Profª Drª Madalena Machado (UNEMAT)
RESUMO: O homem literário na perspectiva de José Saramago, trava batalhas contínuas com o senso comum. Na medida em que temos uma transformação na maneira de olhar a vida, os personagens demonstram uma postura questionadora. Impõem-se pelo modo de ser, decisão irreversível.
PALAVRAS-CHAVE: Narrativa, homem, senso comum, questão
RESUMÉ: L'homme littéraire dans perspective José Saramago, retenue batailles continues avec le sens commun. Dans la mesure dans cela nous avons une transformation dans la façon de regarder la vie, les caractères démontrent un’attitude du controverser. Ils sont imposés à propos d'existence, décision irrévocable.
MOTS CLÉS: Narration, homme, sens commun, question
Ao colocarmos em debate a visão do homem literário enfrentando o senso comum, tomamos como centro de discussão o texto de José Saramago a fim de entendermos os artefatos utilizados pelo escritor ao construir essa imagem no livro O conto da ilha desconhecida (2006). O humano sai do título, mas, o desconhecido da ilha faz ver o outro lado do homem insatisfeito de si. Tanto é certo, pois a história inicia na voz do narrador a tratar da vida de um homem – o homem de todos os tempos ansioso por saber mais de seu potencial. Novamente na obra de Saramago o anonimato de lugares e nomes retorna com a força da liberdade em se fazer notar, entender acima do solicitado pela maioria ou requisitado como bem estar pessoal. Um homem e o rei. Entre o comum e o insigne prevalece a vontade do primeiro que tem no seu desejo o diferencial. O rei entediado por ouvir pedidos de toda ordem se depara com um homem que queria conhecer o desconhecido; há entre eles a mulher da limpeza, cumpridora de deveres igualmente inominada, igualmente ignorante não só dos desejos alheios também dos seus.
O homem queria um barco. Antes da manifestação deste desejo surpreende a atitude. Ele quer algo para além da obviedade e para isso se mostra disposto a fazer com que seu desejo se concretize, para espanto da mulher a transportar os pedidos, sobretudo da parte do rei. Se lançar às aventuras era algo impraticável àquela época e, no entanto, aparece alguém disposto a executar tal ação num tempo em que tudo tinha a aparência de explicado, publicado. Quando o gesto convicto do homem provoca descontentamento social, o rei resolve ir falar com ele tocado sobremaneira por uma inquietação maior. A singularidade daquele homem reticente a cumprir os trâmites burocráticos exigia medida exemplar. O fato do rei ir até aquele requerente do barco não foi surpresa a este, somente àqueles outros pedintes, dada a postura de quem sabe exatamente o que quer e aonde ir.
Repetido o pedido agora frente à frente com o imperador, o narrador se esmera em mostrar a imagem vacilante, intranqüila do poder diante de quem se mostra a configuração da paciência, pois, determinado em conseguir seu objetivo. Esperou pela pergunta inevitável em casos semelhantes: para quê? Subentendido nela o questionamento de servir a qual propósito, defendendo quais princípios? A que o homem no alto de sua serenidade responde: “para ir à procura da ilha desconhecida” (SARAMAGO, 2006, p. 16). Vejamos que o homem mais uma vez desnorteia sua majestade porque não fecha com idéias de um sistema, de uma vontade que não seja a sua. Supondo ter à frente um louco ou alguém digno de riso – outro Dom Quixote – o soberano resolve se divertir procurando detalhes, a razão secreta por trás daquilo cuja aparência é um disparate. Prepondera novamente a tranqüilidade do homem contrastada à postura de detentor do saber exibida pelo rei, dizendo não haver ilhas desconhecidas porque todas estavam presentes nos mapas. Nesse momento da narrativa é explícito o questionamento que o homem empreende concernente sobre a ilha – o desconhecido – não pode estar enquadrado num saber caso contrário deixaria de o ser. Importa acima de tudo a busca, se lançar à aventura embora não sendo mais a das grandes navegações ainda e sempre o é a de saber sem se pautar no que outros dizem assinalando a impossibilidade. O impossível bem-vindo para o homem com seu desejo de um barco para encontrar a ilha desconhecida é o de haver desconhecido.
Convencido de merecer o barco, o homem argumenta: ao rei só interessa as ilhas conhecidas e aquela em seu horizonte pode não se deixar conhecer. Diante do recuo do rei outra vez a firmeza do homem na certeza de sua intenção mesmo não sabendo aonde chegará, obriga o soberano a aceder naquele pedido; mesmo porque o restante da população já se impacientava vendo tanta atenção a um ilustre anônimo. Deu-lhe o barco, mas não a tripulação. Sozinho, deve arcar com as conseqüências de seu desejo.
Desde que se postou em frente à porta dos obséquios, o homem do barco foi observado pela mulher da limpeza. Contaminada com a determinação daquele sujeito sem atributos, resolve deixar a servidão da limpeza para acompanhá-lo, somar num sonho de hora em diante também o seu. Então os dois estão resolvidos cada um a sua maneira, a modificar a vida até então com aparência igual. Ela ainda não se manifestou, mas segue seus passos rumo ao porto onde tomará posse do barco sonhado. Na presença do capitão surge de novo a pergunta muito comum nessa situação no sentido de como proceder porque a empresa é no mínimo arriscada. Sabes navegar? O que equivale a sabes como lidar com o desconhecido para este deixar de o ser? Sabe as regras, os ditames para conseguir algo muito além de suas possibilidades? Como vimos, não é o resultado o interesse maior desse homem singular, a resposta não poderia ser outra: aprenderei no mar. Podendo ser também, aprenderei durante a travessia, saberei qual atitude tomar quando o problema aparecer. O barco com o qual ele quer se atrever é bem superior à ousadia do capitão que teme os perigos do desconhecido porque julga conhecer de antemão os percalços do caminho. Outro personagem detentor do saber, por isso se acomoda ao conhecido diametralmente oposto ao protagonista.
Diante dos obstáculos propostos pelo senso comum: não ser atendido pelo rei; não existe ilha desconhecida; não ir com qualquer barco; não saber navegar; não conhecer o trajeto; não ser marinheiro, o homem com sua vontade de um barco responde com a linguagem de marinheiro, linguagem de todo ser humano em busca de dignidade: o respeito pelo que se é. A ilha “onde nunca ninguém tenha desembarcado” (2006, p. 27) como o capitão critica, perfaz justamente por isso o interesse maior do homem. A dúvida da chegada, na perspectiva do capitão o maior empecilho, motiva ainda mais o pretendente do barco porque ao final não há garantia de certeza, do absoluto que provavelmente moldou sua vida até aquela decisão única num reino de mediocridades. Daí a consciência de às vezes se naufragar pelo caminho, se completa com o pensamento de sempre se chegar a algum lugar mesmo não sendo o pretendido.
O antigo aspecto do barco não assustou o homem. É como se ele desse um significado novo a algo fadado a ser o mesmo, atracado naquele cais sem partidas. Algo agradável também à mulher da limpeza que nesse exato instante da narrativa se apresenta com a mesma determinação do homem, a ser sua companhia naquela empreitada. Pela porta das decisões onde ela havia saído do palácio do rei, às portas abertas com o traçado em busca da ilha desconhecida, a mulher da limpeza é outra pessoa à procura.
Num segundo momento do conto após ter conquistado o barco, ter se imposto pelo sonho de ir em busca da ilha desconhecida e ter a seu lado a mulher da limpeza, o homem sai para recrutar a tripulação no intuito de encontrar pessoas a compartilharem de seu sonho. E, não à toa Saramago escolhe a hora em que o personagem retorna a seu barco; o sol havia acabado de sumir-se no oceano quando o homem retorna sozinho e cabisbaixo. É o momento do limiar. Instante no qual aflora a humanidade dos personagens; a presença da dúvida, de se questionar sobre a validade do querer; fraqueja o homem, mas não a mulher transformada ao se espelhar nas atitudes iniciais do dono do barco. Procura alternativas na fala contaminada do homem enquanto significa a opinião corrente, aquilo que todos ouvem, sem por reparo à maneira da fala dos marinheiros procurados: não há ilhas desconhecidas e se as houvesse não era algo a merecer sair do conforto das casas; sair da navegação segura dos barcos de carreira a ir em busca do impossível.
Temos aqui uma espécie de inversão, o homem antes inabalável pelo querer agora se mostra fraco diante do escárnio dos homens comuns, enquanto a mulher ocupante do barco – ocupa o mesmo sonho impossível – é quem questiona, se mostra indignada na argumentação pouco incisiva daquele que ela aprendeu a admirar. Enfatiza o objetivo da ilha desconhecida, da certeza de sua existência demonstrada pelo dono do barco. Entre uma indagação e outra acerca do que fazer, ainda perdura a vontade de encontrar a ilha desconhecida. Nesse momento da narrativa na fala do homem com seu antigo sonho de um barco, após realizá-lo para ir ao encontro de sua ilha, há a manifestação clara de qual sua pretensão maior em agir dessa forma: “quero saber quem sou eu quando nela estiver,” (SARAMAGO, 2006, p. 40). Vale retomar, O conto da ilha desconhecida foi publicado pela primeira vez em 1998 e nele já fica claro o direcionamento das futuras criações literárias do escritor. A busca de si discutida ao longo de suas produções posteriores a exemplo d’O homem duplicado de 2002, é de certa forma uma extensão dessa procura. No conto, quando perguntado sobre se ainda não sabia de algo aparentemente óbvio, o homem não se constrange mais diante do senso comum comentando a necessidade que cada um tem de sair de si para compreender quem é. Apesar disso acontecer de forma figurada no citado romance, permanece a dúvida, prevalece um encontro por se concretizar. A permuta não é apenas do lugar, é, sobretudo, a suspensão de uma significação cristalizada pelo mundo por outra, neste ponto, o absurdo e a ignorância aos olhos do homem se equivalem. É sobremaneira, o acolhimento destes últimos o divisor de águas para o homem sem respaldo para o saber de si.
A mulher no barco ao adotar novo estilo de vida, reconhece poder aprender com cada dificuldade, o ignorado perde o sentido quando se olha de frente e o medo é esquecido. Pelo exemplo do homem ao dizer-se marinheiro estando em alto mar, ela também se mostra prática ao cuidar do barco. Agora há uma comunhão do sonho fortalecida porque são duas vontades celebradas em detrimento daquilo que a opinião corrente decide como o certo a se fazer. Embora esta deixe rastros de si num conflito interior, por exemplo, na suposição de não encontrar tripulantes fazendo disso uma provável desistência, a outra parte desse duo demonstra o irreversível da transformação.
Se não encontrar os tripulantes necessários, a mulher se dispõe a ir sozinha com ele. O homem via tal decisão como loucura, não a estampada na porta do palácio do rei, mas, aquela visível nas atitudes de sua companheira, desta retira a serenidade em poder realizá-la.
No intervalo do sono no barco, as agruras também cessam ao serem tomadas pelo pensamento de ambos os futuros navegadores. Semelhante ao que o narrador do romance As intermitências da morte anuncia: “É o costume dessa gente, nunca acabam de dizer o que querem.” (SARAMAGO, 2005, p. 164) E, se não acabam é porque têm muito para viver, muito por saber da ilha a se distanciar a cada vez havendo desconhecimento. No sonho do homem em querer a ilha desconhecida, ele está feliz porque finalmente sai a navegar como um novo Noé com a missão de povoar a terra.
Formando um casal com a mulher, juntamente com os animais no porão eles finalmente atracariam naquela ilha ignorada pelos mapas. De leme nas mãos, o que fazer de si também, o homem no sonho, mas consciente de sê-lo, tem um pensar fingido e não se envergonha disso. Sabe de certeza apesar de não saber como o sabe que a mulher estava ao alcance dos olhos; ela, a terra, as plantas a bordo num significado maior de germinação, proliferação daquela maneira diferenciada de viver.
Mesmo no sonho a voz do senso comum ainda pretende se sobressair aos volteios do homem cujo leme tem firme nas mãos. Os pretensos marinheiros ao relatarem sobre o não avistarem nenhuma ilha conhecida ou seu contrário, manifestam a vontade de atracar na primeira terra povoada à vista. O porto, uma taberna e uma cama figuram como o desejo deles pelo estabelecido. Quando questionados sobre a ilha desconhecida – aquilo que eles mesmos são e não o reconhecem – o escárnio é inevitável; se os geógrafos do rei haviam afirmado a inexistência de ilhas desconhecidas, embarcaram na aventura pelo motivo de encontrar novas terras, sendo a viagem do homem, um subterfúgio. Sentindo-se abandonado, vítima da própria decisão, o homem agora proprietário de um barco e uma vontade, aprendeu da forma mais dura: o mar não ensina a navegar; não era detentor de um saber prévio para essa aventura.
Ao avistar terra longínqua quis ignorá-la para protesto dos falsos marinheiros à bordo. Sua intenção era fazer dela algo, tipo miragem daquela ilha desencadeadora da viagem. Essa terra alcançada pelos olhos dos homens a qual era o lugar onde desembarcariam conforme manifesto, se transforma em motivo de ameaça ao dono do leme. Aqueles companheiros de ocasião descem do barco com assentimento do proprietário, levando junto os animais do porão, ficando apenas as árvores, os trigos e as flores. As raízes das árvores se espalham, abrindo caminho como as caravelas vão aos poucos formando uma floresta, abrigo dos pássaros. A relação com o desfecho da história de Noé é inevitável. A nova terra, o canto dos pássaros anunciando vida – vida transformada – porque a seara está madura precisando apenas ceifá-la. No instante em que sai para fazer a colheita, o homem acorda abraçado à mulher da limpeza. É o momento no qual a transformação maior se opera. O barco com a terra do sonho espalhado sobre si, as árvores crescendo em seu interior é enfim a ilha desconhecida procurada por ambos. No encontro íntimo das consciências há maturidade, esta chega pela hora do meio-dia, metáfora do auge da razão iluminada pela emoção do conhecimento alcançado. Levados pela maré, no mar, os dois não atracam, seguem sem rumo traçado como a ilha desconhecida à procura de si mesma.
Esse conto de José Saramago contempla de forma abrangente a luta travada entre o homem e o senso comum. O gesto de ir contra o sentido armado, empreendido pelo protagonista ao querer de forma incontestável algo que possa dizer quem ele é, de enfrentamento das questões colocadas como impedimento, passa em primeiro lugar pela fase de nomeação. Não é demais repetir: primeiro manifestou de maneira clara e contundente seu desejo de um barco; depois qual era a intenção com aquilo; em seguida postou-se frente à porta onde o rei atendia os pedidos; por meio disso se faz ouvir; tem o barco mas a tripulação só existe em sonhos. Nisso surge a dúvida se o conhecimento almejado significava uma vida, ocasião na qual a mulher da limpeza retoma o ideal e o impele a consegui-lo. Durante toda a narrativa a começar pelo título o inominado predomina: não é uma ilha como outras, é a desconhecida; o homem do conto não é sinônimo de grandeza, alguém em quem se concentra os olhares por provocar a mudança de um estado de coisas. A metamorfose é dele mesmo junto da mulher igualmente sem nome. Quando o processo de nomeação ocorre na história – falar do desejo, se converter nele, enfim, entrar para dentro do espelho – é o momento de dar nome ao barco, não é mais um barco para ir ao encontro do ignorado, conforme solicitou ao rei. O barco que por iniciativa do homem e da mulher se chamará “ilha desconhecida”, não irá parar como o fez os acomodados quando avistaram a terra. A viagem continua como o sentido de si procurado.
Ao se abrirem para o problemático da vida, impulsionados pela maré, em alto mar, notemos, o homem não está mais ao leme e sim na proa do barco junto da mulher.
Na nossa interpretação isso amplia o sentido na medida em que o personagem – o homem levado pela vontade de ser – não se firma num lugar a assentar. Os percalços, o se sentir inseguros (a maré) não é algo para ser temido, é, por outro lado, um trajeto impossível de se desviar por estarem atentos à diversidade.
Os dois personagens, à maneira de um complemento assim como fazemos a leitura de Tertuliano Máximo Afonso e António Claro, protagonistas de O homem duplicado são a expressão de duas metades ímpares. O vazio experimentado no primeiro caso ao não encontrarem marinheiros para o barco, depois serem abandonados por eles e no segundo (o romance) ter a imagem atrelada a um desconhecido, em seguida ser convertido nela sem achar nova máscara, provoca sentidos. Se estão sozinhos, estão por outro lado no domínio do pensamento acerca de si. Todos eles a seu modo não se satisfazem mais com o concreto. Uma ressalva é preciso fazer com relação a este último ponto. O homem e a mulher uma vez dentro da ilha desconhecida, bem como o homem cuja imagem não é mais sua, perfazem o duplo. Todos eles se tornam dignos de si quando partem em busca do ignorado movidos pela vontade pensamentada cujo propósito é capturar o acontecimento.
Se os personagens das narrativas mencionadas se arriscam rumo à diferença num modo de viver, escolhem a terceira via ao se deslocarem. Ao pretenderem uma nova história para si mesmos, tomam junto da vontade decidida, o objetivo de afastar o senso comum procurando manter a serenidade em meio ao intempestivo dos acontecimentos.
Nisso são muito intensos a ponto de causar estranheza: vide o modo pelo qual os circundantes no palácio se surpreendem com a vinda do rei para ouvir o pedido de um homem do povo; o comentário do professor de Matemática sobre o de História n’O homem duplicado: “você não é mais o mesmo”.
Quando os anseios do mundo já não satisfazem os personagens, o inesperado se converte em atrativo de maneira tal a se transformar no motivo da busca por saber quem são. O erro no qual possivelmente se viram por obra e graça do senso comum é de ora em diante, a mola-mestra para fundar com a própria decisão um conceito mais condizente. Por isso percebemos, os desnorteios por se ver duplicado tem tanta validade para uma significação de si quanto a convicção da ilha desconhecida existir; apesar de não constar nos mapas, o impensado prevalece. Pressupostos estes no intuito de as questões existenciais serem colocadas, o homem literário sente, avalia e aceita o dilema em condições cabíveis de se enfrentar.
Na prevalência das emoções e sentimentos propostos na literatura de José Saramago, o eu dos personagens se sente parte de um conteúdo a ser desvendado, uma ilha. Ser primeiro neste contexto não significa determinar quem é original ou cópia, refere-se por outro lado a reconhecer e fazer valer o nada como experiência de vida.
Absorvidos pelo caminho, os personagens deixam de ser os espectadores e agem no sentido da auto-identidade à maneira de abertura. Em questionamento, o homem ao sujigar o senso comum pergunta sobre o próprio corpo, a relevância de si junto dos anseios mais recônditos que de repente não podem mais ser sufocados. É então a ocasião de serem tomados pelo desejo de conhecer. Com o auxílio do sonho/imaginação irreconciliáveis com o senso comum, o ser literário é compensado com os vãos obscuros de si.
O fato dos personagens anônimos de Ensaio sobre a cegueira (1995), A ilha desconhecida e As intermitências da morte terem os mesmos objetivos de conhecimento, ao serem nomeados n’O homem duplicado não significa o alcance da segurança ontológica. Com a perda da notoriedade pelo nome, os seres fictícios povoam esse último livro e incandescem a humanidade através da busca de algo sem causa, do específico entrando em vigor assim que um sonho se torna realidade. A subjetividade assume o primeiro plano, não é mais a mesma até pelo recurso da interpretação adotada.
O duplo e a ilha. Os personagens voltam a se perguntar: quem sou eu? Sem dúvida, essas narrativas são especiais porque apresentam o homem em plena manifestação de si. Tomando-se como a partida para um recomeço embora o duplo possa aparecer do outro lado, instiga o sujeito no papel de comandante sem subordinados, a estar atento ao porvir. Diferentes no conhecimento à vista, se com sentido ou sem ele, o corpo duplicado pelas emoções tece as arranhaduras e não mais se lamenta por elas. O inesperado contraria, tem agora a possibilidade de se situar na tensão apesar de não se incomodar com isso. Podemos dizer, funciona como uma espécie de desnomeação, sabendo com antecedência não ter a intenção de se impor. Isto tem cabimento, por exemplo, quando o homem dono do barco não se opôs na saída dos tripulantes afoitos pelo conhecido. Em pleno mar, a ancoragem se houver daí em diante será em espiral. Em condições semelhantes, sem nome, sem vida, o duplicado não consegue se impor nem para si, porém sai à procura, de uma escolha?
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