Português: O tempo da história de O Delfim

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

O tempo da história de O Delfim


             O narrador-escritor visitou a Gafeira pela primeira vez em outubro de 1966, data da abertura da caça, e regressou um ano volvido, na mesma altura, com o mesmo propósito: “Cá estou. Precisamente no mesmo quarto onde, faz hoje um ano, me instalei na minha visita à aldeia e onde, com divertimento e curiosidade, fui anotando as minhas conversas com Tomás Manuel da Palma Bravo, o Engenheiro.”

            Os acontecimentos da obra não seguem uma ordem linear, antes são apresentados de forma pretensamente desorganizada e deliberadamente equívoca ou multifacetada, para que o leitor não concentre a sua atenção na história do adultério e se dedique, tal como o Escritor, à análise e reflexão sobre outras mudanças que ocorreram na Gafeira.

            Neste contexto, o Tempo assume enorme relevância, desde logo porque é o responsável pela nova realidade que vai surgindo. Para o narrador, o Tempo assume várias facetas: tanto pode ser uma lagartixa, “um estilhaço sensível e vivaz debaixo daquele sono aparente”, “o tempo, o nosso tempo amesquinhado”, como uma nora a girar, a escorrer pela tarde. O Tempo é um relógio cego, um relógio de maquinismos perros. A roda vai rodando minuto a minuto, sente-se, mas não se vê. Este tempo circular, repetitivo, é tão subtil como as mudanças que traz à Gafeira.

            De facto, o tempo da narrativa é circular, contém em si o início e o fim de tudo; passado e presente tornam-se iguais ao futuro e contribuem para a construção do vivido e, sobretudo, para diluir e esbater as fronteiras entre a realidade e o imaginário. Por outro lado, o tempo condensa os acontecimentos, mas não os esclarece, antes procura passar uma mensagem subversiva, através de jogos de elipses, metáforas, repetições. Além disso, ao fundir o presente com o passado, apontando já para o futuro que se entrevê, as divagações do narrador permitem ao leitor compreender os movimentos da Gafeira e dos seus habitantes, camponeses que o mesmo tempo transformou também em operários.

            O narrador, que é solidário com os camponeses-operários e com a lagartixa, aparentemente imóvel, narra na primeira pessoa do presente do indicativo, o que indica que pertence àquele tempo e apoia a mudança: “Que é o tempo para estas mulheres? (…) E para o Regedor? (…) E para mim que sou o Sr. Escritor? Pergunto e tenho comigo a resposta num pedaço de papel que trouxe há pouco na loja do Regedor, uma licença passada por ordem dos habitantes da aldeia e não por Tomás, o Engenheiro. O tempo, o bom sentido do tempo, está nesta prova. A lagartixa sacudiu-se no seu sono de pedra.” Esta referência positiva ao tempo (“o bom sentido”) está ligado à mudança, representada pela licença de caça e em quem a passa, porque implica uma mudança profunda ao nível da própria estrutura social e económica da Gafeira. É por isso que a lagartixa se agita.

            O presente veiculado pelo narrador, a mistura entre passado e presente impede a identificação exata dos diversos momentos da história dos Palma Bravo e da Gafeira. Será particularmente difícil determinar com exatidão os acontecimentos relativos ao adultério e mesmo o relacionamento entre o narrador e os habitantes da casa da lagoa.

            Já no que concerne aos acontecimentos ligados à lagoa propriamente dita, são claros e relatados pelo Regedor, sem quaisquer omissões. Aqui o tempo foi inexorável. Trata-se de um tempo diferente, um tempo que tem de conter em si elementos condizentes com os habitantes da Gafeira, o Homo Lusitaniensis Sp., como lhe chama o narrador, um tempo que tem de ser um retrato fiel da mudança entre a modorra apática e a sociedade de consumo fielmente retratada nos blusões dos filhos dos emigrantes. O tempo na Gafeira retrata uma realidade alienada da qual a ação não é representativa, visto que peca por total falta de clareza e de movimento criativo.

            Para criar toda esta ambiência, o autor vai recorrer à narrativa ulterior, anterior, intercalada e simultânea. No que diz respeito à narrativa ulterior, ela é representada pelas recordações do Escritor, pelas citações que faz de falas de outras personagens, pelas reproduções dos seus apontamentos do ano anterior, algo que viu ou ouviu. A intercalada, por oposição, apresenta a narração que se antecipa ao acontecimento e nela se incluem tanto a mudança como o adultério. A narração intercalada respeita àquela que ocorre entre vários momentos da ação; e simultânea àquela que é feita ao mesmo tempo que acontece a ação.

            Esta anacronia reflete-se na aparente anarquia do tempo da história, que tão depressa nos transporta até ao passado, através de analepses (“volto-me antes para o Largo e, sem querer, torno à manhã do ano passado em que assisti à aparição do casal Palma Bravo depois da missa.”) , como nos antecipa o futuro, por meio de prolepses (“«A Barca do Inferno» – resumo da minha janela, pensando no triste fim que os espera.”), da Gafeira.

            Existe ainda o tempo da escrita, transposto para o presente, mas que já existia no passado. Exemplo disso são os apontamentos iniciados em 1966, aquando da primeira visita, e continuados na segunda e que, eventualmente, se misturam com a própria escrita do romance.

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