Português: Análise da cena 1 do ato III de Hamlet

domingo, 7 de julho de 2024

Análise da cena 1 do ato III de Hamlet

    A temática verdade versus engano, presente ao longo da peça, vislumbra-se também nesta cena. Por exemplo, Ronsencrantz e Guildenstern estão tão alinhados com Cláudio que parecem ter esquecido o que os trouxe até ali: a amizade com Hamlet. O engano domina igualmente a participação de Polónio e de Cláudio: nenhum deles age por fidelidade a si próprio ou por um bem maior; a interferência de Polónio na relação entre Hamlet e Ofélia é motivada quase em exclusivo pelo facto de as ações da filha poderem afetar a sua reputação – nunca o homem considerou a dela ou os seus sentimentos pelo príncipe e vice-versa. Por seu turno, nenhuma das ações do novo rei se pauta pela honestidade ou pelo bem comum. A própria Ofélia é coagida a agir falsamente, embora neste caso haja claros atenuantes para o seu comportamento, como a sua juventude e consequente ingenuidade e o facto de viver numa sociedade dominada por homens e onde as mulheres pouca ou nenhuma vez têm.
    A questão da vingança torna-se um fardo cada vez mais pesado à medida que a peça se desenvolve. É neste contexto que surge uma das frases mais conhecidas da literatura universal: “Ser ou não ser…”. O sentido, ainda que indireto, é simples: “Devo matar-me?”, isto é, ele parece pesar se vale a pena ou não permanecer vivo, se deve ou não tirar a sua própria vida. É curioso que isto surja no preciso momento em que se debate com a necessidade de vingar a morte do pai. É uma nova indecisão, que mostra a sua incapacidade para decidir o que fazer com Cláudio que impactasse na sua capacidade de decidir o que quer que seja, mesmo que ele pareça colocar a questão “Ser ou não ser…” como uma questão de debate filosófico.
    O encontro entre Hamlet e Ofélia é muito curioso, desde logo porque é espoletado como um teste, engendrado para determinar se a loucura do príncipe decorre da paixão pela jovem. O leitor / público tem mais conhecimento sobre a matéria, pois sabe que o rapaz age como um louco somente para ter a certeza acerca do papel do tio na morte do seu tio, o que quer dizer que o seu comportamento alterado não tem como justificação o amor por Ofélia.
    Ainda atualmente, muitas pessoas não hesitariam em assassinar o assassino do seu pai, alegando que o tinham feito por vingança e em nome do dever de honra. Porque é que Hamlet não atua de modo semelhante e hesita constantemente? Porque o seu pensamento vai muito para além da questão da vingança, até à reflexão em torno do Bem e do Mal, do certo e do errado, possivelmente considerando que o ato de assassinar Cláudio o tornaria uma pessoa igual ao tio. Tornar-se um assassino contribuiria para acentuar o ambiente corrupto e moralmente decadente que se tem vindo a infiltrar em Elsinore. Além disso, convém nunca esquecer que o príncipe é um cristão e, enquanto tal, as questões do homicídio e do suicídio são muito problemáticas em termos morais.
    Durante o encontro com Ofélia, Hamlet afirma que outrora a amou, mas presentemente não, o que só se compreende se o seu objetivo for magoá-la, visto que a afirmação não afasta as suspeitas de Cláudio sobre si e, por outro lado, o apresentam como alguém emocionalmente inconstante. O seu comportamento relativamente a Ofélia e contra as mulheres em geral é complexo. É de crer que a crença de que as mulheres levam os homens ao pecado reflete a sua preocupação com a decadência moral da sociedade de Elsinore e com a humanidade em geral, pois as pessoas parecem ser facilmente tentadas a praticar o mal e o pecado.
    Ofélia não é inimiga de Hamlet, mas este tem consciência de que ela é filha de Polónio, que, por sua vez, é o principal conselheiro de Cláudio, pelo que manipulá-la é uma forma de, indiretamente, manipular o monarca. O seu comportamento durante o diálogo com ela é tão intenso e instável que se revela exagerado a ponto de colocar em dúvida se é real ou loucura fingida.
    As suas opiniões sobre as mulheres raiam o sexismo, visto que o príncipe as culpa e responsabiliza por levarem os homens ao Mal. No entanto, convém observar que, se é verdade que essa afirmação é dirigida a Ofélia, ele estará a pensar na própria mãe quando fala, pois considera que esta traiu o pai e, ao desposar o tio, o traiu a ele mesmo. Acresce que crê que a progenitora se encontra, de alguma forma, envolvida na desonestidade de Cláudio. Deste modo, a misoginia que vocaliza provém do seu ressentimento para com a própria mãe e não Ofélia.
    As palavras de Hamlet remetem para a Bíblia e para o conceito de pecado original. No Antigo Testamento, Eva come da Árvore do Conhecimento, mesmo depois de Deus ter proibido tal coisa. Isto levou à queda do Homem, que remete para ideia de todos os seres humanos, desde Adão a Eva, são pecadores à nascença. Este conceito cristão do pecado original simboliza as falhas inerentes aos homens, que devem ser expiados.
    As afirmações de Hamlet sobre as mulheres em geral refletem também os valores cultivados na sociedade patriarcal de Elsinore, uma sociedade também profundamente cristã, visto que os pensamentos que o jovem expressa se conectam intimamente com o conceito do pecado original. A estranheza neste episódio reside no facto de estas opiniões terem recaído sobre Ofélia, que ele supostamente amava e que, desta forma, iria magoar. Convém, contudo, não esquecer que tudo se inscreve no plano de se fazer passar por louco, pelo que dizer à jovem que deveria entrar num convento, socorrendo-se de afirmações sexistas e misóginas, se inscreve nessa estratégia de parecer desequilibrado. Contudo, mais importante notar é que, ao fazê-lo, Hamlet está a usar a mulher que supostamente ama como peão na sua estratégia de vingar a morte do seu pai.
    Por último, mais uma vez Cláudio parece preocupado com o estado de Hamlet, porém essa preocupação não é sincera, pelo que a ideia de o afastar de Elsinore, enviando-o para Inglaterra, é exatamente isso: afastá-lo da corte para bem longe. Além disso, é provável que tivesse planos mais escuros para o príncipe.

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