queixoso deslizar-se o rio”, “Seus versos modulando e seus ardores”, “Que esperta os corações, floreia os prados”, “Dar-me em teus brandos olhos desmaiados”.
            Por outro lado, o soneto é bastante rico na expressão de sensações:
– gustativas: doce (4 vezes), lambendo;
– visuais: ver (3 vezes), verdores, sombrio, anilados, olhos, desmaiados;
– tácteis: ameno, mole, ardores, brandos;
– auditivas: queixoso, ouvirem-se, ais;
– olfactivas: aromas.
    Note-se que há signos que não designam apenas uma sensação. Por exemplo, na expressão “é doce ver”, o adjectivo doce, em rigor, estará dentro das sensações visuais (agradável aos olhos), mas na expressão “é doce ouvir”, já o mesmo adjectivo se integra nas sensações auditivas (agradável aos ouvidos). O adjectivo brandos exprime ao mesmo tempo sensações visuais e tácteis. E o adjectivo ameno pode referir-se a qualquer sensação.
    Ainda na descrição da Natureza, são de reter a personificações de elementos como o rio e do Amor; as metáforas (“Ver toucar-se a manhã de etéreas flores...”, “... lambendo as areias e os verdores...”, “Que esperta os corações, floreia os prados...”, “... morte de amor...”); a perífrase e a metonímia “Ouvirem-se os voláteis amadores...” (= passarinhos) e os hipérbatos.


n Características


Análise do poema "Liberdade, onde estás? Quem te demora?", de Bocage

  Condições histórico-políticas que estão na génese do soneto:
            – Revolução Francesa (1789);
            – consolidação da República Francesa (1797);
            – estado de absolutismo despótico que se vivia em Portugal.

 
Tema: a ânsia de Liberdade.

 
Assunto: o sujeito poético lamente a chegada tardia da Liberdade, constata a oportunidade da sua vinda, desejando e fazendo apelo para a instauração definitiva de tal valor.
 
 
Estrutura interna

 

1.ª parte (1.ª quadra) – O sujeito lírico interroga-se sobre o paradeiro da Liberdade e desabafa, em tom de incerteza e dúvida, quanto à sua chegada.
   Possuído por grande ansiedade e inquietação, face à situação presente de falta de liberdade e opressão, o sujeito poético chama por uma “liberdade colectiva” (“nós”) que alguém desconhecido impede de chegar.
 
2.ª parte (vv. 5-14) – A ansiedade, o desejo e consequente apelo, súplica, à Liberdade para que, chegando, possibilite a realização do sujeito/Humanidade.
 
 
▪ Na 2.ª estrofe, é clara a dicotomia liberdade/despotismo: o presente é o despotismo, a opressão “feroz” que “nos devora”; a situação desejada é a da redenção, da salvação: “é vinda a hora”.
 
No 1.º terceto, temos a súplica do sujeito poético à Liberdade, súplica para o merecido acolhimento para quem é patriota. Por outro lado, o sujeito apresenta os efeitos do despotismo em si:
– frio e mudo ® inexistência de liberdade de expressão – não pode poetar à vontade;
– oculta o amor pátrio;
– torce a vontade;
– finge.
          Há, de facto, no soneto, uma oposição entre uma situação real e uma situação desejada. A situação real é de opressão (“despotismo feroz”), que obriga o sujeito a silenciar, por medo, o próprio amor à Pátria, a contrariar a sua própria vontade e a fingir, para não ser apanhado nas malhas da perseguição política, conforme pode ver-se neste terceto.
          A situação desejada é a de Liberdade, aqui encarada como uma “santa redenção”, uma verdadeira salvação, tal é a violência da tirania que “nos devora”. Só a “aurora” da Liberdade poderá iluminar a “espera de Lísia” (Portugal) e dissipar as trevas de um regime ditatorial.
 
▪ No 2.º terceto, a Liberdade é apresentada como aspiração máxima do Homem [“tu és (...) tudo”] e caracterizada como divindade, glória, “mãe do génio (não há entraves para poetar) e do prazer.
 
A dicotomia Liberdade/Despotismo é sustentada, no poema, por um vasto conjunto de vocábulos:
 

Liberdade

 

Vv.

 

Ausência de Liberdade

 

Vv.

“Liberdade”
“santa redenção”
“Oh! Venha... Oh! Venha”
“pátrio amor”
“piedade”
“númen tu és
“glória”
“Mãe do génio e prazer”
“Liberdade”

 

1
5
7
10
12
13
13
14
14

 

“demora”
“triste de mim!”
“não caia”
“desmaia”
“descaia”
“Despotismo feroz, que nos devora!”
“frio e mudo”
“Oculta”
“torce a vontade”
“fingir”
“temor”
“grilhões”

 

1
2
2
6
7
8
 
9
10
10
11
11
12
 
 
Conclusão
 
            O número de vocábulos/expressões dos dois grupos opostos é semelhante, ficando, deste modo, comprovada a luta, o conflito entre forças iguais (Liberdade/Ausência de Liberdade), para o qual o sujeito poético incita, apelando e desejando a chegada da Liberdade como necessidade imperiosa para os homens, uma vez que tal privação já causara avultados sacrifícios.

 
Recursos poético-estilísticos
 
            A nível formal, trata-se de um soneto pois contém duas quadras e dois tercetos, de versos isométricos – decassilábicos. O esquema rimático é ABBA / ABBBA / CDC / DCD, sendo a rima interpolada e emparelhada nas quadras e cruzada nos tercetos. Os versos têm ainda rima grave, consoante, rica (“demora”/”aurora”) e pobre (“desmaia”/”descaia”).
 
            A nível morfossintáctico, existem, nos versos 5 e 12, dois hipérbatos bastante significativos: “Da santa redenção é vinda a hora”; “Movam nossos grilhões tua piedade”. Com a inversão sintáctica que caracteriza o hipérbato, são colocados na posição de destaque do verso (no início) os elementos mais significativos: “Da santa redenção” ® a necessidade de salvação; “Movam nossos grilhões” ® o desejo de libertação e de resolução do conflito.
            A adjectivação agrupa-se dm dois conjuntos: “triste”, “feroz”, “frio e mudo”, “pátrio”, referem-se à situação de despotismo, de opressão; “santa” refere-se à ânsia de redenção e salvação possíveis de obter através da chegada da Liberdade.
            O uso do pronome indefinido (“tudo”) reforça a dificuldade do sujeito poético em seleccionar os vocábulos apropriados para a definição de Liberdade, a aspiração máxima do Homem. Dada essa dificuldade, recorre a este pronome como forma de sintetizar a definição.
            O apelo e desejo de liberdade implicam o predomínio da função apelativa, na medida em que o discurso está centrado no receptor – Liberdade – , para, através de vocativos (“Liberdade”, “ó Liberdade”), formas de imperativo (“acode”) e de presente do conjuntivo (“venha”, “descaia”, “movam”), suplicar a sua intervenção redentora. Por outro lado, é visível também a presença emocionada do sujeito poético (função expressiva), não só pela utilização de pronomes pessoais e determinantes possessivos de primeira pessoa (“nós”, “mim”, “nos”, “nossos”, “nosso”), mas, sobretudo, através de exclamações (“triste de mim!”, por exemplo), interrogações, interjeições (“eia”, “oh”), repetições (“Oh!, venha... Oh!, venha”), reticências e adjectivação (“santa”, “trémulo”, “feroz”, “frio e mudo”) e até da metáfora (“raia (...) a tua aurora”, “devora”, “grilhões”).
            O pronome interrogativo “Quem” remete para a indefinição que rodeia a pessoa ou entidade que impede a liberdade de chegar e libertar o sujeito da situação de asfixia em que se debate face ao “despotismo feroz”.
            O polissíndeto (vv. 13-14) resulta numa tentativa de definição de algo que é transcendente pela sucessão de vocábulos.
            Encontram-se no soneto frases interrogativas (vv. 1, 2, 3-4), declarativas (vv. 5-6), exclamativas (vv. 3, 7-8, 13-14) e imperativas (vv. 9-11, 12). Esta sequência, no que diz respeito à forma como surgem no poema, remete para uma determinada progressão do estado de espírito do sujeito poético: em primeiro lugar, incerteza e indignação pela ausência de Liberdade (frases interrogativas, vv. 1-4); de seguida, a constatação de que o tempo oportuno havia chegado (frases declarativas, vv. 5-6), acompanhado de um desejo em forma de súplica para o término da situação presente (frases exclamativas, vv. 7-8); o apelo para a instauração da Liberdade (frases imperativas, vv. 9-11, 12); e, por último, o destaque atribuído à Liberdade e ao sentimentos do sujeito por tal valor (frases exclamativas, vv. 13.14) que protagoniza o poema.

            A nível semântico, logo no primeiro verso deparamos com uma apóstrofe à Liberdade que se repete no último. Ainda na primeira quadra encontramos uma série de interrogações retóricas, isto é, uma série de interpelações à origem da Liberdade, aos responsáveis pela não existência da mesma e às causas da sua chegada tardia, que servem especialmente a função expressiva, presente na 1.ª quadra, na qual o sujeito poético revela a sua tristeza e indignação pelo facto de estar privado de Liberdade.
            As exclamações, associadas às interjeições (vv. 3, 7-8, 9, 13, 14), marcas da função expressiva, evidenciam o estado de espírito do sujeito poético: a súplica, a ansiedade, a aspiração, o desespero.
            Por outro lado, quer a Liberdade quer o Despotismo surgem personificados. Assim, a personificação da Liberdade por parte do sujeito poético traduz a grande ânsia da sua chegada, enquanto a personificação do Despotismo, por um lado, intensifica a sua presença, força e acção, e, por outro, a situação asfixiante em que vive.
            A metáfora é outro dos recursos importantes do poema:
– “raia (...) a tua aurora” (vv. 3-4);
– “A esta parte do mundo, que desmaia” (v. 6);
– “Despotismo feroz, que nos devora!” (v. 8);
– “... torce a vontade...” (v. 10);
– “Movam nossos grilhões...” (v. 12);
– “Nosso númen tu és...” (v. 13);
– “Mãe do génio e do prazer...” (v. 14).
Este conjunto de metáforas revela a situação de opressão em que o sujeito se debate face ao “despotismo feroz” que a Liberdade tarda em destruir, porque demora a chegar. Além disso, no caso da última metáfora, é atribuída à Liberdade a capacidade de gerar e proteger, sendo ela identificada como a génese da inspiração, do talento.


Características


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