A obra O Delfim procura dar uma imagem de Portugal dos anos 60 do século XX, ou seja, em pleno Estado Novo.
Por norma, os regimes totalitários
surgem e ganham preponderância a seguir a períodos de crise. Foi o que sucedeu
em Portugal no início do século passado. O nosso país participou na I Guerra
Mundial e, na sequência deste conflito, atravessou uma profunda crise política
e económica, marcada pela ascensão e quedas de sucessivos governos, alguns dos
quais duraram apenas meses, e pelo disparar da dívida externa. A instabilidade
era tão grande (causada não apenas pelos estilhados do conflito bélico, mas
também pelo estertor da Monarquia e pela I República) que, no início da década
de 30, António de Oliveira Salazar, que já era ministro das Finanças, ascendeu
ao posto de primeiro-ministro e centralizou na sua pessoa a direção de diversas
pastas ministeriais.
A política protagonizada por Salazar
focou-se essencialmente na contenção das despesas internas, o que evitou ou
atenuou a dependência de capitais externos, e na criação de uma moeda forte. Já
em 1928 o estadista dizia o seguinte: “Advoguei sempre uma política de
administração, tão clara e tão simples como a pode fazer qualquer boa dona de
casa – política comezinha e modesta que consiste em se gastar bem o que se
possui e não se despender mais do que os próprios recursos.”
O sucesso desta política valeu-lhe o
título de “Salvador da Pátria” e um grande prestígio interno que lhe permitiu
fazer passar legislação diversa, como a Constituição de 1933, organizações fascistas,
como a Mocidade Portuguesa, bem como o código do Ato Colonial, que estatuía a
política para as colónias portuguesas e lhe permitiriam conservar o poder até à
sua morte. Este rumo político fez com que Portugal continuasse a ser um país
agrícola e pouco industrializado, o que levou José Cardoso Pires a criar um
neologismo metafórico: camponeses-operários.
Estes princípios tinham como
finalidade a proteção do Estado, cujo lema era “Tudo pela Nação, nada contra a
Nação”, no entanto, na realidade, em vez de visarem o bem geral da população,
apenas protegiam a classe dominante que gravitava em torno do governo. Em
contrapartida, o Estado Novo reprimia todo aquele que fizesse ondas e
criticasse a situação, estabelecendo medidas como a proibição da existência de
partidos políticos, a censura de ideias, a proibição da livre associação de
pessoas, a abolição do direito à greve e por aí fora.
O clima de repressão era legitimado
pelas leis promulgadas pelo governo e sustentado pela polícia política – a PIDE
(Polícia Internacional de Defesa do Estado), futura DGS (Direção-Geral de
Segurança), que, anteriormente, já tinha tido outras designações e se foi
aperfeiçoando ao longo do tempo.
A PIDE exercia a sua ação de forma
implacável e causando o terror entre a população, perseguindo, prendendo
pessoas sem justa causa, torturando-as e mantendo-as em seu poder pelo tempo
que entendesse, sem culpa formada e sem qualquer julgamento. Por outro lado,
possuía uma rede de informadores que fazia com que as pessoas receassem
expressar qualquer opinião contrária ou crítica do governo, instigava os filhos
a denunciarem os pais, as mulheres os maridos, massacrava e torturava os seus
presos em verdadeiros campos de concentração, como o Tarrafal, ou em prisões,
como a de Peniche, de onde fugiu Álvaro Cunhal, o célebre dirigente do PCP.
Outro mecanismo central da política
do Estado Novo era a censura, que controlava a rádio, a televisão, os jornais e
diversas outras publicações, e apenas permitia que fosse publicado aquilo que
interessa ao governo. José Cardoso Pires foi uma das muitas pessoas perseguidas
pelo governo salazarista. Convém notar que, no que diz respeito à publicação de
livros, não existia censura prévia, sendo aqueles censurados somente depois de
estarem impressos, o que fazia com que alguns escritores e editores tivessem de
praticar a pior forma de censura possível – a autocensura –, visto que, se a
obra fosse recusada pelo sistema, para além da perseguição política, haveria
prejuízo económico para o editor, que corria o risco de ver o seu negócio ser
encerrado pela PIDE.
Curiosamente, O Delfim não
foi censurado. Porquê? É possível que tal se tenha ficado a dever à chamada
“primavera marcelista”, um período caracterizado por alguma abertura política;
no entanto, segundo o próprio Cardoso Pires a razão prender-se-ia com o
«iletrismo» dos censores. Na verdade, grande parte dos censores sabia ler e
escrever, mas muitos eram analfabetos funcionais, isto é, liam, porém não
sabiam interpretar aquilo que liam ou então possuíam um fraco nível cultural.
Assim sendo, textos que, por exemplo, aludissem aos tiranos da Grécia antiga
podiam ser censurados apenas por conterem as palavras «tiranos» ou «democracia».
No caso de censores de obras literárias, muitos fiavam-se na autocensura dos
escritores e editores, pelo que, por inércia, ou por terem muito trabalho
(leia-se muito que censurar), não liam os livros na totalidade.
Curiosamente, a entrada de Portugal
na NATO, organização de que foi fundador, em 1949, parece ter contribuído para
que o país passasse, lá fora, uma imagem de país democrático. Em alternativa,
poderá ter sucedido que o mundo fechou, pela razão exposta, os olhos à situação
que por cá se vivia durante muito tempo. A NATO, a que pertenciam unicamente
países de regime democrático, concedeu-nos algum prestígio internacional,
graças apenas a acordos de conveniência estabelecidos com aquela e que se
ficaram a dever, sobretudo, à extrema importância estratégica do Portugal
continental e ilhas, isto é, as demais nações ocidentais viam no nosso país um
travão a qualquer tentativa de avanço comunista. Além disso, há que considerar
também a grande importância económica de colónias como Angola e Moçambique, nas
quais as grandes potências mundiais detinham muitos interesses económicos.
Por outro lado, Portugal apresentou
a sua candidatura a membro de pleno direito da ONU (a que não pertencia por se
ter declarado neutral na Segunda Guerra Mundial) em 1946, mas foi recusada,
situação que se iria repetir até 1955, ano da adesão efetiva. Apesar de ter
apresentado a sua candidatura com base num convite de três membros permanentes
do Conselho de Segurança (França, Estados Unidos e Reino Unido), o nosso país
foi confrontado com o veto da União Soviética. Embora a adesão constituísse uma
grande vitória da diplomacia externa portuguesa, o próprio Salazar tinha
objeções à mesma. Um dos efeitos positivos da entrada na ONU foi a realização
de eleições, que, no entanto, foram uma farsa. Além disso, só nos finais dos
anos 60 as mulheres obtiveram o direito ao voto e os votos dos homens nas
eleições anteriores foram completamento falseados pelo regime salazarista, que
fez com que os seus partidários votassem várias vezes, ou até que se
atribuíssem votos a pessoas já falecidas.
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