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terça-feira, 12 de março de 2024

Resumo da 14.ª parte - 2.ª crónica: Palavras moribundas

    Em setembro de 1925, White centrou a sua ação na tentativa de determinar aquilo que era do conhecimento de William Smith e que pudesse ter espoletado a sua morte. Deste modo, os agentes interrogam a enfermeira que estava de plantão no hospital no dia em que Smith foi internado e ficaram a saber que a vítima tinha murmurado nomes enquanto dormia, porém ela não teria percebido nenhum. Antes da sua morte, recorda, o homem ter-se-ia encontrado com os irmãos Shoun, dois médios, e com o seu advogado. Estas informações revelam-se muito interessantes, visto que a bala referente ao caso de Anna já havia suscitado suspeitas do agente White sobre os irmãos Shoun, por isso decide questioná-los de novo. Durante esse interrogatório, os dois indivíduos juram que Bill nunca identificou o seu assassino. O advogado de Smith concorda, mas acrescenta que este tinha somente dois inimigos: Ernest, seu irmão, e Hale, o seu tio, informações corroboradas pelos Shoun. Pouco tempo depois, a enfermeira foi convocada à casa de Byran, onde Hale lhe perguntou se Bill Smith já nomeara o seu assassino.

    White descobre, entretanto, que, durante a reunião que manteve no hospital com Bill, James Shoun foi nomeado executor do rico património de Rita. Os Shouns são interrogados pelos promotores sobre a lucidez de Bill no momento em que assinou essa documentação, visto que o agente líder da investigação se apercebe de que a corrupção é um traço característico destes casos. A tutela, apelidada por vezes de «negócio indiano», proporcionou diversas oportunidades para a existência de roubos e apropriações indébitas, esquemas tão ruinosos quanto descarados. Neste contexto, a tribo osage estava plenamente consciente da sua existência, mas pouco podia fazer para os impedir. Mais do que isso, ela estava plenamente consciente de que a riqueza proporcionada pelo território onde habitavam atraía muita gente caucasiana sem escrúpulos, mas com acesso facilitado à burocracia e ao poder.

quinta-feira, 7 de março de 2024

Resumo da 13.ª parte - 2.ª crónica: O filho do carrasco

    Esta parte da obra recorre à analepse para dar conta ao leitor da vida de Tom White. O autor recua até ao momento em que o seu pai, Robert White, se mudou do Tennessee para o Texas no ano de 1870. Posteriormente, quatro anos depois, desposou Maggie, com quem teve cinco filhos e que morreu durante o parto do último, quando Tom, o terceiro da série, contava apenas seis anos.

    Robert, tido por todos como um homem íntegro, foi eleito xerife do condado de Travis, facto que teve várias consequências, desde logo a necessidade de a família passar a viver no interior da prisão do condado, que era um espaço semelhante a uma fortaleza. Outro facto resultante das novas responsabilidades de Robert prendia-se com a exposição à lei a que as crianças eram sujeitas desde tenra idade. Tom recorda que o seu pai tratava de forma semelhante todas as pessoas, independentemente da sua condição social, credo ou etnia. Além disso, lembra-se de episódios que o marcaram para sempre, como a oposição feroz do pai ao linchamento de pessoas, algo que não era estranho à cultura norte-americana do final do século XIX, ou o momento em que aplicou a pena de morte a um indivíduo condenado por estupro, tinha ele doze anos. Estas experiências fizeram com que Tom se opusesse ao que o livro chama “homicídio judicial” e a dilemas morais de vária espécie.

    Quando atingiu a juventude, Tom decidiu juntar-se aos Texas Rangers, juntamente com dois irmãos: Dudley e Doc, enquanto o quarto irmão, Coley, se tornou xerife do condado de Travis, numa espécie de sucessão do pai. Na qualidade de Ranger, Tom conheceu a sua futura esposa, Bessie Patterson. Sucede, porém, que a profissão de xerife não se coadunava com o casamento, pelo que, após a morte de um amigo no exercício da profissão, Tom pediu demissão para se casar com a jovem. Posteriormente, o casal estabeleceu-se em San António e Tom tornou-se detetive ferroviário. Do matrimónio resultaram dois filhos. Em 1917, Tom ingressou no Bureau of Investigation, atraído por uma vida mais ativa e excitante, todavia a morte do seu irmão Dudley em 1918 abalou-o profundamente.

terça-feira, 5 de março de 2024

Análise do episódio das Despedidas em Belém

 
① Síntese dos acontecimentos que medeiam o episódio de Inês de Castro e o da Praia das Lágrimas
 
    Vasco da Gama continua a relatar ao rei de Melinde episódios da História de Portugal. Assim, na sequência da narração da Crise de 1383-1385, que levou D. João I ao trono de Portugal, Gama narra a batalha de Aljubarrota, que contou com muitos portugueses do lado castelhano. De seguida, relata acontecimentos do reinado do Mestre de Avis, nomeadamente a conquista de Ceuta, seguindo-se os reinados de D. Duarte, D. Afonso V e D. João II. Chegado ao reinado de D. Manuel III, narra o sonho profético do rei, no qual dois rios (o Indo e o Ganges) lhe anunciam o nascimento de um novo império.



Contextualização

    A pedido do rei de Melinde, Vasco da Gama narra-lhe a História de Portugal. Neste passo da obra, vai contar a partida da armada de Lisboa em direção à Índia, por meio de uma analepse. Convém relembrar que, de acordo com as regras da epopeia clássica, a narração inicia-se «in media res», isto é, quando a viagem já vai a meio, ou seja, ao largo de Moçambique. Os acontecimentos que medeiam entre a partida de Lisboa e o ponto em que se encontram serão narrados posteriormente através de uma analepse, que se estende do Canto III ao V e que constitui a resposta ao pedido do monarca. Esta analepse O episódio só surge neste momento, dado que está inserido na sequência cronológica da História de Portugal que Vasco da Gama está a narrar ao rei de Melinde.
    Neste episódio, Camões destaca a dor, o sofrimento e o sacrifício das pessoas envolvidas direta (os marinheiros) ou indiretamente (familiares e amigos) na empresa dos Descobrimentos. O Poeta exprime esses sentimentos através da narração que Vasco da Gama faz ao rei de Melinde, narrando, como atrás referido, a partida para a viagem inaugural à Índia.
    Vasco da Gama relata o dia em que o povo da cidade de Lisboa se juntou na praia de Belém para assistir à partida das naus e para se despedir dos amigos e parentes que iam embarcar. Ele e os seus companheiros de viagem saíram em procissão da ermida, passando entre a “gente da cidade” – homens e mulheres, velhos e crianças, mães e esposas. Para diminuir o sofrimento dos que ficavam e dos que partiam, Vasco da Gama determinou que o embarque se fizesse sem as habituais despedidas.

    O tema deste episódio é, portanto, a partida dos marinheiros da praia do Restelo e a despedida dos seus familiares e amigos.


 
Estrutura externa: Canto IV, estâncias 84 a 93.


 
④ Estrutura interna

- Narração: plano da Viagem.

- Narrador: Vasco da Gama, um narrador na primeira pessoa, autodiegético, pois é em simultâneo personagem interveniente na ação.

- Narratário: Rei de Melinde (a quem, a seu pedido, Vasco da Gama conta a História de Portugal).



Estrutura do episódio

1.ª parte – Os preparativos da viagem (est. 84 a 87)

1. Localização da ação:
. no espaço:
“ínclita Ulisseia” (perífrase e metonímia), isto é, Lisboa (v. 1) – a “ínclita Ulisseia” é uma alusão a Ulisses, o célebre criador do cavalo de Troia que, durante a viagem de regresso a sua casa, em Ítaca, teria aportado em Portugal e fundado a cidade de Lisboa, à qual deu o seu nome;
junto ao estuário do Tejo, porto de Lisboa, em Belém, praia do Restelo: os parênteses dos versos 3 e 4, onde estão presentes o hipérbato, a perífrase e a antítese entre «salgado» e «doce» e a metonímia (Neptuno = mar), precisam o local onde decorre a ação – junto ao estuário do Tejo (o estuário é uma zona de transição entre o rio e o mar, ou seja, onde existe uma mistura de água doce do Tejo com a água salgada do mar;

. no tempo:

- reinado de D. Manuel I;

- presente, 8 de julho de 1497, dia da partida da armada de Vasco da Gama rumo à Índia.


2. Ambiente de alvoroço: trata-se do alvoroço geral dos últimos preparativos para o embarque.

 
3. Estado de espírito / Caracterização dos marinheiros (“gente marítima” – perífrase) e dos soldados (“a de Marte” – perífrase):


Continuação da análise aqui: despedidas-em-belem.

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Análise das 10.ª, 11.ª e 12.ª partes da crónica 2 de Assassinos da Lua das Flores

    A investigação de White opera-se a dois níveis: o da simplificação e o da eliminação. As múltiplas teorias que circulam sobre quem teria cometido os crimes – pessoas de fora ou da região, familiares ou estranhos – criam um caos que dificulta todo o processo. Deste modo, White procura destrinçar o que é importante do que é falso ou irrelevante, concentrando-se nas evidências que existem e procurando outras que possam existir, de modo a, por exemplo, eliminar suspeitos. Neste contexto, a metodologia seguida passa por verificar os alibis apresentados por vários desses suspeitos e por verificar os depoimentos das testemunhas. Nem todo o trabalho de investigação se reveste de glamour.

    Curiosamente ou não, a investigação parece encaminhar-se no sentido de encontrar a explicação para o assassinato de Anna Brown, apontando para o envolvimento de Burkhart. Neste contexto, surge um problema adicional e não fácil de superar: o envolvimento de J. Edgar Hoover, cuja impaciência e pressa de obter resultados interfere e complica a investigação, ao introduzir prioridades conflituantes e exponenciando o caos já existente, porém o caminho delineado por White lentamente produz resultados. Ironicamente, porém, tal só é possível através do contacto expansivo e aparentemente desfocado com potenciais testemunhas, um traça característico de muitos romances policiais, que oscilam entre a luz e as sombras quando procuram recriar a sensação de tempo que a violência estilhaça. Na realidade, uma característica comum a quase todas as histórias policiais é que elas começam após o final da ação, pelo que a função de quem investiga se centra na narração dessa ação já concluída. Deste modo, David Graan socorre-se das convenções deste género literário para tornar os eventos narrados mais vivos para o leitor.

    Por outro lado, as sensações de perigo e incerteza sobre diversas questões surge reforçada nestas seções da obra através da relevação de que White está convencido de que alguém está a passar informações de dentro da investigação para o exterior, nomeadamente para quem está envolvido nos crimes. Assim sendo, o autor aproxima o processo da investigação de White do âmbito da espionagem, mais do que de uma investigação criminal pura e dura, pois ele sente-se comos e estivesse a navegar através de um deserto. A referência a esta natureza desértica e selvagem prende-se, por um lado, com o facto de o condado de Osage ser, frequentemente, associado à noção da fronteira, porém, por outro, afasta-se na ideia de que se trata de uma referência ao ambiente natural daquela área dos EUA, pois constitui uma espécie de metáfora do terreno incerto e perigoso criado pelos criminosos, ansiosos por atrapalhar as investigações e evitar, assim, a descoberta da verdade. Neste passo, Graan coloca o leitor perante a perversão da função de um detetive, concretamente quando lhe dá conta que Pike é um detetive privado contratado por William Hale para investigar a morte de Anna que, afinal, tinha como incumbência forjar provas falsas e proteger Bryan Burkhart. Além disso, expõe a White o seu principal antagonista: William Hale.

Resumo da 12.ª parte - 2.ª crónica: Um deserto de espelhos

    O agente White começa a suspeitar que há um infiltrado dentro da investigação e as suspeitas recaem sobre Kelsie Morrison. Um intermediário de Pike, outro detetive particular, aborda a equipa de White e anuncia que aquele conhece a identidade do terceiro homem que acompanharia Anna e Bryan no veículo onde viajavam em Ralston. Pike é convocado e informa que esse terceiro homem era um jogador local, mas a informação revela-se falsa. Depois desta coberta, os agentes pressionam-no até ele admitir que foi contratado para esconder as ações de Bryan na noite do assassinato de Anna e não para investigar e resolver o caso. Além disso, declara que Ernest esteve presente nas reuniões que manteve com Hale e Bryan e que aquele escondeu todas estas informações de Mollie.

Resumo da 11.ª parte - 2.ª crónica: O terceiro homem

    J. Edgar Hoover mostra-se crescentemente ansioso e impaciente pela resolução do caso e convence-se de que Necia Kenny é uma peça-chave da investigação, o que o leva a interrogá-la duas vezes em Washington, DC, apesar de ela ser mentalmente instável. Durante essas entrevistas, ela afirma que Comstock está envolvido nos crimes, algo que o agente White se mostra incapaz de comprovar.

    No final de julho de 1925, o líder da investigação concentra a sua investigação na figura de Bryan Burkhart e envia alguns agentes ao Texas no sentido de aquilatarem da veracidade da história em torno do seu paradeiro depois de ter levado Anna a casa. Além disso, White investiga um relato segundo o qual Anna foi vista na cidade de Ralston na noite em que desapareceu, por isso envia também agentes para o local. Lá, encontram um casal de idade que afirma ter visto Anna e Bryan a viajarem, juntos, num veículo automóvel. Os esforços dos agentes, após esta preciosa informação, concentram-se na descoberta do trajeto que o casal seguiu depois de passar por Ralston, mas a tarefa revela-se de extrema dificuldade. Para apimentar a situação, várias testemunhas afirmam que, com eles, viajava um segundo homem. Mais tarde, os agentes descobrem que Bryan subornou um vizinho, para que este mantivesse silêncio sobre o facto de ele ter regressado a casa ao amanhecer.

Resumo da 10.ª parte - 2.ª crónica: Eliminando o impossível

    Os agentes secretos instalam-se no condado de Osage. Disfarçados de pecuaristas, dois deles travam conhecimento com Hale, enquanto outro se mascara de vendedor de seguros. Em simultâneo, Wren participa em reuniões tribais e o agente White constata, estupefacto, que faltam algumas evidências do inquérito de Anna e nota que nenhuma bala foi encontrada. O homem dedica-se a corroborar álibis, o que permite ilibar dos crimes várias das pessoas que faziam parte do rol de suspeitos, como, por exemplo, Oda Brown ou Rose Osage, mas conclui igualmente que os conspiradores estão ativamente a destruir e fabricar pistas e evidências. Posteriormente, White e Burger recrutam um contrabandista de nome Kelsie Morrison como eu informante, convictos de que o homem poderá constituir uma ótima fonte de informação.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Análise do quadro "Heterónimos", de Almada Negreiros


Almada Negreiros (1893-1970). Heterónimos. 1958. Mural Fac. Letras de Lisboa


    A arte, dando voz a Campos, é “a expressão de um pensamento através de uma emoção ou, em outras palavras, de uma verdade geral através de uma mentira particular.” (cit. por Coelho, 1949: 162). Sob esta forma de arte dramatúrgica representada em gente, o traço de Almada percorre os corpos de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos na sua própria linguagem, integrando-os numa estética que se classifica de intemporal. Num estilo único, Almada, não mais dramaturgo do que Pessoa ele mesmo, teatraliza o drama em gente e, na reprodução pictórica em causa, não se limita a apresentar o que este triângulo de poetas foi ou poderia ter sido. Almada vestiu as almas reais ao corporizar a totalidade da mentira dos corpos. Almada, pintor, dramaturgo despersonalizado, criou imagens como extensões das almas: da deles, de Pessoa, da sua. E o drama em gente foi interpretado, decifrado, transfigurado, metamorfoseado, representado, dramatizado, permanecendo, no final, os fragmentos daquilo que cada um deles foi: “Voo outro – eis tudo.” (Pessoa, 1950: 17).
Os “eus” que revelam a multilateralidade pessoana dificultam ao pintor a tarefa da sua representação na obra e, consequentemente, a de quem tenta descortinar o seu impossível retrato. O negro absoluto em que, pelas suas próprias mãos, envolveu as máscaras involuntárias (?) do seu fingimento, torna-as incoloríveis, se assim as podemos dizer, incompatíveis com qualquer representação pictórica, em suma, invisíveis de tão divisíveis que são. Contudo, os pintores continuarão pintando, perdendo-se, tentando encontrar os possíveis corpos, ajustando cores, moldando rostos a máscaras.
Almada Negreiros, que parece situar os heterónimos pessoanos em três planos distintos nesta representação, serve-se de uma linha quase contínua, que se move, simultaneamente, no sentido de uma abstração, de uma simplificação e de uma (ou várias) incerteza premente. Sabemos tratar-se de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, mas teremos iguais convicções que nos permitam identificá-los, à primeira vista, como sendo de facto quem aparentam ser?
A primeira figura da esquerda da representação, facilmente identificável com Alberto Caeiro, aparece-nos delineada melancolicamente por um tom azul dramático, quase trágico. Ligeiramente inclinado para trás, Caeiro é, das três personagens, a mais transparente. As linhas arredondadas que traçam o seu ténue volume demarcam, curiosamente, a sensação ambígua de quem já não está, daquele cuja vida “não pode narrar-se pois que não há nela de que narrar. Seus poemas são o que houve nele de vida” (idem, 1999: 329). E assim parece ser.
O poeta bucólico “era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era.” (idem, 1950: 26). É realmente frágil que Almada o pinta. Deste modo, “O facto curioso em Alberto Caeiro é que ele surge, aparentemente do nada e mais completamente do nada do que qualquer outro poeta.” (idem, 1999: 378). Surge do nada e, na voz do próprio, não passa de “um andaime” (ibidem: 378). Assim sendo, Caeiro é como um andaime vindo do nada feito para chegar a um outro local que não sabemos qual é. Um nada que leva a lado nenhum, ao desconhecido. Um nada que leva ao nada. E é deste modo que Caeiro irrompe da pintura como quem não suporta a ideia da própria existência. Caracterizado numa pose distorcida, articula-se com os vários sentidos que as linhas nos abrem, criando, dentro de um corpo, os rostos possíveis. O seu olhar, poderoso veículo de comunicação, é de um vazio profundamente assustador, tal como a expressão do seu rosto, mas, simultaneamente, os seus olhos são “azuis de criança que não têm medo” (idem, 1950: 27), como Álvaro de Campos de outro modo não os poderia revelar. O cabelo, de “um louro sem cor” (ibidem: 26) aparece-nos totalmente apartado para trás. As próprias linhas paralelas e secas que desenham o cabelo nada mais fazem senão corroborar esta duplicidade, ou multiplicidade, que acaba por caracterizá-lo: a criança que não teme e o adulto que não faz senão temer.
O braço esquerdo, posicionado ao longo do corpo, tal como o direito, termina numa mão ligeiramente inclinada, na posição normal de passo. Como as viu Campos, “as mãos eram um pouco delgadas, mas não muito; a palma era larga.” (ibidem: 27). Assim as pinta Almada. Ambas as suas mãos são perfeitamente visíveis, ao contrário do que acontece com as outras duas personagens, e na mão direita segura o que aparenta ser duas folhas, transparentes, tal como ele. Talvez Almada quisesse sugerir que, tal como Caeiro não era corpo, também as páginas não o eram. Páginas vazias de cor, de linhas, de letras, de pensamentos passíveis de serem guardados, num corpo inteiramente translúcido, pronto a ser ocupado, dito, escrito, vivido, existido.
A sua silhueta encontra-se inclinada para a direita, como quem caminha em frente, já que a perna esquerda está na posição de passo. No entanto, apesar de tudo nele indicar movimento (o que é coincidente nos três), Caeiro parece estático... Ou será que se encontra realmente imóvel? E, se assim é, o que espera Caeiro? Ou quem espera Caeiro na sua inércia?
Dou a palavra a Álvaro de Campos: “A expressão da boca, a última coisa em que se reparava – como se falar fosse, para este homem, menos que existir, – era a de um sorriso como o que se atribui em verso às coisas inanimadas belas, só porque nos agradam – flores, campos largos, águas com sol – um sorriso de existir, e não de nos falar.” (ibidem: 27). A expressão da boca é de uma complexa interpretação. Aparentemente, não se mostra, como na anterior descrição, com um sorriso, mas, pelo contrário, é vagamente triste, emotivamente penosa, como quem busca as suas feições e não as encontra. Em Caeiro, Pessoa pôs todo o seu poder de despersonalização dramática. Talvez seja isso que Caeiro procura, ou o que espera. A sua (des)personalização, a sua pessoa, ou, tão simplesmente, a ausência de sentimento que sempre buscou.
“Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 de altura, mais dois centímetros do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos.” (ibidem: 26).
Segundo a descrição que o próprio Pessoa faz dos heterónimos Reis e Campos, numa primeira impressão, a figura que se segue à de Alberto Caeiro corresponderia a Ricardo Reis. Afirmo-o até pelo simples facto de, no bolso esquerdo do seu casaco, Almada ter colocado uma folha enrolada em si própria e nela ter escrito o nome REIS com letras quase impercetíveis, mas que estão lá e que o confirmam. Logo, porquê a hesitação em atribuir o corpo ao nome que supostamente lhe corresponde?
Na voz de Pessoa, Ricardo Reis é um pouco mais baixo e mais forte do que Alberto Caeiro. Na representação pictórica em causa, aquele a quem chamaríamos Reis, pelo nome que tem na folha do bolso esquerdo do seu casaco, aparece-nos retratado como sendo um pouco mais alto do que Caeiro e em nada mais forte do que este, o que poderia ser facilmente refutado pelo facto de Almada parecer situá-lo numa perspetiva ligeiramente dianteira. Todavia, como justificar a sua tentativa de sorriso, a gola da camisa desmazelada, o último botão do casaco aberto, o bolso direito desleixadamente cheio do “pagão por carácter em quem Pessoa colocou toda a sua disciplina mental” (ibidem: 28)? Onde se encontra Ricardo Reis para quem “quanto mais fria a poesia, mais verdadeira” (idem, 1999: 392), que procura a perfeição de uma existência que sente imperfeita? Onde se encontra Ricardo Reis neste fingimento? Em quem reconhecer Ricardo Reis neste drama em gente? Como decifrar o seu jeito nada comedido quando comparado com o da figura de um objetivismo natural e próprio cuja mala na austera mão esquerda o identifica, supostamente, como Campos? E, sobretudo, a sua postura desalinhada, descuidada até? Será que podemos, sem a ínfima dúvida, atribuir esta representação à de alguém que “sintetiza toda a sabedoria do passado, todo o património moral da tradição humanística” (idem, 1978: 14)?
De Reis diz Álvaro de Campos ter uma inspiração “estreita e densa, o seu pensamento compactamente sóbrio, a sua emoção real, se bem que demasiadamente virada para o ponto cardeal chamado Ricardo Reis.” (cit. por Coelho, 1949: 164). Pertencerá, deste modo, este corpo ao Reis egocêntrico que Campos descreve? Ao Reis que escreve com um purismo que o próprio Fernando Pessoa considera exagerado? A um Reis de um triste epicurismo que não procura os prazeres violentos e que, do mesmo modo, não foge às sensações dolorosas, aparentando a calma, a serenidade, a placidez, a sobriedade individualista? Poder-se-ia, numa perspetiva de traço caricatural, adequar a descrição de um homem absolutamente disciplinado, cuja obra é profundamente triste, à personagem que, rigidamente, segura na sua mão esquerda a mala de Campos? Nesta ótica, é lícito considerar que Campos albergar uma página no seu bolso esquerdo pertencente a Ricardo Reis (coincidentemente, ou não, o mesmo lado onde a mala de Campos se encontra nas mãos de um possível Reis, mascarado de monóculo e de chapéu) e Reis teria uma mala de Campos. Qual o valor de um nome numa mala, numa folha? Por que motivo Almada não vestiria Campos de Reis e Reis de Campos? Por que razão se negaria ele o prazer de ser agora o dramaturgo deste drama em gente, destas personae que figuravam, mais do que em Pessoa, ao seu lado? Não estará a solução do enigma no breve sorriso do pretenso Reis? Ou, quem sabe, confidencialmente oculto na folha que acolhe o seu nome...
Permanecem as hipóteses, as incertezas demoram-se e as personagens vão teatralizando pelas mãos do dramaturgo que as encena...
Abro um parêntesis para lembrar que, segundo Álvaro de Campos, Ricardo Reis foi aquele que se lhe definiu como abominando a mentira, porque a mentira nada mais é do que inexatidão. Dando voz ao primeiro, “Todo o Ricardo Reis – passado, presente e futuro – está nisto.” (Pessoa, 1980: 268). Inexatidão, mentira, drama, teatro, ficção, engano, falácia de movimentos, de falas em atos onde as personagens, caricaturas, marionetas nas mãos do dramaturgo, agem em embuste. Ora, se assim é, como avaliaria Ricardo Reis o drama que o próprio Pessoa lhe preparou e que Almada tratou de teatralizar?
Todavia, se considerarmos que é Reis de facto a figura que se segue a Caeiro, vemos objetivamente que este se posiciona de frente na representação. É a figura central do triângulo que, contudo, se inclina para o seu mestre. De rosto voltado para a direita, num movimento rotativo para onde se encontra Caeiro, Reis parece buscar nele o equilíbrio que Campos procurava, a mais pura realidade, a intuição sobre-humana que lhe era natural. Nas palavras do próprio, “Eu era como o cego de nascença, em que há porém a possibilidade de ver; e o meu conhecimento com “O Guardador de Rebanhos” foi a mão do cirurgião que me abriu, com os olhos, a vista.” (idem, 1999: 366), assim os seus olhos parecem, numa demanda incessante, procurar em Caeiro a verdadeira sapiência que o liberte da cegueira em que se encontrava mergulhado.
Os três bolsos do casaco de Reis encontram-se repletos, talvez de corpos que, ocultos, se tornam indefiníveis. Objetos ocultos, outros visíveis que possivelmente contêm ocultos em si. A folha que Almada colocou no seu bolso esquerdo é, no mínimo, enigmática. A obscuridade que transmite o envolvimento em si própria faz-nos, se não mais, imaginar o que esconderá o lado encoberto da folha. Uma folha de Reis que partilha a similaridade com a da mão direita de Caeiro, mas que se apresenta como tudo menos transparente. A linha do bolso esquerdo de Reis fá-lo absolutamente redondo, descuidadamente cheio. O que ocultará? Quanto ao bolso superior, nele encontramos claramente uma caneta (possivelmente a do ortónimo) e aquilo que aparenta ser um lenço desalinhado, em harmonia com o bolso do casaco de quem o recolheu.
De perna direita à frente, cruzada sobre a esquerda, Reis sugere movimento, mas que, tal como em Caeiro, não pode ser absolutamente atestado. O braço direito, que em Caeiro segura páginas de nada, em Reis encontra-se fletido. O mesmo gesto, pelo mesmo braço, é partilhado por quem segura a mala de Campos; contudo, se em Reis o membro se esconde atrás das costas para uma mão vir segurar inesperadamente o outro braço (braço este que literalmente expõe uma larga e estranha mão de palma aberta virada para a frente, como que a revelar que não pertence a este corpo), em Campos o braço flete-se sobre o peito e é a mão que se encobre, vibrando, silenciosamente. Braço fletido com mão encoberta, como que a esconder-se do porte rígido que a sustém, a mão de Campos abriga-se entre os dois últimos botões do casaco, atribuindo a ordem ao corpo.
Casaco desabotoado no último botão, curiosamente tal como em Caeiro, gola de camisa descomposta, num corpo tendente a curvar-se que esconde um braço atrás das costas, que cruza uma perna em possível movimento e que inclina um rosto em busca, uma cara de Reis de cabelo liso e apartado ao lado pertencente a Campos, num olhar estranhamente impertinente, obscuro, como o braço, o bolso, a perna, o próprio Reis que Almada Negreiros retratou, fantasiou, dramatizou.
Álvaro de Campos, que surge a Pessoa em derivação oposta à de Reis, é a figura que se encontra no extremo oposto do triângulo, em oposição a Caeiro, o que não deixa de ser curioso. Campos aparece- -nos, tal como as outras personagens, em posição clara de movimento, se bem que, na representação, a aparência seja, de facto, mais realista comparativamente às outras, mesmo porque Álvaro de Campos parece vir ou ir de viagem devido à mala que segura na mão esquerda, facto que o pode situar talvez pela altura da morte de Caeiro, quando se encontrava em Inglaterra, já que afirma ter sido “uma das angústias da minha vida (...) que Caeiro morresse sem eu estar ao pé dele.” (idem, 1980: 272).
Descrito por Pessoa como o mais alto dos três, Álvaro de Campos surge-nos numa postura absolutamente retilínea, alinhada, austera, contrariamente ao Campos tendente a curvar-se que o ortónimo nos apresenta. Campos, “entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português” (idem, 1950: 26), não surge de cabelo “liso e normalmente apartado ao lado” (ibidem: 26), mas com um chapéu que lho encobre e que parece pertencer a Pessoa ele mesmo, aliás, tal como outros traços fisionómicos da personagem em si: “mito que sempre contempla Fernando Pessoa em travesti de passeio, óculos, chapéu, laço, gabardina, como as fotografias e os retratos que o fixaram nos últimos anos da sua vida.” (Stegagno-Picchio, 1988: 66).
O monóculo erudito que Pessoa lhe colocou, sim, está lá, talvez como o único objeto que realmente seja de Campos, ou, quem sabe, como nada mais do que um artifício entre tantos outros.
Álvaro de Campos, que na sua obra isolou o lado emotivo, “a que chamou «sensacionista», e que (...) produziu diversas composições, em geral de índole escandalosa e irritante” (Pessoa, 1968: 41), surge-nos aqui como uma personagem num porte absolutamente severo, clássico e regrado, um autêntico Reis. “E Reis nota em Campos a falta de uma disciplina, daquele domínio da emoção que faz a superioridade da poesia em relação à prosa.” (Coelho, 1949: 164): onde se encontra nesta personagem a rebeldia, onde ressalta a falta de domínio? Se “Pessoa isolou em Campos a sua impulsividade, os seus nervos; as impressões do dia-a-dia sensabor, a vontade lassa de as transmitir nuamente ao papel, sem refinamento estético.” (ibidem: 193), em que aspeto fisionómico transparece o ímpeto no filho indisciplinado da sensação? O ritualista em excesso, onde se encontra? E, se “Campos é o Pessoa que, pela imaginação, se mexe convulsivamente, raivosamente, com a força dos seus nervos, não uma força calma e duradoura” (ibidem: 192), onde está o extravasar de emoção de Álvaro de Campos? A inquietação metafísica com que Fernando Pessoa o concebeu? Onde se vê Álvaro de Campos neste corpo?
Interpretando-o como aquele cuja mala transporta o seu nome, em Campos as linhas do rosto são absolutamente reais, definidas até às formas mais simples do mais fino traço. Linhas retas que se alongam num traço contínuo da sobrancelha ao nariz, unindo os dois lados da face, linhas que contornam todo o seu corpo e temporariamente o retesam, são percebidas pela nossa memória como elevando-lhe em linha reta a perna direita (não ligeiramente fletida como em Reis, ou em Caeiro no caso da perna esquerda) num movimento ritmado, como quem caminha a largos passos em direção ao desconhecido. Talvez vá ao encontro de Reis, talvez siga até Caeiro. De face virada na direção de Caeiro a quem, tal como Reis, parece obedecer subalternamente, dele sobressai um olhar tão vago como a incerteza do caminho que toma, de quem ou daquilo que busca, ligando-o ao mundo exterior de uma forma sem retorno. Verdadeiramente negros, os olhos maquinalmente esvaziados coordenam, disciplinam um corpo que lhes obedece. Detêm um poder hipnótico, de onde brota a expressão que parece tudo querer possuir e, simultaneamente, de tudo abdicar, no vazio que por trás deles se rasga. Quem se encontra por trás daquele vazio? A quem obedece o corpo de Campos?
Nesta trilogia da unidade que Almada Negreiros interpretou, não podemos encarar a ordem na qual os colocou como meramente arbitrária. Os três planos de representação pictórica de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos não se apresentam como uma opção infundada; pelo contrário, Almada aplicou neles a sua mestria de representação. Nestas “ficções do interlúdio”, como Pessoa lhes chamou, as figuras pintadas em triângulo aparecem-nos como marionetas nas suas mãos. Suas... de Almada, de Pessoa, de ambos?
Ao traçar as linhas, prossegue numa melodia em que o ritmo une os elos dispersos das personagens, ritmo este que, só por si, justifica e resume a essência do gesto criador. Alberto Caeiro, sendo “o «mestre», porque elabora a doutrina e pratica a crítica que permite a emancipação de Fernando Pessoa do «decadentismo» a que estava acorrentado” (Simões, 1980: 321); Ricardo Reis “representando uma conquista substancial no caminho de uma personalidade que fará da simulação o seu processo normal de realização literária” (ibidem: 321); e Álvaro de Campos, “o discípulo que se aproveita das liberalidades que a rebeldia do primeiro favorece” (ibidem: 321), moldam como que um triângulo sem ângulos, partes de um todo como órgãos de um corpo, onde cada um deles converge do mesmo modo para a unificação, para ressurgir num Pessoa que se desintegra, reparte continuamente em cada um deles, escravo como é da multiplicidade de si próprio.
Na pintura, linha e cor unem as suas linguagens para nos devolver as figuras e o branco que a todos pertence não esgota em si a tonalidade semelhante da cor da pele que Almada Negreiros lhes veste. A camisa branca que lhes é comum, tal como o lenço que a lapela alberga, é uma das particularidades que os reconhece como únicos, unos, numa unidade essencial que se adivinha em afinidades, identificando-os na multiplicidade como indivisíveis na sua divisibilidade: “o mundo dos heterónimos constitui de facto um universo” (Coelho, 1949: 193).
Contudo, na semelhança reside a diferença, pois o branco que partilham, tal como a transparência que o traço, que lhes é comum, delimita, não deixa de ser aqui fator de desagregação, uma vez que a cor que descuida a camisa de um suposto Reis é a mesma que, pelo contrário, coloca no bolso de Álvaro de Campos um lenço dobrado meticulosamente, brindando-nos claramente com a diversidade na individualidade. Tornam-se entes diferentes do criador, filhos mentais com qualidades herdadas, mas com a diferença de serem outros. Outros distintos, marcadamente distintos.
Nesta oscilação entre semelhanças e diferenças, movimenta-se a linguagem de Almada, numa linha que demarca mais do que confunde, acentuando a lógica de um todo, as formas estruturais de um conjunto, de onde sobressai a interioridade das personagens. A arte de ser de Caeiro, a arte de sentir de Campos e a arte de viver de Reis consubstanciam-se no pincel de Almada e metamorfoseiam-se cada qual na sua máscara. “... quanto aos figurantes que as ostentam, eles dão-nos, ao mesmo tempo, a sensação de falar cada um para seu lado e de estarem continuamente a responder uns aos outros. São como personagens de uma peça monumental, na aparência toda construída em monólogos – os quais, todavia, se articulam num diálogo ininterrupto, estabelecido a uma zona mais profunda.” (Pessoa, 1978: 15).
Esta interpretação de possível caricatura que vemos pede-nos, obriga-nos à questão: para onde se dirigem Caeiro, Campos e Reis? O que pretendem encontrar? Quem pretendem encontrar? Ou será que devíamos perguntar-nos, pelo contrário, de quem pretendem fugir? Ou, ainda, de quem pretende fugir Almada quando teatraliza a fuga dos heterónimos pessoanos? Por que motivo fugirá Almada através deles?
A diversidade da personalidade artística de Almada, expressa, neste caso, através da pintura e representação, configura uma genuína teatralidade subjacente a todo o trabalho criativo do pintor. Deste modo, as diversas personagens, socorrendo-se de máscaras distintas, percorrem, não apenas o caminho que pelo poeta foi traçado, mas dramatizam a diversidade de caminhos que a obra do pintor percorreu. Personagens estas que instituem, afinal, uma obra, uma unidade, talvez um único ato, que o intérprete, ficcionista, dramaturgo, desenhista, despersonalizando-se, põe em ação, “da luta contra a histeria pela criação literária; do esforço do intelecto para expulsar a angústia; de como, despersonalizando-se, o autor se projeta no drama que compõe.” (Coelho, 1949: 164). Ou seja, as faces de Pessoa interagem, reagem umas às outras, comunicam, dialogam para que, através delas, por elas e nelas este possa encontrar caminhos possíveis, saídas para outros universos, para os universos da sua evasão.
    Os caminhos que percorrem, quando se encontram longe de si próprios para a si poderem regressar, são caminhos de procura, de rutura, de despersonalização. “É certo que Campos, algumas vezes perplexo (...) buscou evadir-se (...) por um certo ato de vontade delirante. E Reis, por seu turno, procurou o lenitivo do epicurismo. Deste modo, em face da situação que lhes é imposta, os discípulos de Caeiro tentam diferentes caminhos: a fuga pela alienação do mundo concreto, pela embriaguês da imaginação sensorial (Campos Whitmaniano), a criação por um esforço racional de um modus vivendi que reduza ao mínimo o sofrimento (Reis), ou a simples expressão da ansiedade, da angústia, da melancolia, do tédio (Campos, Pessoa ortónimo)” (ibidem: 190).
    Em Almada, a conquista da unidade passa pela noção da desconstrução do indivíduo coletivo. “Há uma abstração do «eu» concreto em proveito de um «eu» máscara, e, em Pessoa há uma abstração do «eu» concreto em proveito de outros «eus». Assim, Pessoa evolui num teatro feito daquilo que os sonhos são feitos, enquanto Almada traz a memória e o desejo da voz sonora, da fala como ato, na página como no palco.” (Martins, 1996: 312). Consciente da alteridade dos corpos, Almada reconstitui-se em novos fundamentos, anteriores ao encontro do “eu” consigo.
No retorno não encontra dentro de si o mesmo. Personalidade outra que pertence agora à própria Terra, à parte do mundo em que cada homem está. Dando voz a Almada, “O Homem não é um homem. O Homem somos nós todos e cada um de nós.” (Lambert, 1996: 148). Do mesmo modo, o que caracteriza a vida é a procura, não o encontro. É na procura que as vozes se cruzam e tecem. Tecido e o tear fundem- -se, confundem-se, acabando, finalmente, por ser o mesmo.
Almada Negreiros tenta restituir o segredo dos corpos, propiciar-lhes a existência através do mistério da linha, na essência plástica e anímica que os envolve. Agarrando os contornos do triângulo, na mesma linha fez eclodir a luz dos corpos, dos rostos, dos olhares, em semelhanças e contrastes de ligeiros traços e curvas difusas. É a linha que sobressai, que adquire o poder extraordinário de depurar as formas, de as reduzir a uma essência, ao próprio movimento e ao drama de ao corpo se unir e apagar a fronteira entre os dois mundos, unificando-os, eternizando-os, libertando-os ao encontro dessa essência, de uma genuinidade que a palavra manifestou e que Almada (trans)figurou.
O corpo é, assim, uma linha sem começo nem fim, triangular, que sugere o infinito, materializado a partir do universo escrito que funcionou como pretexto para a eclosão, para o preenchimento das formas a que as almas pertencem. A imaginação contaminou o universo ficcionado, realizando-o, encenando-o e dando-lhe um ou diversos sentidos. Sentidos estes que se ocultam no segredo da linha e lá permanecem, onde subsiste o drama em gente que o próprio Almada, porque toda a arte é uma forma de despersonalização, simulação e, simultaneamente, de espelho, completou.

 
Autoria:
 
Revista da Faculdade de Letras — Línguas e Literaturas,
II Série, vol. XXIII, Porto, 2006 [2008], pp. 233-249
 

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Mito pelásgico da criação


    O mito pelásgico da criação é uma versão da origem do mundo e dos humanos de acordo com os pelasgos, um povo que habitava a Grécia antes do surgimento dos gregos.

    De acordo com esse mito, no início havia apenas o Caos, uma massa informe e escura. Dele brotou, nua, Eurínome, a deusa de todas as coisas, que se separou do Caos e criou o Oceano. De facto, não vendo substância em seu redor onde formar os pés, apartou o mar do céu, dançando solitária sobre as suas ondas. Ao dançar em direção a sul, gerou o Vento Norte (que se soltava por trás dela a cada passo que dava). Movendo-se, ondulante, em torno dele, estreitou-o nos braços, deixou-o deslizar-lhe por entre as mãos e, subitamente, viu diante de si Ofião, a grande serpente. Eurínome continuou a dançar, com crescente frenesim, para se aquecer, o que levou Ofião, lúbrico de natureza, a enrolar-se naqueles membros divinos e unir-se-lhe, cheio de desejo. Daí em diante, o Vento Norte, também chamado Bóreas, fecunda e, porque assim é, as éguas oferecem as suas garupas ao vento e geram potros sem a necessidade de um garanhão. O mesmo sucedeu para que Eurínome ficasse pejada.

    Abra-se aqui um parêntesis para observar o seguinte. Este mito enquadra-se ou reflete um sistema religioso arcaico, no qual não existem deuses nem sacerdotes, surgindo-nos apenas uma deusa universal e as respetivas sacerdotisas. Quem domina são as mulheres, cabendo ao homem apenas o papel de sua vítima amedrontada; os conceitos de pai e de paternidade são praticamente inexistentes, ou pelo menos não eram objeto de veneração, já que se atribuía a conceção ao vento, à ingestão de feijões, ou mesmo a um inseto, engolido por incauto. Na esteira destes princípios, as heranças e a sucessão eram transmitidas pelo lado materno. Por seu turno, as serpentes eram encaradas como incarnação dos mortos. Neste contexto, Eurínome, “a grande nómada”, seria o título atribuído à deusa enquanto lua visível, e que entre os Sumérios tinha o nome de Iahu, a “pomba exaltada”, honra que mais tarde passaria para Jeová, enquanto Criador. E é efetivamente sob a forma de pomba que Marduk a divide simbolicamente em duas, no Festival da Primavera babilónio, quando inaugurava a nova ordem do mundo.

    Findo o parêntesis, retornemos ao mito. Eurínome transformou-se numa pomba e pousou sofre Ofião, que se enrolou no seu corpo e a fecundou, indo ela incubar sobre a superfície das águas e, cumprido o tempo, pôs o Ovo Universal. Por ordem dela, Ofião enrolou-se sete vezes em torno desse ovo, que se rompeu e dividiu em dois. Dele nasceram, de forma desordenada, todas as coisas: o sul, a lua, as estrelas, os planetas, a terra, as plantas, os animais e os seres humanos.

    Posteriormente, Eurínome e Ofião foram morar para o Monte Olimpo e reinaram sobre a criação, porém ele tornou-se arrogante e quis igualar-se-lhe, ao dizer-se o autor do Universo. Ela castigou-o, calcando-lhe a cabeça com o pé e banindo-o do Olimpo para as profundezas do Oceano.

    Ofião, ou Bóreas, é o demiurgo-serpente das mitologias hebraica e egípcia, o que se reflete no facto de a imagem da deusa acompanhada por ele se encontrar na arte mediterrânica primitiva. Os pelasgos – os nascidos-da-terra –, que reivindicavam ter vindo dos dentes de Ofião, pode ser o povo, na sua origem, autor das pinturas do período neolítico, que atingiu a Grécia continental a partir da Palestina por volta do ano 3500 a.C., e que os primitivos Heládicos – imigrantes vindos da Ásia Menor através das Cíclades – foram encontrar ocupando o Peloponeso setecentos anos mais tarde. Por outro lado, o termo «pelasgos» acabou por se aplicar a todos os habitantes pré-helénicos da Grécia. É por isso que Eurípides afirma que os pelasgos adotaram o nome de «Dânaos» depois de Dânao ter chegado a Argos acompanhado pelas suas cinquenta filhas. Estrabão, por seu turno, afirma que os habitantes em redor de Atenas eram conhecidos pelo nome de Pelargi («cegonhas»), provavelmente devido ao facto de estas serem as suas aves totémicas.

    Depois se expulsar Ofião do Olimpo, Eurínome passou a governar sozinha o universo, auxiliada pelas suas ninfas, as Cárites. A seguir, criou as sete potências planetárias, pondo à cabeça de cada uma delas um Titã ou uma Titânide: Teia e Hiperião reinavam sobre o Sol; Febe e Atlas sobre a Lua; Dione e Crio sobre o planeta Marte; Métis e Ceos sobre Mercúrio; Témis e Eurimedonte sobre o planeta Júpiter; Tétis e Oceano sobre Vénus; Reia e Cronos sobre Saturno.

    É possível que os Titãs («senhores») e as Titânides, que tinham as suas réplicas na astrologia primitiva da Babilónia e da Palestina, onde vamos encontrar também divindades a governar os sete dias da semana sagrada planetária, tenham sido introduzidos pelos Cananeus ou pelos Hititas, que se haviam estabelecido no Istmo de Corinto nos inícios do segundo milénio a.C., ou mesmo pelos Heládicos primitivos. No entanto, quando o culto titânico é abolido na Grécia e que a semana de sete dias deixou de figurar no calendário oficial, alguns autores passam a referir-se a doze, talvez para corresponderem aos signos do Zodíaco. Quanto aos seus nomes, há versões contraditórias. Na mitologia babilónica os governantes dos planetas da semana, nomeadamente, Samas, Sin, Nergal, Bel, Beltis e Ninibe, eram todos varões, à exceção de Beltis, a deusa do amor. Por outro lado, na semana germânica, que os Celtas terão ido buscar ao Mediterrâneo Oriental, o domingo, a terça e a sexta eram governados por Titânides, contrapondo-se aos restantes dias, sob o domínio dos Titãs. Quando o sistema chegou à Grécia, foi decidido acasalar cada uma umas Titânides com um Titã, para salvaguardar os interesses de Níobe. Passado pouco tempo, dos catorze passou-se para sete potências planetárias: o Sol, para a iluminação; a Lua, para a magia; Marte, para o crescimento; Mercúrio, para a sabedoria; Júpiter, para a lei; Vénus, para o amor; e Saturno, para a paz. Na Grécia Clássica, os astrólogos seguiram o mesmo princípio dos babilónios, pelo que atribuíram os planetas a Hélio, Selene, Ares, Hermes (ou Apolo), Zeus, Afrodite, Cronos, cujos equivalentes latinos atrás referidos estão na base da nomenclatura dos dias da semana no francês, italiano e castelhano.

    Zeus devorou os Titãs e, com estes, ele próprio, na sua forma original.

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Análise da cena 1 do ato II de Hamlet


    Esta cena, que abre o segundo ato, pode dividir-se em duas partes. Na primeira, encontra os o diálogo entre Polónio e Reinaldo sobre Laertes e, na segunda, o diálogo entre aquele e Ofélia sobre Hamlet. Do conjunto, ressalta o desenvolvimento da personagem Polónio, que é apresentado como um manipulador astuto e um homem sem escrúpulos que quer espiolhar a vida de Laertes. Se é verdade que, frente a frente, Polónio o trata como alguém em quem se pode confiar, quando o jovem parte para França, desconfia do seu comportamento e chega ao extremo de ordenar ao seu espião que lance boatos desabonatórios sobre o filho, usando o engano e a artimanha falsa para o testar, não parecendo nada preocupado que a reputação do rapaz seja manchada e, indiretamente, a sua própria. Por outro lado, o modo como instrói Reinaldo é semelhante à forma coimo Cláudio, na cena 2 do ato I, procurou manipular a corte. Deste jeito, o discurso e as palavras tornam-se peça fulcral na tentativa de manipular os outros e controlar a sua visão dos factos e da verdade. Neste contexto, Shakespeare estabelece uma analogia transparente: se Cláudio assassinou o rei Hamlet derramando veneno no seu ouvido, também as palavras pode constituir um veneno para determinados ouvidos. Assim, as referências aos ouvidos e á audição constituem uma metáfora do poder das palavras na manipulação da verdade.

    O segundo diálogo – entre Polónio e Ofélia – também assenta nesta oposição entre a verdade e o engano, a aparência e a realidade. A relação entre Hamlet e Ofélia é caracterizada por mal-entendidos e suposições sem fundamento. Apesar de a rapariga ter prometido – e cumprido – que se afastaria do príncipe, tal não significa que ela pensasse que seria maltratada por ele. Apenas o faz, porque é uma irmã e uma filha obediente e dócil. Porém, após a mais recente atitude de Hamlet, a jovem fica mais convencida do que nunca que Hamlet sente alfo profundo por si, pois comporta-se como se estivesse terrivelmente apaixonado por ela. Na realidade, todavia, essa postura inscreve-se no plano de Hamlet para vingar a morte do pai, pois ele disse a Marcelo e a Horácio, após o diálogo com o fantasma, que poderia agir de forma estranha nos dias seguintes. Sucede, contudo, que Ofélia não sabe isso, pelo que se estará a iludir com algo que não corresponde à realidade: o príncipe está a comportar-se como um louco. Além disso, será que o casamento da sua mãe com o tio não alterou negativamente a sua opinião sobre as mulheres? Seja como for, por mais estranho que possa parecer. Há uma semelhança entre as duas personagens: Hamlet, de forma astuta, finge ser louco; Ofélia, por sua vez, ainda que forçada, finge desinteresse por ele.

    À semelhança do que sucede noutros momentos da peça, esta cena, articulada com as anteriores, mostra com toda a clareza que a sociedade em que as personagens se movimentam é uma sociedade patriarcal: Ofélia “tem de” obedecer ao pai e ao irmão, que possuem autoridade sobre ela. Apesar disso, tendo em conta o desenrolar dos acontecimentos, os conselhos que lhe dão parecem sensatos. De facto, sendo verdade que Hamlet está a usá-la para um fim que só ele conhece e sendo possível que sinta genuinamente afeto por ela, tudo parece indicar que a rapariga se tornou um peão no seu plano para se vingar de Cláudio.

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