A temática verdade
versus engano, presente ao longo da peça, vislumbra-se também nesta cena.
Por exemplo, Ronsencrantz e Guildenstern estão tão alinhados com Cláudio que
parecem ter esquecido o que os trouxe até ali: a amizade com Hamlet. O engano
domina igualmente a participação de Polónio e de Cláudio: nenhum deles age por
fidelidade a si próprio ou por um bem maior; a interferência de Polónio na
relação entre Hamlet e Ofélia é motivada quase em exclusivo pelo facto de as
ações da filha poderem afetar a sua reputação – nunca o homem considerou a dela
ou os seus sentimentos pelo príncipe e vice-versa. Por seu turno, nenhuma das
ações do novo rei se pauta pela honestidade ou pelo bem comum. A própria Ofélia
é coagida a agir falsamente, embora neste caso haja claros atenuantes para o
seu comportamento, como a sua juventude e consequente ingenuidade e o facto de
viver numa sociedade dominada por homens e onde as mulheres pouca ou nenhuma
vez têm.
A questão da
vingança torna-se um fardo cada vez mais pesado à medida que a peça se
desenvolve. É neste contexto que surge uma das frases mais conhecidas da
literatura universal: “Ser ou não ser…”. O sentido, ainda que indireto, é
simples: “Devo matar-me?”, isto é, ele parece pesar se vale a pena ou não
permanecer vivo, se deve ou não tirar a sua própria vida. É curioso que isto
surja no preciso momento em que se debate com a necessidade de vingar a morte
do pai. É uma nova indecisão, que mostra a sua incapacidade para decidir o que
fazer com Cláudio que impactasse na sua capacidade de decidir o que quer que
seja, mesmo que ele pareça colocar a questão “Ser ou não ser…” como uma questão
de debate filosófico.
O encontro
entre Hamlet e Ofélia é muito curioso, desde logo porque é espoletado como um
teste, engendrado para determinar se a loucura do príncipe decorre da paixão
pela jovem. O leitor / público tem mais conhecimento sobre a matéria, pois sabe
que o rapaz age como um louco somente para ter a certeza acerca do papel do tio
na morte do seu tio, o que quer dizer que o seu comportamento alterado não tem
como justificação o amor por Ofélia.
Ainda
atualmente, muitas pessoas não hesitariam em assassinar o assassino do seu pai,
alegando que o tinham feito por vingança e em nome do dever de honra. Porque é
que Hamlet não atua de modo semelhante e hesita constantemente? Porque o seu
pensamento vai muito para além da questão da vingança, até à reflexão em torno
do Bem e do Mal, do certo e do errado, possivelmente considerando que o ato de
assassinar Cláudio o tornaria uma pessoa igual ao tio. Tornar-se um assassino
contribuiria para acentuar o ambiente corrupto e moralmente decadente que se
tem vindo a infiltrar em Elsinore. Além disso, convém nunca esquecer que o
príncipe é um cristão e, enquanto tal, as questões do homicídio e do suicídio
são muito problemáticas em termos morais.
Durante o
encontro com Ofélia, Hamlet afirma que outrora a amou, mas presentemente não, o
que só se compreende se o seu objetivo for magoá-la, visto que a afirmação não
afasta as suspeitas de Cláudio sobre si e, por outro lado, o apresentam como
alguém emocionalmente inconstante. O seu comportamento relativamente a Ofélia e
contra as mulheres em geral é complexo. É de crer que a crença de que as mulheres
levam os homens ao pecado reflete a sua preocupação com a decadência moral da
sociedade de Elsinore e com a humanidade em geral, pois as pessoas parecem ser
facilmente tentadas a praticar o mal e o pecado.
Ofélia não é
inimiga de Hamlet, mas este tem consciência de que ela é filha de Polónio, que,
por sua vez, é o principal conselheiro de Cláudio, pelo que manipulá-la é uma
forma de, indiretamente, manipular o monarca. O seu comportamento durante o
diálogo com ela é tão intenso e instável que se revela exagerado a ponto de
colocar em dúvida se é real ou loucura fingida.
As suas
opiniões sobre as mulheres raiam o sexismo, visto que o príncipe as culpa e
responsabiliza por levarem os homens ao Mal. No entanto, convém observar que,
se é verdade que essa afirmação é dirigida a Ofélia, ele estará a pensar na
própria mãe quando fala, pois considera que esta traiu o pai e, ao desposar o
tio, o traiu a ele mesmo. Acresce que crê que a progenitora se encontra, de
alguma forma, envolvida na desonestidade de Cláudio. Deste modo, a misoginia
que vocaliza provém do seu ressentimento para com a própria mãe e não Ofélia.
As palavras
de Hamlet remetem para a Bíblia e para o conceito de pecado original. No Antigo
Testamento, Eva come da Árvore do Conhecimento, mesmo depois de Deus ter
proibido tal coisa. Isto levou à queda do Homem, que remete para ideia de todos
os seres humanos, desde Adão a Eva, são pecadores à nascença. Este conceito
cristão do pecado original simboliza as falhas inerentes aos homens, que devem
ser expiados.
As
afirmações de Hamlet sobre as mulheres em geral refletem também os valores
cultivados na sociedade patriarcal de Elsinore, uma sociedade também
profundamente cristã, visto que os pensamentos que o jovem expressa se conectam
intimamente com o conceito do pecado original. A estranheza neste episódio
reside no facto de estas opiniões terem recaído sobre Ofélia, que ele
supostamente amava e que, desta forma, iria magoar. Convém, contudo, não
esquecer que tudo se inscreve no plano de se fazer passar por louco, pelo que
dizer à jovem que deveria entrar num convento, socorrendo-se de afirmações sexistas
e misóginas, se inscreve nessa estratégia de parecer desequilibrado. Contudo,
mais importante notar é que, ao fazê-lo, Hamlet está a usar a mulher que
supostamente ama como peão na sua estratégia de vingar a morte do seu pai.
Por último,
mais uma vez Cláudio parece preocupado com o estado de Hamlet, porém essa
preocupação não é sincera, pelo que a ideia de o afastar de Elsinore,
enviando-o para Inglaterra, é exatamente isso: afastá-lo da corte para bem
longe. Além disso, é provável que tivesse planos mais escuros para o príncipe.
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