O escritor situa-se à janela, o que
nos leva a coloca-lo na posição de um observador, não um observador ocasional,
mas esclarecido, visto que já tinha estado anteriormente na Gafeira, onde
conheceu algumas personagens, nomeadamente a família Palma Bravo; visto que já
conhece a história da povoação através da Monografia do Termo da Gafeira;
visto que tem curiosidade.
Ele está num primeiro andar a rever
e a pensar. Em quê? “(…) Nisto tudo, na aldeia, nos montes em redor e nos seres
que a habitam e que formigam lá em baixo.” Note-se na expressividade deste
excerto. Por um lado, a presença da forma verbal «formigam» significa que as
pessoas são vistas por ele à distância, o que propicia a sua atenção e,
simultaneamente, o distanciamento que é necessário à clareza de pensamento. Por
outro lado, a expressão espacial «lá em baixo» estabelece o contraste entre o
narrador, situado «cá», isto é, no quarto, e os outros. Estes considerandos são
importantes, na medida em que cada personagem se define em termos de espaço e é
a partir da Lagoa que os habitantes de Gafeira medem o mundo, enquanto o
escritor o faz solitariamente a partir do seu quarto.
Esta oposição entre espaços é muito
importante, visto que a obra relata uma história de mortes trágicas e a luta
pela posse de um determinado espaço físico – a Lagoa. De facto, a personagem
Palma Bravo defendo o direito, suspeito, à sua posse exclusiva, enquanto os
«camponeses-operários» querem-na para si. Estes últimos acabam por a deter em
virtude da degeneração da aristocracia, o que faz com que o tempo circular da
Gafeira assuma um sentido progressista e avance para um futuro que não repete o
poderio dos Palma Bravo. Deste modo, podemos concluir que esse espaço
geográfico constitui um espaço de luta onde cada personagem faz o que está ao
seu alcance para conquistar a Lagoa.
Por outro lado, o quarto é o local
onde o escritor se quer fazer representar como numa «fotografia de álbum»,
todavia esta contém pouco de álbum de família, dado que não é possível encarar
a personagem-narrador de frente. Ela olha pela janela, como já foi referido
anteriormente, observa a Gafeira e pressente a Lagoa.
Em termos de estilo, convém notar
dois traços característicos da escrita de José Cardoso Pires. Por um lado, o
escritor procura mais mostrar as coisas, ao estilo de uma câmara
cinematográfica, em vez de as descrever. O cenário onde decorre a ação vai
sendo construído à medida que se lhe acrescentam elementos, como, por exemplo,
a mesa, a janela, a galinhola, o pato, etc. Cabe ao leitor preencher esse vazio
descritivo. Esta fuga à minúcia é uma característica de tipo não naturalista. Nos
casos em que Cardoso Pires descreve um espaço de forma mais pormenorizada, faz
uso da prosa poética, da qual se obtém um efeito de não precisão. Por outro, o
escritor parece preferir o nome ao adjetivo, mais uma vez na tentativa de
implicar o leitor na narrativa, dando-lhe a oportunidade de construir o espaço
em que a ação se desenrola. Isto não significa que o adjetivo não seja usado;
é-o, de facto, mas sobretudo na descrição das personagens, que têm de ser
apresentadas de forma mais precisa.
1. Gafeira
A personagem-narrador observa a
Gafeira a partir da janela do seu quarto, uma localidade que não existe na
realidade.
Outra questão a ter em conta é o significado
do vocábulo. Se consultarmos o dicionário, veremos que aquele nome significa
«sarna leprosa que ataca os animais; gafa; doença que ataca o gado bovino,
causando o inchaço das pálpebras», etc. Assim sendo, podemos concluir que a
palavra está associada a doença – atentemos no facto de a lagoa da obra possuir
termas e lamas curativas.
Além disso, convém ter presente que
se trata de uma terra caracterizada pelo nevoeiro e pelos fumos diversos que
dificultam e encobrem a visão, que é dominada por uma aristocracia decadente,
que é marcada por um regime de censura da livre circulação de ideias, que é um
espaço de luta, habitado por personagens que são ou virão a ser amputadas,
hidrópicas, isto é, figuras doentes que sofrem de alguma doença física ou psicológica.
Assim sendo, tendo em conta estes dados, á fácil concluir que o espaço da
Gafeira é simbólico: constitui o retrato de um país oprimido, coberto de
História e de mitos, conservador e desfasado no tempo, cada vez mais abandonado
pelos seus habitantes, a meio caminho entre a agricultura e a indústria, em
suma, uma metonímia de um certo Portugal.
2. Largo
A palavra «Largo» é grafada no texto
em itálico, à semelhança de outros elementos textuais.
O narrador descreve este espaço como
um local «… grande demais, inútil, sem sentido, apesar de estar no coração da
comunidade». Esta descrição informa o leitor de que o Largo perdeu o seu
sentido por se tratar de um povoado cada vez menor e por as atenções estarem
concentradas essencialmente na Lagoa.
Quando descreve a muralha que
envolve o Largo, o narrador estatui o seguinte: «(…) o paredão figura mais como
vulto, fantasma familiar, do que propriamente como muro. Isto num certo
sentido.» Este excerto demonstra que o narrador pretende conduzir o leitor na interpretação
da muralha enquanto metáfora de algo. Mais à frente podemos ler isto: «Pois é,
mas agora o largo é o que se vê. Uma muralha, um espectro. Mais exatamente, um
terreiro enfeitado de argolas.» Esta passagem, juntando à anterior, mostra
claramente que a narrativa é construída de forma a criar dois níveis de
leitura: um, superficial, denotativo; o outro, simbólico, que exige decifração.
Terá esta opção narrativa a ver com o facto de a obra ter sido escrita numa
época de censura, que obrigava os autores a socorrerem-se de metáforas e
símbolos cuja decifração não estava ao alcance de todos os leitores?
Para concluir, convém reter ainda
que, não obstante o Largo ser apresentado como um terreiro vazio, possui alguma
vida.
3. Igreja
A igreja é um espaço igualmente
simbólico. Ela está unida à muralha, levando a sua sombra “uma mensagem
antecipada noite; ou, se preferirem, uma insinuação de trevas posta a circular
pela muralha em pleno dia para tornar o largo mais só (…)”. Estes dois
elementos configuram uma metáfora da situação opressora que o regime de Salazar
impunha a Portugal.
No que diz respeito ao interior do
edifício, o narrador nada diz, visto que tal descrição é descartável, visto que
a igreja apenas está identificada enquanto motivo para a crítica ao Estado
Novo, cuja ideologia assentava em três pilares: Deus, Pátria e Família.
A História diz-se que a Igreja
enquanto instituição esteve concluída com a situação política vigente então,
não usando a sua proeminência para confrontar o regime ditatorial que não respeitava
os direitos humanos. No entanto, poderemos questionar se o papel da Igreja se
resume unicamente a ajudar a muralha na sua missão opressora? Enquanto espaço, representa,
de facto, a disforia, com a sua sombra asfixiante, contudo aparece reabilitada
na pessoa do Padre Novo.
Os três membros do clero presentes
na obra simbolizam coisas diferentes: o Abade Agostinho Saraiva, uma personagem
de ficção, representa o passado; o Padre Benjamim Tarroso, representa o
presente enquanto continuação do passado; o Padre Novo, que constitui um
exemplo de catolicismo contestatário, como o foi o bispo do Porto, por exemplo,
representa o presente, perspetiva de futuro.
Por outro lado, convém reter que o
Padre Novo é jogador do Olho Vivo, “um passatempo patriótico, exclusivo dos
bons portugueses”, o que significa que, mesmo dentro da Igreja, havia almas que
possuíam um espírito mais lúcido e atual do que os seus chefes, que acreditavam
na democracia, no progresso social, e que, por isso, eram consideradas figuras
subversivas. Muitas delas foram perseguidas, presas e torturadas pela PIDE. Por
outro lado, é importante notar que o Padre Novo é também conhecido por Padre
Vaga-Lume, por fazer sinais com os faróis do carro, avisando, assim, os
camponeses que algo não estava bem: o Engenheiro tinha sido avistado na bomba
da Shell.
4. A loja do Regedor
O Regedor, tal como o Padre Novo,
não possui nome próprio, pelo que constitui também uma personagem-tipo. A sua
loja é um espaço comercial característico das aldeias do interior do país. Tem
quase tudo o que é indispensável à sobrevivência das pessoas, desde fósforos a
farinha, tudo disposto numa desorganização arrumada que é controlada pelo dono.
Por outro lado, a loja está forrada de editais e é bafienta, refletindo claramente
o baixo nível de vida da maioria da população portuguesa da época e o estado
débil da economia nacional, que, até há pouco mais de um século, era
praticamente medieval. Aliás, esta última palavra, ou um seu sinónimo, surge
várias vezes ao longo do texto. Observe-se o rol das contas de um agricultor
para o seu assalariado em 1861 ou a forma como a administração paternalista
controla o salário do trabalhador, dando-lho, mas em pequenas doses, para o manter
na sua dependência.
Simbolizam também este estado de
subdesenvolvimento a furgoneta do almocreve que abastece igualmente a povoação;
o facto de a loja acumular as funções de junta de freguesia, o que indicia que
o estado não disponibilizava meios para a manutenção dignas das suas
instituições; o silêncio fechado das viúvas de vivos; a festa de Natal, os
cachecóis e os presentes para os filhos dos camponeses-operários, que
constituem ainda marcas de um regime paternalista patrocinado pelo Engenheiro,
que pratica a “caridade”.
Para além de representar a versão
oficial do contar das mortes, por ter lido os autos, o Regedor também tem uma
história subversiva para contar: a criação de uma cooperativa – uma associação
de caçadores que conseguiu o direito de exploração da caça na lagoa, o que
representa uma viragem no tempo, isto é, um triunfo do povo sobre a classe não
produtora.
A loja é suficientemente sossegada e
pachorrenta para permitir conversas que não se podem ter noutros lugares, dado
que termos como “política” e “progresso” não podem ser pronunciadas em todo o
lado. Como sói dizer-se, as paredes tinham ouvidos e existia sempre o perigo de
quem pisava o risco ser denunciado à polícia. Note-se, porém, que estas
conversas falavam de política precisamente por a evitarem, mas nomeando-a: “Nada
de política, nada que não fosse rigorosamente dentro da lei”.
Na parede da loja, pode ver-se um
calendário com os seguintes dizeres: John M. da Cunha – Grocery Store &
Meat Market – Newark, N. J. O objeto remete, assim, para gente que está
emigrada noutros locais e que é recordada diversas vezes, o que é confirmado
pela frequente passagem de “viúvas de vivos” pelo espaço narrativo.
5. O café
A pensão onde está hospedado o
narrador situa-se no fim da rua que vai desaguar no largo e defronte àquela
está o café, que conquistou alguma freguesia às “tabernas sonolentas” daquele
espaço.
O café é o local de encontro da
aldeia, onde todos vão, desde o habitante ao forasteiro caçador. Por isso, o
narrador evita esse espaço, para preservar o seu estatuto de homem empenhado na
recordação e na observação. Para além disso, é fácil adivinhar o que lá se
passa; as conversas entre o Cauteleiro e o Batedor ou entre caçadores são
conhecidas. Por outro lado, é lá que se sabem todas as notícias, desde logo
porque o café tem uma televisão, e é lá também que o narrador fica a conhecer
grande parte da narrativa enviesada do Cauteleiro. Deste podemos, podemos
concluir que este espaço funciona para o Escritor como fonte de informação, mas
mais ainda como espaço de oposição. Esta personagem é bastante solitária, pelo
que, quando dialoga com alguém, o faz normalmente para obter alguma informação,
caso contrário é encontrado no quarto, “no seu posto”, como um “guerreiro das
letras”.
6. A casa da lagoa
Ad usum Delphini, ou seja, “para
uso do Delfim”, é a legenda que o narrador imagina para a casa dos Palma Bravo.
Mas, afinal, o que é o Delfim? De
acordo com o dicionário, o delfim é o primogénito, o herdeiro do trono de
França. Ora, se jogarmos ao “olho vivo”, podemos fazer a seguinte associação:
herdeiro – Palma Bravo – Delfim – Marcelo Caetano.
A casa da lagoa é o território exclusivo
dos Palma Bravo. É a partir deste espaço que algumas personagens se definem,
como, por exemplo, a esposa e o criado mestiço, que representa as ex-colónias
portuguesas em África. Por outro lado, a casa acompanha a história da família
aristocrática, pelo que, através dela, ficamos a conhecer alguns dos
antepassados do Engenheiro.
Anteriormente, a casa era maior, no
entanto, após o terramoto da pólvora, isto é, uma explosão que ocorreu quando
um antepassado preparava pólvora para ajudar o exército que pretendia manter a
situação política que existia, obrigou a que tivessem de a reconstruir mais
pequena. O edifício assenta sobre uma adega – o bodegón. A parte
superior é constituída pelos quartos, pela cozinha e, mais importante, pelo
estúdio, uma grande sala que o Engenheiro mandou envidraçar para melhor ver e
ser visto. Abaixo dos jarrões da varanda sem grades situa-se o pátio, o
território do Domingos, o criado. Um pouco mais abaixo estende-se a fumosa
lagoa.
7. A Lagoa
A Lagoa constitui o espaço
referencial por excelência: é a partir dela que os camponeses-operários medem o
universo. Isto significa que o largo morreu e que a lagoa passou a ser o móbil
da luta entre o Engenheiro e os camponeses-operários e que essa luta é ganha por
aqueles que Fernão Lopes apelidou “arraia-miúda”. Esta lógica de tensão entre
os espaços é o que marca o lugar do homem no mundo. Salazar, quando declarou
que quem não estava com ele estava contra ele, demarcou claramente o espaço
político de Portugal durante o seu longo consulado. De um lado, situava-se uma
minoria, enquanto no outro estavam todos aqueles – aos milhares – que, mesmo
não se envolvendo ativamente no movimento antifascista, ansiavam pela
democracia, pelo progresso social e, consequentemente, se opunham ao regime.
Efetivamente, tudo passa pela Lagoa,
cujas águas são contraditórias: milagrosas, queimam, são o sepulcro, o desejo,
o motivo de pesca clandestina. Por ser simbólica, cada pessoa tem a sua forma
particular de a tornar sua, o que faz com que parte do seu simbolismo permaneça
sempre nebuloso.
A Lagoa é “uma ilha de água cercada
de terra”, tal como Portugal é uma península cercada de água e, como ela,
ligada à vida por uma estreita passagem. A personagem-narrador conhece-a bem,
bem como aos animais que a habitam, e concede-lhe algumas das passagens mais
poéticas da obra, em suma, ama-a.
Quanto mais é nomeada, mais carga
simbólica adquire, exatamente o percurso inverso ao das personagens, como é o
caso, por exemplo, do Engenheiro, que vai sendo descaracterizado à medida que
se vai carregando de epítetos: Infante, Tomás Manuel Undécimo, mitómano que
repete os gestos dos avós e se apropria dos seus traços de personalidade mais
marcantes, o que vinca a sua falta de personalidade. Como foi referido, com a
Lagoa sucede exatamente o oposto: quanto mais epítetos lhe são acrescentados (um
halo, uma nuvem, queima, é milagrosa, santa, maldita, omnipresente, criada pela
pata de um ganso mitológico) mais mítica se torna.
Palma Bravo defende este espaço com
todas as suas forças, pois sente que o seu fim está próximo, isto é, não
propriamente a sua existência física, mas o seu modo de vida, o seu poder. Por
seu turno, o narrador urde a sua teia para mostrar as várias facetas da sua
degenerescência, como o questionamento sobre a sua virilidade, ou o pôr em
causa do regime paternalista, como sucedeu na festa de Natal. De facto, a Lagoa
é tão importante para Palma Bravo que é nela que deseja fazer a sua campa, o
que indicia também a sua avareza atávica, dado que, não tendo um delfim a quem
a deixar como herança, não a vai largar mesmo depois de morto, ou seja, não
cede o poder a ninguém. Esta personagem é um homem completamente acabado, apesar
dos seus trinta anos, visto que, não obstante limitado, lê os sinais do tempo
que são claramente desfavoráveis a quem pretenda perpetuar uma circularidade
temporal.
A ociosidade pode causar o
esvaziamento do ser, o que, juntamente com a provável impotência ou homossexualidade
de Palma Bravo, fazem da sua esposa, Maria das Mercês, uma mulher “inabitável”,
logo insatisfeita, infeliz. Para ela, a Lagoa é um espaço disfórico, isto é,
difícil de suportar, um autêntico fardo. Aí, vive sozinha, sem ninguém do seu estatuto
cultural com quem possa conviver. Deste modo, aliena-se, embora tente
desesperadamente iludir a sua existência vazia fazendo tricô para a caridade,
com a televisão e as revistas. Quando finalmente procura realizar-se como
mulher com Domingos, que “tinha coração de passarinho” e que, por isso, falece
após o coito ou ainda durante o ato na sua cama, ela foge, alucinada pelo medo
da vingança do marido ou pelo pânico do pecado da mulher burguesa, acabando por
morrer numa zona pantanosa da Lagoa, a Urdiceira.
8. O espaço interior
O espaço interior possui uma grande relevância
em O Delfim, desde logo porque as confidências, as conversas
clandestinas, por serem subversivas, só ocorrem em espaços fechados como o bodegón,
o carro do Padre Novo e a loja do Regedor. Exemplo disso é a conversa travada
entre a personagem-narrador e o Engenheiro no bodegón (capítulo VIII),
durante a qual falam de política e de convicções e que vem demonstrar a
supremacia argumentativa do Escritor relativamente ao Engenheiro, que se vai
tornando previsível, tão grande é a sua estreiteza de vistas e a circularidade
do seu discurso.
A sabedoria do Engenheiro resido no
que viveu e numa sequência de provérbios e máximas bastante duvidosos, dado
que, para um provérbio que diz sim, existe outro, igualmente válido, que diz
não. Esses provérbios e máximas não vão além do senso comum, enquanto a
argumentação do Escritor possui uma finura socrática que o faz prevalecer sobre
o marialvismo do seu antagonista.
O bodegón é um espaço exclusivamente
masculino, tal como o Bar da Shell, ou o Cais do Sodré. Porém, mesmo dentro do
estúdio existem lugares demarcados. Assim, Maria das Mercês senta-se no chão
entre as revistas (Elle, Horoscope, Flama), enquanto o
marido fica deitado no maple, com um braço pendurado para a bebida que repousa
em cima do tapete. Deste modo, a figura feminina situa-se num plano inferior
relativamente ao marido e de igualdade em relação à bebida, o que a reduz à
condição de objeto “ad usum Delphini”. De acordo com o lema Deus, Pátria
e Família, o papel da mulher é servir o homem, zelando pelo seu bem-estar e
pelo da restante família. Por outro lado, o Engenheiro é uma figura marialva,
isto é, um macho dominador. Como já foi referido, Maria das Dores é uma
personagem marcada pela solidão, para a qual também contribui o facto de não
ter filhos, daí ter de se distrair e ocupar o tempo com algo: o tricô para a
caridade, a televisão, as revistas, a confeção de bolos, o fumar de cigarros
nervosos…
Dentro das quatro paredes da sua
casa, Palma Bravo domina todas as conversas, reduzindo qualquer tentativa de
participação da mulher ao silêncio, recorrendo ao sarcasmo ou a qualquer tema que
lhe seja desagradável, monopolizando-a. Porém, apesar de Maria das Dores ser
uma mulher paciente e resignada, são visíveis nela sinais que indiciam uma
mudança, como, por exemplo, a descoberta do seu corpo, ou o aconselhar Domingos
a não acompanhar o amor ao Cais do Sodré. Maria das Dores tanto questiona a
autoridade do homem que a tornou inabitável que acaba por sucumbir ao adultério
com Domingos, com as trágicas consequências já referidas. Mas isso sucede num
tempo posterior. Por agora, existe uma rivalidade entre a mulher e o criado,
pois ela sente que muita da atenção que é dedicada a Domingos lhe deveria ser
dispensada a ela.
Parece clara a existência de um
rancor muito profundo em Maria das Dores e dedicado ao criado, uma sombra do
marido, já que Palma Bravo entende ser o Pigmalião, ou seja, o criador de
Domingos. Talvez por isso ela concretize o adultério com este, o que faz com
que o Engenheiro sofra uma dupla traição, o que só parece comprovar a
degenerescência da sua força. Esta espécie de triângulo amoroso é
particularmente complexa, nomeadamente por o Engenheiro ser impotente,
homossexual ou ambas as coisas. Nas palavras do Cauteleiro, “(…) quem muito
fornica acaba fornicado”.
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