Português: O Delfim
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sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Narrador / Personagem / Escritor-Furão em O Delfim

            O narrador, desde o início da narrativa, aponta para o espaço da Gafeira (atente-se no uso do deítico espacial «cá»), visto a partir da sua perspetiva («estou»).

            Este início da obra remete para a dupla função de narrador e personagem, porém a sua presença não se limita a isso, visto que revela constantemente a sua consciência do fenómeno da criação literária, introduzindo mesmo a figura de autor. Ele próprio se intitula «escritor furão», visto que se reconhece como um pesquisador da verdade oculta, numa constante dupla caçada.

            A narrativa é construída a partir das recordações de diálogos que manteve com os donos da Casa da Lagoa, de situações que presenciou ou não, mas que considera plausíveis, de atitudes que observou, de tensões que pressentiu ou julgou pressentir, e de versões várias sobre um incidente.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

O triângulo amoroso de O Delfim

             Na obra, encontramos uma espécie de triângulo amoroso, motivado pelo auditório e constituído por Tomás Manuel, Maria das Mercês e Domingos:
            Tomás fica no topo do triângulo, por causa do seu estatuto de chefe incontestado e incontestável, situado num plano superior ao das outras duas personagens. Maria das Mercês e Domingos aproximam-se por virtude do seu estatuto de inferioridade, ela por pertencer ao género feminino, ele por ser criado, maneta e mestiço. Ao viverem sob o domínio de Tomás Manuel, a aproximação dos dois irá promover um desequilíbrio na narrativa: ao cometerem adultério, tudo rui à sua volta, ambos morrem e, com a sua morte, brota um outro tempo para a população da Gafeira, que passará a ter livre acesso à Lagoa.
            Deste modo, podemos concluir que a forma de Tomás Manuel era aparente, visto que bastaram duas personagens de condição inferior e sem poder para mudarem todos os “valores antigos” a que o Engenheiro teimava em se agarrar.
            Por outro lado, este adultério conduz a uma mudança que simboliza a ideia de que a ditadura também poderia ser derrubada, desde que as pessoas se unissem contra o então governo de Marcelo Caetano, também ele considerado o “delfim” de Salazar.

domingo, 20 de novembro de 2022

Caracterização de Domingos


             À semelhança do que sucede com o Delfim, Domingos surge rodeado de vários epítetos: Domingos, criado, ironicamente escudeiro, mestiço, etc., sempre em função das características profissionais ou físicas.
            Esta personagem surge muito próxima do patrão, no entanto consuma o adultério com a esposa daquele, de quem também parece estar dependente. É verdade que procurou o Padre Novo dois dias antes da consumação do ato para fugir dali. Tratar-se-ia de uma tentativa desesperada para evitar qualquer desgraça?
            Domingos tem várias razões para odiar o patrão: tem de tratar dos cães, por quem não parece ter grande afeto; por outro lado, a sua própria deformação física constitui razão suficiente para tornar amargo um homem «mestiço», que não se pode identificar por completo quer com a etnia branca quer com a negra. Apesar de tudo isso, não detesta Tomás Manuel, antes mantém com ele uma relação quase filial e de fidelidade, baseada no medo, demonstrando, assim, não possuir qualquer consciência de classe.
            Domingos é “maneta e mestiço… a assopear palavrões, cortado pelo sol e a balançar o braço decepado (…) diante das feras (…) tornou-se frio (…) falou-lhes em tom comedido (…) com força e tão curto (…) movimentos precisos e eficazes da mão. Mão arguta (…) mão controlada.”, é uma figura que domina as situações, ou pelo menos há frieza, domínio, argúcia e controlo que chegam para dominar completamente as feras. É possível que Domingos tenha atingido o seu limite e não esteja mais disposto a ser humilhado. Também se poderá levantar a hipótese de a personagem ter sido usada como um objeto por ambos os membros do casal.
            Por último, tendo em conta a época em que a obra foi escrita – ditadura salazarista e período colonial –, Domingos representa o africano que foi escravizado e usado durante séculos, até ao dia em que ganhou consciência da sua condição e do seu direito à autonomia.

Caracterização de Maria das Mercês


             Maria das Mercês preenche o papel da mulher na ideologia dominante dos anos 60 do século XX em Portugal, simbolizado pela povoação da Gafeira (metonímia).
            Segundo a doutrina de Salazar, a vida em sociedade deveria assentar em três princípios: Deus, Pátria e Família, os quais se deveriam aplicar tanto a homens como a mulheres. No entanto, no primeiro caso, bastava que mantivessem a fachada no que respeitava a Deus e à Família, visto que da defesa da Pátria não podiam eximir-se, no contexto da guerra colonial. Assim sendo, o peso das instituições recaía todo sobre as mulheres e tudo era feito para que elas se mantivessem afastadas do pecado, ou seja, da sua sexualidade, e presas à procriação, porque elas eram o esteio da Família e, como havia guerra em África, deveriam apoiar incondicionalmente os homens, sendo boa mãe, boa esposa, boa irmã, boa filha, etc. Maria das Dores é a burguesa alienada, produto da ideologia do estado Novo, conforme se pode comprovar através do seguinte quadro:
 

Deus

Pátria

Família

a Igreja

a retaguarda amável

7 anos de casamento

o colégio de freiras

o serviço da esposa

A infertilidade só poderia ser feminina (vide Memorial do Convento)

as dádivas aos pobres

o sorriso à chegada

a obediência ao marido

a ceia de Natal com os trabalhadores

 

o ensino do criado

 
            O marido ausenta-se e deixa-a sozinha, entregue a si própria: “… dias sem fim a fazer tricot, a odiar os cães… fumando, cozendo bolos…”, “Sete anos de esposa, a passear de cá para lá”. A libertação da sua sensibilidade contida ocorre através de pequenos prazeres secretos como os passeios a cavalo e a masturbação.
            Neste contexto, Maria das Mercês aparece como inabitável, infecundo, incapaz de dar um filho ao casal. É a voz do povo que se faz ouvir: a mulher podia arcar com a exclusividade destas culpas, ao contrário do homem, que ficaria socialmente diminuído se tal lhe acontecesse.
            Chega um momento em que ela não pode suportar mais a situação incongruente, pelo que alguma coisa terá de mudar. O mesmo teria de suceder à sociedade portuguesa da época, que vivia à margem do mundo, pelo que a mudança seria necessária, o que veio a concretizar-se com o 25 de abril de 1974, acontecimento que teria grandes repercussões na evolução do papel social da mulher.
            Por último, a vida de Maria das Mercês ficará marcada pelo «crime perfeito», como dizia o marido sempre que se referia ao caso da Dama das Unhas de Prata, que provocara a morte «post coitum», visto que ela causa o falecimento de Domingos ao relacionar-se com ele sexualmente, já que este tinha “coração de passarinho”. O que a terá levado a agir assim? O ciúme? A raiva de ser preterida? O desejo de vingança? O despertar da sua sexualidade? Se, posteriormente, se suicidou, teve um acidente durante a fuga ou foi assassinada pelo marido, ninguém o sabe.

Caracterização do Delfim


             O Delfim é Tomás Manuel da Palma Bravo, a personagem principal da obra, o Engenheiro, a figura em torno da qual gira a narrativa e que é o elemento que possibilita o retrato da situação que se vivia em Portugal na época.

            Ele é o herdeiro das tradições machistas, não só da família, mas também do homem português, característico da burguesia salazarista. De acordo com as normas da época, Tomás Palma Bravo deveria ser superior a tudo e a todos, deveria ser o protetor, o primeiro em qualquer ocasião, o chefe, o sábio, o forte, superior aos trabalhadores, fossem eles camponeses-operários, criados, criadas, mas sobretudo em relação às mulheres, incluindo a própria esposa, dado que era inaceitável que qualquer mulher fosse considerada igual ao homem. De facto, na época o género feminino era encarado como um português de segunda, cuja existência se deveria resumir a atender aos desejos e necessidades do homem. Assim, este jamais se poderia mostrar fraco. Mesmo que o fosse, teria de encobrir a sua fraqueza, mesmo que através dos seus mastins, como é exemplificado pelo excerto seguinte: “o engenheiro anunciado por dois cães…”.

            Ao longo da obra, tomamos conhecimento dos vários epítetos com que é tratado: o nome próprio completo, o Engenheiro, o Amo, o Infante, Tomás Manuel (como todos os seus antepassados), membro do casal Palma Bravo, Tomás Manuel Undécimo. Seja qual for a denominação, ele é o Delfim, o centro das atenções da Gafeira e de todos os seus habitantes.

            Tomás Manuel é o chefe incontestado cujos suportes são a mulher e o criado. De facto, Maria das Mercês deveria acompanhá-lo perante o povo da Gafeira, enquanto Domingos o deveria fazer durante as suas visitas a bares e prostíbulos, tudo de acordo com a sua vontade e sem terem o direito de exigir ou sugerir o que quer que fosse, desde logo porque não eram considerados seus iguais. Só ele sabia tudo, ele era o senhor de ambos. Nada deveria ser discutido e nunca seria contestado. Só ele detinha o poder.

            Na realidade, nem sequer tem a coragem de se submeter aos exames necessários para esclarecer a origem da infertilidade do casal, isto é, determinar quem era estéril: ele ou a esposa, questão que ficará por esclarecer: “… não o vejo a ir à porta do médico e sujeitar-se a um atestado de esterilidade.” Tomás Manuel esconde o problema através das suas deambulações noturnas e do desprezo pela ciência e pelos seus avanços: “Esperma em ampolas, ao que a malta chegou. Mandarem-nos pares de cornos devidamente esterilizados e ainda por cima ficarmos muito agradecidos à Ciência.” Tudo isto demonstra uma grande falta de segurança e de confiança em si próprio. Tal como sucede, por exemplo, em Os Maias, no célebre episódio das Corridas de Cavalos no Hipódromo, vemos aqui o contraste entre o ser e o parecer em torno desta personagem, que insiste no culto das aparências. No final, tudo se desmorona em seu redor, desde logo porque nada nem ninguém pode parar a evolução do tempo e das mentalidades.

            A relação que mantém com Domingos é semelhante à que teria com um animal de estimação. Tomás Manuel diverte-se ao ver a falta de desenvoltura do criado em certas áreas, procurando iniciá-lo nos vícios e desinteressando-se completamente por saber sequer se isso dizia alguma coisa ao outro. Tudo se justifica pelo paternalismo do Delfim, que pretende fazer de Domingos um bom machista como ele, o que não se concretiza, dado que o criado depende completamente do Engenheiro, a única pessoa com quem convive, daí as suas falas sistemáticas com os cães e o entendimento especialíssimo com as máquinas.

Conceção das personagens em O Delfim

             Como não se trata de uma obra tradicional, as personagens são objeto de um tratamento diferente do habitual num romance.

            Em O Delfim, as personagens representam diferentes tipos sociais, planas, dado que não apresentam evolução interior, os seus comportamentos não se alteram ao longo da narrativa. A única exceção será Maria das Mercês, uma personagem redonda ou modelada, e talvez Domingos. Ambos ganham força interior e mudam o seu percurso existencial.

sábado, 19 de novembro de 2022

Símbolos do tempo em O Delfim


             Um dos elementos que está associado ao tempo é a lagartixa, descrita como “brasão do tempo”, da transição da posse da lagoa e da própria lagoa.
            A lagartixa, aparentemente inerte no seu muro de pedra, simboliza o tempo, a humildade e a pequenez. Ela simboliza a inércia, a preguiça sábia e familiar, a vigilância tranquila (dado que tem consciência de que a mudança é inevitável), daí a sua presença vigilante e constante nos muros e umbrais das portas. Como gosta de estar ao sol, simboliza também a procura da luz, aqui interpretada como busca do saber. A sua ação, em perseguição de um novo saber, de uma nova luz, de uma mudança, dá-se sem chamar a atenção. As únicas figuras que reparam na sua atividade são os “bons portugueses”.
            Outro símbolo do tempo é a transição da lagoa, que passa das mãos do Engenheiro e dos seus antepassados para as do Regedor e dos Noventa e Oito que ele representa. Esta alteração representa a mudança dos próprios tempos, do poder e da ordem, que se opera de forma subversiva.
            Um último símbolo é a lagoa, que representa a vida e constitui uma fonte de alimento para os camponeses-operários. Para o Engenheiro, a lagoa é somente mais um símbolo do poder inútil que, nas mãos do Noventa e Oito, passará a simbolizar evolução e progresso, quer do tempo, quer das estruturas sociais, económicas e ideológicas.

O tempo psicológico em O Delfim


             Para os camponeses-operários, o tempo passa lentamente, mas de forma incisiva, enquanto para Maria das Mercês ele demora a passar e está intimamente ligado à sua solidão: “Sete anos de esposa a passear de lá para cá (…). De vez em quando a jovem esposa julga ouvir o telefone. Outras vezes o motor de um automóvel; noutras o portão a girar nos gonzos, como se isso fosse possível sem que os cães dessem sinal. Esses malditos. Mas o telefone morreu há muito, porque as amigas jogam na vila, em casa umas das outras (…).” Para Tomás Manuel, o tempo parou para dignificar os antepassados e ele o fará parar quando e se for sepultado na lagoa, o símbolo perpétuo do seu poder sobre ela e que já se adivinha ameaçada pela nova ordem: “Bem enterrado no fundo do lodo que é para a miuçalha dos peixes não me chega (…). O que me admira é o orgulho daqueles peixes (…) saberem que entraram em agonia e puxarem pelo resto das forças para cumprir a última vontade.”
            Tal como o tempo mítico-histórico é simbólico pela lagartixa, a referência constante aos peixes e à lagoa remete para o tempo mitológico absoluto, aquele em que a casa da lagoa e a respetiva comarca constituíam marcos da presença e do poder dos ungidos Palma Bravo: “(…) se até agora foi a minha família quem governou a lagoa, não hei de ser eu quem a vai perder.”
            Por outro lado, o Regedor e o narrador simbolizam o tempo da mudança. O Regedor lidera a lagoa e o grupo dos Noventa e Oito, passa licenças e olha em frente do fundo da sua loja, sempre atento a todos os movimentos e a todas as mudanças. Relativamente à personagem-narrador, observa o largo e a muralha a partir da sua janela, que forma o seu posto de vigia, e reflete criticamente sobre os acontecimentos que decorreram no tempo em que esteve ausente.
            Durante uma longa noite de insónia, que antecede a caçada, revive o convívio do ano anterior com os Palma Bravo, relê a Monografia, cedida pela estalajadeira, analisa todas as informações que o Velho-Dum-Só-Dente, o Regedor, o Batedor e a estalajadeira lhe deram. O narrador formula os seus próprios juízos sobre os acontecimentos, mas questionando-os sempre.
            Seja como for, o foco da sua atenção é, claramente, a agitação da lagartixa e dos camponeses-operários: é sobre eles que tece os comentários mais subversivos, é a partir deles que as suas divagações se aprofundam, são as suas ações que desnudam as mudanças que se deram durante o tempo em que este fora da Gafeira.

O tempo histórico em O Delfim


             Em O Delfim, o Tempo transmite a ideia de mudança, operada nas estruturas e revolução económico-social. Deste modo, temos o retrato fiel de uma época e da sua atmosfera conturbada.
            As personagens da obra refletem estas posições: de um lado estão o Engenheiro e Maria das Mercês, que fazem parte da elite que dominara até então e cuja história se perdera no tempo e cujos antepassados, todos de nome Tomás Manuel (este facto atesta a circularidade do tempo, isto é, a história que se repete de geração em geração), tinham um denominador comum: o poder. Do outro lado encontram-se os camponeses-operários que vão passar a usufruir das riquezas da lagoa, algo que já faziam, embora de forma clandestina, o que é exemplificado pelo festim das enguias. Note-se ainda que quanto mais ganham consciência da mudança mais se embrenham na clandestinidade, uma característica da década de 60 do século XX, e mais anseiam pela sua chegada, o que se reflete numa grande consciencialização, a qual se transmite por saberem que, juntos, conseguirão manter a posse da lagoa, dominando os seus destinos.
            Deste modo, poderemos concluir que O Delfim constitui a metáfora da situação que se vivia em Portugal na época (anos 50 e 60), visto que a Gafeira se multiplica pelo país fora, e o desejo premente de mudança. Esta noção só está, porém, ao alcance dos “bons portugueses”, dos que sabem jogar constantemente ao “olho vivo”, com a vida e com o Sr. Escritor (o tratamento de “senhor” é uma autoironia a propósito da condição de um indivíduo que é menosprezado por uma sociedade anticultural), dos que sabem ler nas entrelinhas o texto e a História. Por outro lado, não é uma casualidade a narrativa situar-se numa zona rural e que o camponês é associado ao operariado. De facto, é esta associação que vai fazer do camponês-operário alguém com consciência e vontade próprias em termos políticos, que se espera que alastre por toda a Gafeira.

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

O tempo da história de O Delfim


             O narrador-escritor visitou a Gafeira pela primeira vez em outubro de 1966, data da abertura da caça, e regressou um ano volvido, na mesma altura, com o mesmo propósito: “Cá estou. Precisamente no mesmo quarto onde, faz hoje um ano, me instalei na minha visita à aldeia e onde, com divertimento e curiosidade, fui anotando as minhas conversas com Tomás Manuel da Palma Bravo, o Engenheiro.”

            Os acontecimentos da obra não seguem uma ordem linear, antes são apresentados de forma pretensamente desorganizada e deliberadamente equívoca ou multifacetada, para que o leitor não concentre a sua atenção na história do adultério e se dedique, tal como o Escritor, à análise e reflexão sobre outras mudanças que ocorreram na Gafeira.

            Neste contexto, o Tempo assume enorme relevância, desde logo porque é o responsável pela nova realidade que vai surgindo. Para o narrador, o Tempo assume várias facetas: tanto pode ser uma lagartixa, “um estilhaço sensível e vivaz debaixo daquele sono aparente”, “o tempo, o nosso tempo amesquinhado”, como uma nora a girar, a escorrer pela tarde. O Tempo é um relógio cego, um relógio de maquinismos perros. A roda vai rodando minuto a minuto, sente-se, mas não se vê. Este tempo circular, repetitivo, é tão subtil como as mudanças que traz à Gafeira.

            De facto, o tempo da narrativa é circular, contém em si o início e o fim de tudo; passado e presente tornam-se iguais ao futuro e contribuem para a construção do vivido e, sobretudo, para diluir e esbater as fronteiras entre a realidade e o imaginário. Por outro lado, o tempo condensa os acontecimentos, mas não os esclarece, antes procura passar uma mensagem subversiva, através de jogos de elipses, metáforas, repetições. Além disso, ao fundir o presente com o passado, apontando já para o futuro que se entrevê, as divagações do narrador permitem ao leitor compreender os movimentos da Gafeira e dos seus habitantes, camponeses que o mesmo tempo transformou também em operários.

            O narrador, que é solidário com os camponeses-operários e com a lagartixa, aparentemente imóvel, narra na primeira pessoa do presente do indicativo, o que indica que pertence àquele tempo e apoia a mudança: “Que é o tempo para estas mulheres? (…) E para o Regedor? (…) E para mim que sou o Sr. Escritor? Pergunto e tenho comigo a resposta num pedaço de papel que trouxe há pouco na loja do Regedor, uma licença passada por ordem dos habitantes da aldeia e não por Tomás, o Engenheiro. O tempo, o bom sentido do tempo, está nesta prova. A lagartixa sacudiu-se no seu sono de pedra.” Esta referência positiva ao tempo (“o bom sentido”) está ligado à mudança, representada pela licença de caça e em quem a passa, porque implica uma mudança profunda ao nível da própria estrutura social e económica da Gafeira. É por isso que a lagartixa se agita.

            O presente veiculado pelo narrador, a mistura entre passado e presente impede a identificação exata dos diversos momentos da história dos Palma Bravo e da Gafeira. Será particularmente difícil determinar com exatidão os acontecimentos relativos ao adultério e mesmo o relacionamento entre o narrador e os habitantes da casa da lagoa.

            Já no que concerne aos acontecimentos ligados à lagoa propriamente dita, são claros e relatados pelo Regedor, sem quaisquer omissões. Aqui o tempo foi inexorável. Trata-se de um tempo diferente, um tempo que tem de conter em si elementos condizentes com os habitantes da Gafeira, o Homo Lusitaniensis Sp., como lhe chama o narrador, um tempo que tem de ser um retrato fiel da mudança entre a modorra apática e a sociedade de consumo fielmente retratada nos blusões dos filhos dos emigrantes. O tempo na Gafeira retrata uma realidade alienada da qual a ação não é representativa, visto que peca por total falta de clareza e de movimento criativo.

            Para criar toda esta ambiência, o autor vai recorrer à narrativa ulterior, anterior, intercalada e simultânea. No que diz respeito à narrativa ulterior, ela é representada pelas recordações do Escritor, pelas citações que faz de falas de outras personagens, pelas reproduções dos seus apontamentos do ano anterior, algo que viu ou ouviu. A intercalada, por oposição, apresenta a narração que se antecipa ao acontecimento e nela se incluem tanto a mudança como o adultério. A narração intercalada respeita àquela que ocorre entre vários momentos da ação; e simultânea àquela que é feita ao mesmo tempo que acontece a ação.

            Esta anacronia reflete-se na aparente anarquia do tempo da história, que tão depressa nos transporta até ao passado, através de analepses (“volto-me antes para o Largo e, sem querer, torno à manhã do ano passado em que assisti à aparição do casal Palma Bravo depois da missa.”) , como nos antecipa o futuro, por meio de prolepses (“«A Barca do Inferno» – resumo da minha janela, pensando no triste fim que os espera.”), da Gafeira.

            Existe ainda o tempo da escrita, transposto para o presente, mas que já existia no passado. Exemplo disso são os apontamentos iniciados em 1966, aquando da primeira visita, e continuados na segunda e que, eventualmente, se misturam com a própria escrita do romance.

O espaço de O Delfim


             O escritor situa-se à janela, o que nos leva a coloca-lo na posição de um observador, não um observador ocasional, mas esclarecido, visto que já tinha estado anteriormente na Gafeira, onde conheceu algumas personagens, nomeadamente a família Palma Bravo; visto que já conhece a história da povoação através da Monografia do Termo da Gafeira; visto que tem curiosidade.
            Ele está num primeiro andar a rever e a pensar. Em quê? “(…) Nisto tudo, na aldeia, nos montes em redor e nos seres que a habitam e que formigam lá em baixo.” Note-se na expressividade deste excerto. Por um lado, a presença da forma verbal «formigam» significa que as pessoas são vistas por ele à distância, o que propicia a sua atenção e, simultaneamente, o distanciamento que é necessário à clareza de pensamento. Por outro lado, a expressão espacial «lá em baixo» estabelece o contraste entre o narrador, situado «cá», isto é, no quarto, e os outros. Estes considerandos são importantes, na medida em que cada personagem se define em termos de espaço e é a partir da Lagoa que os habitantes de Gafeira medem o mundo, enquanto o escritor o faz solitariamente a partir do seu quarto.
            Esta oposição entre espaços é muito importante, visto que a obra relata uma história de mortes trágicas e a luta pela posse de um determinado espaço físico – a Lagoa. De facto, a personagem Palma Bravo defendo o direito, suspeito, à sua posse exclusiva, enquanto os «camponeses-operários» querem-na para si. Estes últimos acabam por a deter em virtude da degeneração da aristocracia, o que faz com que o tempo circular da Gafeira assuma um sentido progressista e avance para um futuro que não repete o poderio dos Palma Bravo. Deste modo, podemos concluir que esse espaço geográfico constitui um espaço de luta onde cada personagem faz o que está ao seu alcance para conquistar a Lagoa.
            Por outro lado, o quarto é o local onde o escritor se quer fazer representar como numa «fotografia de álbum», todavia esta contém pouco de álbum de família, dado que não é possível encarar a personagem-narrador de frente. Ela olha pela janela, como já foi referido anteriormente, observa a Gafeira e pressente a Lagoa.
            Em termos de estilo, convém notar dois traços característicos da escrita de José Cardoso Pires. Por um lado, o escritor procura mais mostrar as coisas, ao estilo de uma câmara cinematográfica, em vez de as descrever. O cenário onde decorre a ação vai sendo construído à medida que se lhe acrescentam elementos, como, por exemplo, a mesa, a janela, a galinhola, o pato, etc. Cabe ao leitor preencher esse vazio descritivo. Esta fuga à minúcia é uma característica de tipo não naturalista. Nos casos em que Cardoso Pires descreve um espaço de forma mais pormenorizada, faz uso da prosa poética, da qual se obtém um efeito de não precisão. Por outro, o escritor parece preferir o nome ao adjetivo, mais uma vez na tentativa de implicar o leitor na narrativa, dando-lhe a oportunidade de construir o espaço em que a ação se desenrola. Isto não significa que o adjetivo não seja usado; é-o, de facto, mas sobretudo na descrição das personagens, que têm de ser apresentadas de forma mais precisa.
 
1. Gafeira
 
            A personagem-narrador observa a Gafeira a partir da janela do seu quarto, uma localidade que não existe na realidade.
            Outra questão a ter em conta é o significado do vocábulo. Se consultarmos o dicionário, veremos que aquele nome significa «sarna leprosa que ataca os animais; gafa; doença que ataca o gado bovino, causando o inchaço das pálpebras», etc. Assim sendo, podemos concluir que a palavra está associada a doença – atentemos no facto de a lagoa da obra possuir termas e lamas curativas.
            Além disso, convém ter presente que se trata de uma terra caracterizada pelo nevoeiro e pelos fumos diversos que dificultam e encobrem a visão, que é dominada por uma aristocracia decadente, que é marcada por um regime de censura da livre circulação de ideias, que é um espaço de luta, habitado por personagens que são ou virão a ser amputadas, hidrópicas, isto é, figuras doentes que sofrem de alguma doença física ou psicológica. Assim sendo, tendo em conta estes dados, á fácil concluir que o espaço da Gafeira é simbólico: constitui o retrato de um país oprimido, coberto de História e de mitos, conservador e desfasado no tempo, cada vez mais abandonado pelos seus habitantes, a meio caminho entre a agricultura e a indústria, em suma, uma metonímia de um certo Portugal.
 
2. Largo
 
            A palavra «Largo» é grafada no texto em itálico, à semelhança de outros elementos textuais.
            O narrador descreve este espaço como um local «… grande demais, inútil, sem sentido, apesar de estar no coração da comunidade». Esta descrição informa o leitor de que o Largo perdeu o seu sentido por se tratar de um povoado cada vez menor e por as atenções estarem concentradas essencialmente na Lagoa.
            Quando descreve a muralha que envolve o Largo, o narrador estatui o seguinte: «(…) o paredão figura mais como vulto, fantasma familiar, do que propriamente como muro. Isto num certo sentido.» Este excerto demonstra que o narrador pretende conduzir o leitor na interpretação da muralha enquanto metáfora de algo. Mais à frente podemos ler isto: «Pois é, mas agora o largo é o que se vê. Uma muralha, um espectro. Mais exatamente, um terreiro enfeitado de argolas.» Esta passagem, juntando à anterior, mostra claramente que a narrativa é construída de forma a criar dois níveis de leitura: um, superficial, denotativo; o outro, simbólico, que exige decifração. Terá esta opção narrativa a ver com o facto de a obra ter sido escrita numa época de censura, que obrigava os autores a socorrerem-se de metáforas e símbolos cuja decifração não estava ao alcance de todos os leitores?
            Para concluir, convém reter ainda que, não obstante o Largo ser apresentado como um terreiro vazio, possui alguma vida.

3. Igreja
 
            A igreja é um espaço igualmente simbólico. Ela está unida à muralha, levando a sua sombra “uma mensagem antecipada noite; ou, se preferirem, uma insinuação de trevas posta a circular pela muralha em pleno dia para tornar o largo mais só (…)”. Estes dois elementos configuram uma metáfora da situação opressora que o regime de Salazar impunha a Portugal.
            No que diz respeito ao interior do edifício, o narrador nada diz, visto que tal descrição é descartável, visto que a igreja apenas está identificada enquanto motivo para a crítica ao Estado Novo, cuja ideologia assentava em três pilares: Deus, Pátria e Família.
            A História diz-se que a Igreja enquanto instituição esteve concluída com a situação política vigente então, não usando a sua proeminência para confrontar o regime ditatorial que não respeitava os direitos humanos. No entanto, poderemos questionar se o papel da Igreja se resume unicamente a ajudar a muralha na sua missão opressora? Enquanto espaço, representa, de facto, a disforia, com a sua sombra asfixiante, contudo aparece reabilitada na pessoa do Padre Novo.
            Os três membros do clero presentes na obra simbolizam coisas diferentes: o Abade Agostinho Saraiva, uma personagem de ficção, representa o passado; o Padre Benjamim Tarroso, representa o presente enquanto continuação do passado; o Padre Novo, que constitui um exemplo de catolicismo contestatário, como o foi o bispo do Porto, por exemplo, representa o presente, perspetiva de futuro.
            Por outro lado, convém reter que o Padre Novo é jogador do Olho Vivo, “um passatempo patriótico, exclusivo dos bons portugueses”, o que significa que, mesmo dentro da Igreja, havia almas que possuíam um espírito mais lúcido e atual do que os seus chefes, que acreditavam na democracia, no progresso social, e que, por isso, eram consideradas figuras subversivas. Muitas delas foram perseguidas, presas e torturadas pela PIDE. Por outro lado, é importante notar que o Padre Novo é também conhecido por Padre Vaga-Lume, por fazer sinais com os faróis do carro, avisando, assim, os camponeses que algo não estava bem: o Engenheiro tinha sido avistado na bomba da Shell.
 
4. A loja do Regedor
 
            O Regedor, tal como o Padre Novo, não possui nome próprio, pelo que constitui também uma personagem-tipo. A sua loja é um espaço comercial característico das aldeias do interior do país. Tem quase tudo o que é indispensável à sobrevivência das pessoas, desde fósforos a farinha, tudo disposto numa desorganização arrumada que é controlada pelo dono. Por outro lado, a loja está forrada de editais e é bafienta, refletindo claramente o baixo nível de vida da maioria da população portuguesa da época e o estado débil da economia nacional, que, até há pouco mais de um século, era praticamente medieval. Aliás, esta última palavra, ou um seu sinónimo, surge várias vezes ao longo do texto. Observe-se o rol das contas de um agricultor para o seu assalariado em 1861 ou a forma como a administração paternalista controla o salário do trabalhador, dando-lho, mas em pequenas doses, para o manter na sua dependência.
            Simbolizam também este estado de subdesenvolvimento a furgoneta do almocreve que abastece igualmente a povoação; o facto de a loja acumular as funções de junta de freguesia, o que indicia que o estado não disponibilizava meios para a manutenção dignas das suas instituições; o silêncio fechado das viúvas de vivos; a festa de Natal, os cachecóis e os presentes para os filhos dos camponeses-operários, que constituem ainda marcas de um regime paternalista patrocinado pelo Engenheiro, que pratica a “caridade”.
            Para além de representar a versão oficial do contar das mortes, por ter lido os autos, o Regedor também tem uma história subversiva para contar: a criação de uma cooperativa – uma associação de caçadores que conseguiu o direito de exploração da caça na lagoa, o que representa uma viragem no tempo, isto é, um triunfo do povo sobre a classe não produtora.
            A loja é suficientemente sossegada e pachorrenta para permitir conversas que não se podem ter noutros lugares, dado que termos como “política” e “progresso” não podem ser pronunciadas em todo o lado. Como sói dizer-se, as paredes tinham ouvidos e existia sempre o perigo de quem pisava o risco ser denunciado à polícia. Note-se, porém, que estas conversas falavam de política precisamente por a evitarem, mas nomeando-a: “Nada de política, nada que não fosse rigorosamente dentro da lei”.
            Na parede da loja, pode ver-se um calendário com os seguintes dizeres: John M. da Cunha – Grocery Store & Meat Market – Newark, N. J. O objeto remete, assim, para gente que está emigrada noutros locais e que é recordada diversas vezes, o que é confirmado pela frequente passagem de “viúvas de vivos” pelo espaço narrativo.
 
5. O café
 
            A pensão onde está hospedado o narrador situa-se no fim da rua que vai desaguar no largo e defronte àquela está o café, que conquistou alguma freguesia às “tabernas sonolentas” daquele espaço.
            O café é o local de encontro da aldeia, onde todos vão, desde o habitante ao forasteiro caçador. Por isso, o narrador evita esse espaço, para preservar o seu estatuto de homem empenhado na recordação e na observação. Para além disso, é fácil adivinhar o que lá se passa; as conversas entre o Cauteleiro e o Batedor ou entre caçadores são conhecidas. Por outro lado, é lá que se sabem todas as notícias, desde logo porque o café tem uma televisão, e é lá também que o narrador fica a conhecer grande parte da narrativa enviesada do Cauteleiro. Deste podemos, podemos concluir que este espaço funciona para o Escritor como fonte de informação, mas mais ainda como espaço de oposição. Esta personagem é bastante solitária, pelo que, quando dialoga com alguém, o faz normalmente para obter alguma informação, caso contrário é encontrado no quarto, “no seu posto”, como um “guerreiro das letras”.
 
6. A casa da lagoa
 
            Ad usum Delphini, ou seja, “para uso do Delfim”, é a legenda que o narrador imagina para a casa dos Palma Bravo.
            Mas, afinal, o que é o Delfim? De acordo com o dicionário, o delfim é o primogénito, o herdeiro do trono de França. Ora, se jogarmos ao “olho vivo”, podemos fazer a seguinte associação: herdeiro – Palma Bravo – Delfim – Marcelo Caetano.
            A casa da lagoa é o território exclusivo dos Palma Bravo. É a partir deste espaço que algumas personagens se definem, como, por exemplo, a esposa e o criado mestiço, que representa as ex-colónias portuguesas em África. Por outro lado, a casa acompanha a história da família aristocrática, pelo que, através dela, ficamos a conhecer alguns dos antepassados do Engenheiro.
            Anteriormente, a casa era maior, no entanto, após o terramoto da pólvora, isto é, uma explosão que ocorreu quando um antepassado preparava pólvora para ajudar o exército que pretendia manter a situação política que existia, obrigou a que tivessem de a reconstruir mais pequena. O edifício assenta sobre uma adega – o bodegón. A parte superior é constituída pelos quartos, pela cozinha e, mais importante, pelo estúdio, uma grande sala que o Engenheiro mandou envidraçar para melhor ver e ser visto. Abaixo dos jarrões da varanda sem grades situa-se o pátio, o território do Domingos, o criado. Um pouco mais abaixo estende-se a fumosa lagoa.
 
7. A Lagoa
 
            A Lagoa constitui o espaço referencial por excelência: é a partir dela que os camponeses-operários medem o universo. Isto significa que o largo morreu e que a lagoa passou a ser o móbil da luta entre o Engenheiro e os camponeses-operários e que essa luta é ganha por aqueles que Fernão Lopes apelidou “arraia-miúda”. Esta lógica de tensão entre os espaços é o que marca o lugar do homem no mundo. Salazar, quando declarou que quem não estava com ele estava contra ele, demarcou claramente o espaço político de Portugal durante o seu longo consulado. De um lado, situava-se uma minoria, enquanto no outro estavam todos aqueles – aos milhares – que, mesmo não se envolvendo ativamente no movimento antifascista, ansiavam pela democracia, pelo progresso social e, consequentemente, se opunham ao regime.
            Efetivamente, tudo passa pela Lagoa, cujas águas são contraditórias: milagrosas, queimam, são o sepulcro, o desejo, o motivo de pesca clandestina. Por ser simbólica, cada pessoa tem a sua forma particular de a tornar sua, o que faz com que parte do seu simbolismo permaneça sempre nebuloso.
            A Lagoa é “uma ilha de água cercada de terra”, tal como Portugal é uma península cercada de água e, como ela, ligada à vida por uma estreita passagem. A personagem-narrador conhece-a bem, bem como aos animais que a habitam, e concede-lhe algumas das passagens mais poéticas da obra, em suma, ama-a.
            Quanto mais é nomeada, mais carga simbólica adquire, exatamente o percurso inverso ao das personagens, como é o caso, por exemplo, do Engenheiro, que vai sendo descaracterizado à medida que se vai carregando de epítetos: Infante, Tomás Manuel Undécimo, mitómano que repete os gestos dos avós e se apropria dos seus traços de personalidade mais marcantes, o que vinca a sua falta de personalidade. Como foi referido, com a Lagoa sucede exatamente o oposto: quanto mais epítetos lhe são acrescentados (um halo, uma nuvem, queima, é milagrosa, santa, maldita, omnipresente, criada pela pata de um ganso mitológico) mais mítica se torna.
            Palma Bravo defende este espaço com todas as suas forças, pois sente que o seu fim está próximo, isto é, não propriamente a sua existência física, mas o seu modo de vida, o seu poder. Por seu turno, o narrador urde a sua teia para mostrar as várias facetas da sua degenerescência, como o questionamento sobre a sua virilidade, ou o pôr em causa do regime paternalista, como sucedeu na festa de Natal. De facto, a Lagoa é tão importante para Palma Bravo que é nela que deseja fazer a sua campa, o que indicia também a sua avareza atávica, dado que, não tendo um delfim a quem a deixar como herança, não a vai largar mesmo depois de morto, ou seja, não cede o poder a ninguém. Esta personagem é um homem completamente acabado, apesar dos seus trinta anos, visto que, não obstante limitado, lê os sinais do tempo que são claramente desfavoráveis a quem pretenda perpetuar uma circularidade temporal.
            A ociosidade pode causar o esvaziamento do ser, o que, juntamente com a provável impotência ou homossexualidade de Palma Bravo, fazem da sua esposa, Maria das Mercês, uma mulher “inabitável”, logo insatisfeita, infeliz. Para ela, a Lagoa é um espaço disfórico, isto é, difícil de suportar, um autêntico fardo. Aí, vive sozinha, sem ninguém do seu estatuto cultural com quem possa conviver. Deste modo, aliena-se, embora tente desesperadamente iludir a sua existência vazia fazendo tricô para a caridade, com a televisão e as revistas. Quando finalmente procura realizar-se como mulher com Domingos, que “tinha coração de passarinho” e que, por isso, falece após o coito ou ainda durante o ato na sua cama, ela foge, alucinada pelo medo da vingança do marido ou pelo pânico do pecado da mulher burguesa, acabando por morrer numa zona pantanosa da Lagoa, a Urdiceira.
 
8. O espaço interior
 
            O espaço interior possui uma grande relevância em O Delfim, desde logo porque as confidências, as conversas clandestinas, por serem subversivas, só ocorrem em espaços fechados como o bodegón, o carro do Padre Novo e a loja do Regedor. Exemplo disso é a conversa travada entre a personagem-narrador e o Engenheiro no bodegón (capítulo VIII), durante a qual falam de política e de convicções e que vem demonstrar a supremacia argumentativa do Escritor relativamente ao Engenheiro, que se vai tornando previsível, tão grande é a sua estreiteza de vistas e a circularidade do seu discurso.
            A sabedoria do Engenheiro resido no que viveu e numa sequência de provérbios e máximas bastante duvidosos, dado que, para um provérbio que diz sim, existe outro, igualmente válido, que diz não. Esses provérbios e máximas não vão além do senso comum, enquanto a argumentação do Escritor possui uma finura socrática que o faz prevalecer sobre o marialvismo do seu antagonista.
            O bodegón é um espaço exclusivamente masculino, tal como o Bar da Shell, ou o Cais do Sodré. Porém, mesmo dentro do estúdio existem lugares demarcados. Assim, Maria das Mercês senta-se no chão entre as revistas (Elle, Horoscope, Flama), enquanto o marido fica deitado no maple, com um braço pendurado para a bebida que repousa em cima do tapete. Deste modo, a figura feminina situa-se num plano inferior relativamente ao marido e de igualdade em relação à bebida, o que a reduz à condição de objeto “ad usum Delphini”. De acordo com o lema Deus, Pátria e Família, o papel da mulher é servir o homem, zelando pelo seu bem-estar e pelo da restante família. Por outro lado, o Engenheiro é uma figura marialva, isto é, um macho dominador. Como já foi referido, Maria das Dores é uma personagem marcada pela solidão, para a qual também contribui o facto de não ter filhos, daí ter de se distrair e ocupar o tempo com algo: o tricô para a caridade, a televisão, as revistas, a confeção de bolos, o fumar de cigarros nervosos…
            Dentro das quatro paredes da sua casa, Palma Bravo domina todas as conversas, reduzindo qualquer tentativa de participação da mulher ao silêncio, recorrendo ao sarcasmo ou a qualquer tema que lhe seja desagradável, monopolizando-a. Porém, apesar de Maria das Dores ser uma mulher paciente e resignada, são visíveis nela sinais que indiciam uma mudança, como, por exemplo, a descoberta do seu corpo, ou o aconselhar Domingos a não acompanhar o amor ao Cais do Sodré. Maria das Dores tanto questiona a autoridade do homem que a tornou inabitável que acaba por sucumbir ao adultério com Domingos, com as trágicas consequências já referidas. Mas isso sucede num tempo posterior. Por agora, existe uma rivalidade entre a mulher e o criado, pois ela sente que muita da atenção que é dedicada a Domingos lhe deveria ser dispensada a ela.
            Parece clara a existência de um rancor muito profundo em Maria das Dores e dedicado ao criado, uma sombra do marido, já que Palma Bravo entende ser o Pigmalião, ou seja, o criador de Domingos. Talvez por isso ela concretize o adultério com este, o que faz com que o Engenheiro sofra uma dupla traição, o que só parece comprovar a degenerescência da sua força. Esta espécie de triângulo amoroso é particularmente complexa, nomeadamente por o Engenheiro ser impotente, homossexual ou ambas as coisas. Nas palavras do Cauteleiro, “(…) quem muito fornica acaba fornicado”.

sábado, 4 de junho de 2022

A ação de O Delfim


             Antes de mais, convém distinguir entre ação e intriga. A primeira pode ser considerada como a sucessão de factos e acontecimentos em que as personagens participam, enquanto a segunda consiste na organização dos elementos narrativos, de modo a criar um enredo que se desenvolve segundo uma relação de causa-efeito.

            Feita a distinção, poderemos considerar que a intriga de O Delfim é uma história de adultério e de morte: o adultério de Maria das Mercês e Domingos e a morte de ambos. Esta história, porém, não é o motivo da narrativa. Note-se, por outro lado, que a versão oficial dos acontecimentos é conhecida somente pelo Regedor e pelo Padre Novo e nunca é divulgada, pois há a tendência para considerar o oficial como sinónimo de verdadeiro, e não é a verdade o que Cardoso Pires pretende esclarecer com a sua obra.

            Se se estabelecesse uma verdade, o leitor tranquilizar-se-ia, prestando talvez menos atenção aos factos, aparentemente secundários, que envolvem a ação. Note-se, todavia, que é precisamente nesse segundo plano da narrativa que se encontra a ação principal. Qual é ela? A decadência do regime feudal imposto pela personagem Palma Bravo e a consequente transição do simbólico poder da lagoa para os Noventa e oito. É essa a ação principal do livro.

Explicação do título de O Delfim


            O nome «delfim» pode significar várias coisas:

• animal da família dos golfinhos;

• filho varão;

• senhor feudal da França; Luís XV;

• peça do jogo de xadrez: bispo.

            Para compreendermos o seu significado, temos também de prestar atenção às palavras do próprio narrador da obra, que nos diz o seguinte: “Depois, se quisesse escrever, passaria apenas o dedo na capa encarquilhada do livro que o acompanha (ou numa tábua de relíquia, ou numa pedra) e sulcaria o pó com esta palavra: Delfim. Seria uma dedicatória. Um epitáfio, também. Seis letras que, de qualquer maneira, não teriam mais do que a justa e exata duração que a poeira consentisse até as cobrir de novo.”

            A partir do excerto, podemos concluir que o título da obra é «pó que ao pó há de voltar”, é dedicatória e epitáfio que se resume a seis letras.

            Por outro lado, o título é profundamente irónico, dado que o termo «delfim» remete para a ideia de uma personagem que é uma espécie de príncipe, mas uma pessoa podre por dentro, isto é, com uma aparência exterior esplendorosa, mas a apodrecer por dentro. O «delfim» é um engenheiro, uma espécie de latifundiário parasita, um «playboy» que passeia o seu automóvel de marca, que é muito rico e sustentado pelo regime, mantendo, por exemplo, os seus trabalhadores reprimidos. Em suma, a obra coloca-nos perante o retrato de uma pessoa que, no fundo, é um país: Portugal.

sábado, 23 de abril de 2022

Contexto de O Delfim

             A obra O Delfim procura dar uma imagem de Portugal dos anos 60 do século XX, ou seja, em pleno Estado Novo.

            Por norma, os regimes totalitários surgem e ganham preponderância a seguir a períodos de crise. Foi o que sucedeu em Portugal no início do século passado. O nosso país participou na I Guerra Mundial e, na sequência deste conflito, atravessou uma profunda crise política e económica, marcada pela ascensão e quedas de sucessivos governos, alguns dos quais duraram apenas meses, e pelo disparar da dívida externa. A instabilidade era tão grande (causada não apenas pelos estilhados do conflito bélico, mas também pelo estertor da Monarquia e pela I República) que, no início da década de 30, António de Oliveira Salazar, que já era ministro das Finanças, ascendeu ao posto de primeiro-ministro e centralizou na sua pessoa a direção de diversas pastas ministeriais.

            A política protagonizada por Salazar focou-se essencialmente na contenção das despesas internas, o que evitou ou atenuou a dependência de capitais externos, e na criação de uma moeda forte. Já em 1928 o estadista dizia o seguinte: “Advoguei sempre uma política de administração, tão clara e tão simples como a pode fazer qualquer boa dona de casa – política comezinha e modesta que consiste em se gastar bem o que se possui e não se despender mais do que os próprios recursos.”

            O sucesso desta política valeu-lhe o título de “Salvador da Pátria” e um grande prestígio interno que lhe permitiu fazer passar legislação diversa, como a Constituição de 1933, organizações fascistas, como a Mocidade Portuguesa, bem como o código do Ato Colonial, que estatuía a política para as colónias portuguesas e lhe permitiriam conservar o poder até à sua morte. Este rumo político fez com que Portugal continuasse a ser um país agrícola e pouco industrializado, o que levou José Cardoso Pires a criar um neologismo metafórico: camponeses-operários.

            Estes princípios tinham como finalidade a proteção do Estado, cujo lema era “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”, no entanto, na realidade, em vez de visarem o bem geral da população, apenas protegiam a classe dominante que gravitava em torno do governo. Em contrapartida, o Estado Novo reprimia todo aquele que fizesse ondas e criticasse a situação, estabelecendo medidas como a proibição da existência de partidos políticos, a censura de ideias, a proibição da livre associação de pessoas, a abolição do direito à greve e por aí fora.

            O clima de repressão era legitimado pelas leis promulgadas pelo governo e sustentado pela polícia política – a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), futura DGS (Direção-Geral de Segurança), que, anteriormente, já tinha tido outras designações e se foi aperfeiçoando ao longo do tempo.

            A PIDE exercia a sua ação de forma implacável e causando o terror entre a população, perseguindo, prendendo pessoas sem justa causa, torturando-as e mantendo-as em seu poder pelo tempo que entendesse, sem culpa formada e sem qualquer julgamento. Por outro lado, possuía uma rede de informadores que fazia com que as pessoas receassem expressar qualquer opinião contrária ou crítica do governo, instigava os filhos a denunciarem os pais, as mulheres os maridos, massacrava e torturava os seus presos em verdadeiros campos de concentração, como o Tarrafal, ou em prisões, como a de Peniche, de onde fugiu Álvaro Cunhal, o célebre dirigente do PCP.

            Outro mecanismo central da política do Estado Novo era a censura, que controlava a rádio, a televisão, os jornais e diversas outras publicações, e apenas permitia que fosse publicado aquilo que interessa ao governo. José Cardoso Pires foi uma das muitas pessoas perseguidas pelo governo salazarista. Convém notar que, no que diz respeito à publicação de livros, não existia censura prévia, sendo aqueles censurados somente depois de estarem impressos, o que fazia com que alguns escritores e editores tivessem de praticar a pior forma de censura possível – a autocensura –, visto que, se a obra fosse recusada pelo sistema, para além da perseguição política, haveria prejuízo económico para o editor, que corria o risco de ver o seu negócio ser encerrado pela PIDE.

            Curiosamente, O Delfim não foi censurado. Porquê? É possível que tal se tenha ficado a dever à chamada “primavera marcelista”, um período caracterizado por alguma abertura política; no entanto, segundo o próprio Cardoso Pires a razão prender-se-ia com o «iletrismo» dos censores. Na verdade, grande parte dos censores sabia ler e escrever, mas muitos eram analfabetos funcionais, isto é, liam, porém não sabiam interpretar aquilo que liam ou então possuíam um fraco nível cultural. Assim sendo, textos que, por exemplo, aludissem aos tiranos da Grécia antiga podiam ser censurados apenas por conterem as palavras «tiranos» ou «democracia». No caso de censores de obras literárias, muitos fiavam-se na autocensura dos escritores e editores, pelo que, por inércia, ou por terem muito trabalho (leia-se muito que censurar), não liam os livros na totalidade.

            Curiosamente, a entrada de Portugal na NATO, organização de que foi fundador, em 1949, parece ter contribuído para que o país passasse, lá fora, uma imagem de país democrático. Em alternativa, poderá ter sucedido que o mundo fechou, pela razão exposta, os olhos à situação que por cá se vivia durante muito tempo. A NATO, a que pertenciam unicamente países de regime democrático, concedeu-nos algum prestígio internacional, graças apenas a acordos de conveniência estabelecidos com aquela e que se ficaram a dever, sobretudo, à extrema importância estratégica do Portugal continental e ilhas, isto é, as demais nações ocidentais viam no nosso país um travão a qualquer tentativa de avanço comunista. Além disso, há que considerar também a grande importância económica de colónias como Angola e Moçambique, nas quais as grandes potências mundiais detinham muitos interesses económicos.

            Por outro lado, Portugal apresentou a sua candidatura a membro de pleno direito da ONU (a que não pertencia por se ter declarado neutral na Segunda Guerra Mundial) em 1946, mas foi recusada, situação que se iria repetir até 1955, ano da adesão efetiva. Apesar de ter apresentado a sua candidatura com base num convite de três membros permanentes do Conselho de Segurança (França, Estados Unidos e Reino Unido), o nosso país foi confrontado com o veto da União Soviética. Embora a adesão constituísse uma grande vitória da diplomacia externa portuguesa, o próprio Salazar tinha objeções à mesma. Um dos efeitos positivos da entrada na ONU foi a realização de eleições, que, no entanto, foram uma farsa. Além disso, só nos finais dos anos 60 as mulheres obtiveram o direito ao voto e os votos dos homens nas eleições anteriores foram completamento falseados pelo regime salazarista, que fez com que os seus partidários votassem várias vezes, ou até que se atribuíssem votos a pessoas já falecidas.

            Deste modo, podemos concluir que o Portugal retratado em O Delfim era um país amordaçado, sem liberdade de qualquer tipo, atrasado e governado por um regime autoritário e opressivo. No entanto, não lhe foi possível abafar tudo nem conter algumas vozes que ousaram traduzir o descontentamento geral da população e afirmar a insustentabilidade da política nacional. Por outro lado, convém não esquecer que existiam partidos a operar na clandestinidade, como o PCP, e inúmeros opositores ao regime, que aumentaram em número e de tom após a eclosão da guerra colonial em 1961. A partir desse momento, várias pessoas fugiram de Portugal para escapar ao recrutamento para a guerra e/ou para não serem perseguidas e presas pela PIDE.
 

Análise de O Delfim

 I. Biografia de José Cardoso Pires


II. Bibliografia de José Cardoso Pires


III. Prémios e distinções de José Cardoso Pires


IV. Contexto de O Delfim


V. Título


VI. Ação e intriga


VII. O espaço


VIII. O tempo

            1. Tempo da história

            2. Tempo histórico

            3. Tempo psicológico

            4. Símbolos do tempo


IX. Personagens

            1. Conceção / Composição

            2. Caracterização / Retrato

                    2.1. Delfim

                    2.2. Maria das Mercês

                    2.3. Domingos

                    2.4. Triângulo amoroso

                    2.5. Narrador / Personagem / Escritor-furão

                    2.6. Hospedeira

                    2.7. Regedor

                    2.8. Cauteleiro e Batedor

                    2.9. Padre Novo


X. Simbolismo e metáfora

            1. O fumo

            2. O furão

            3. Os cães

            4. Os vaga-lumes

            5. O retrato de Manolete

            6. Edwin Aldrin


XI. Narrador

            1. Presença

            2. Ciência

            3. Autorreflexividade


XII. Narratário


XIII. Linguagem

        1. Registos de língua

        2. Léxico


XIV. A literatura oral

        1. A linguagem popular

        2. Provérbios e outras expressões populares


XV. A verosimilhança


XVI. A intertextualidade


Bibliografia

. CORDEIRO, Herlander, et al. O Delfim de José Cardoso Pires – Propostas para uma leitura orientada. Porto Editora, Porto, s/d.

. CRUZ, Liberto, José Cardoso Pires, Análise Crítica e Seleção de Textos. Editora Arcádia, Lisboa, 1972.

. LEPECKI, Maria Lúcia, José Cardoso Pires. 1.ª ed., Col. Margens do Texto. Moraes Editora, Lisboa, 1977.

. CERDEIRA, Teresa Cristina, José Cardoso Pires: uma vírgula na paisagem. Roma, Bulzoni Editora, 2003.

. SANTANA, Rafael, De fornicadores fornicados: uma leitura de O Delfim de José Cardoso Pires.

 

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