Há algo
muito podre no reino da Dinamarca: Polónio morreu e foi sepultado em segredo;
Hamlet prepara-se para partir, forçado, para Inglaterra; Ofélia parece cada vez
mais ensandecida; o povo está perturbado e murmurando entre si. Para compor o
ramalhete, Laertes está de volta à Dinamarca e possui a legitimidade moral que
falta a Cláudio por vários motivos e a que Hamlet perdeu ao assassinar Polónio.
O regresso de
Laertes é muito significativo. Desde logo, intui que Cláudio é um assassino,
embora pelo ângulo errado, ou seja, supõe que o rei assassinou Polónio, o que
não é verdade, pois a sua vítima foi o velho rei Hamlet. Por outro lado, é
nítido o contraste que existe a sua figura e a do príncipe dinamarquês. De
facto, este é muito reflexivo e hesitante, daí as enormes dificuldades que
manifesta em agir, enquanto Laertes é ativo e menos reflexivo. Além disso, não
é atormentado pelas questões morais que inundam o jovem príncipe, daí que o seu
único pensamento seja o de vingar a morte do seu pai. Por outro lado, Laertes
parece uma figura desequilibrada e irrefletida, daí que o desejo de vingar o
pai a todo o custo será a sua ruína, arrastando consigo outras personagens para
o precipício. Ele só pensa em vingar o pai o mais rápido possível e considera
tal um dever e uma questão de honra, daí que se precipite, por exemplo, quando
tira conclusões apressadas sobre quem terá sido o homicida. Seja como for, é
quase certo que a sociedade dinamarquesa da época prefira a postura de Laertes
à de Hamlet, pois acreditava no castigar das injustiças.
Cláudio,
astuto, aproveita as circunstâncias para o manipular e cativar, tendo na mente
a possibilidade de o aproveitar para a sua trama com Hamlet, por isso comporta-se
como um amigo solidário e sensato de Laertes, procurando que este seja seu
aliado e um oponente do príncipe. Quando, mais tarde, o rei o questiona,
querendo saber até onde está disposto a ir para vingar o pai, o filho de
Polónio é claro e decidido, afirmando que está disposto a cortar a garganta de
Hamlet na igreja (ato IV, cena 7), o que contrasta com a postura do príncipe,
que se recusou a matar Cláudio enquanto este estava ajoelhado em oração. A
questão da religião e da religiosidade é muito importante na época.
Outro dos
temas que perpassa a peça, nomeadamente esta cena, é a loucura, nomeadamente a
de Ofélia, marcada pela perda do pai e do amor de Hamlet. Essa sua
instabilidade emocional manifesta-se de várias formas, concretamente da
distribuição de flores e das canções que entoa. Nesta cena, a jovem distribui
flores a várias pessoas, atribuindo-lhes vários significados: o alecrim
representa lembrança e os amores-perfeitos pensamentos. Dito isto, a
representatividade das flores é mais profunda, visto que se associam a várias
ideias e conflitos que atravessam a sua mente e o seu progressivo afastamento
da realidade e da razão. Por outro lado, como as suas canções estão conectadas
com amores e morte, as flores podem ser associadas à morte, concretamente à de
Polónio.
As canções
de Ofélia, embora possam parecer aos outros não ter sentido, na verdade
traduzem a sua obsessão com a morte do pai e do amor de Hamlet, bem como com um
desejo sexual algo ambíguo, com o qual ela parece lutar, depois de ter sido
desencorajada do desejo sexual pelo pai, pelo irmão e pela sociedade de forma
genérica. A temática das canções centra-se em homens infiéis: no início da
peça, parecia haver a possibilidade de se desenvolver uma relação amorosa entre
a jovem e Hamlet, no entanto a partir de certo momento vê-se confrontada com um
príncipe manipulador, desconcertante, aparentemente dominado pela loucura e
cruel. Quase em simultâneo, ela perde a figura paterna, sempre presente, e um
irmão preocupado e amoroso. Isto é tão mais importante quanto as mulheres, na
época, tinham pouca importância e valor, estando sistematicamente dependentes
dos homens. É também o caso de Ofélia. Todavia, neste momento, todas as figuras
masculinas morreram ou estão distantes, daí que ela esteja sem balizas e
apoios.
Por outro
lado, a temática das canções pode associar-se à decadência, não só dos corpos,
mas da situação política. Numa delas, refere-se a um homem que é levado para o
túmulo num caixão aberto, o que representa a ideia de que violência gera mais
violência, depravação moral gera mais depravação moral. Convém sempre recordar
as palavras de Marcelo, quando afirma que algo está podre no reino da
Dinamarca. Ora, a canção da jovem retoma esse tópico, visto que a letra fala da
morte como se esta estivesse em exposição em Elsinore. Assim sendo, é lícito
concluir que o desejo e a busca de vingança apodrecem a monarquia dinamarquesa,
acelerando a decadência moral já existente há muito.
Voltando à
loucura, é curioso observar que este tema faz contrastar Hamlet com outra
personagem: Ofélia. Com efeito, o príncipe tem fingido estar louco como estratégia
para atingir os seus objetivos, ao passo que a jovem é levada a esse estado por
um conjunto de circunstâncias externas.