Português: Análise de "Pobre velha música"

domingo, 8 de novembro de 2020

Análise de "Pobre velha música"

O poema “Pobre velha música” é uma composição poética de Fernando Pessoa, sem data, publicada na revista “Athena” em dezembro de 1924.
À semelhança do que sucede noutros poemas do ortónimo, o poeta contrapõe o período da infância ao presente, considerando aquela como um “período dourado da sua existência”, o qual, porém, não regressará. No caso da composição poética em análise, é a “Pobre velha música” que simboliza esse período. Note-se, a título de curiosidade, que a mãe do poeta tocava piano, daí não ser de estranhar que esta forma de arte seja presença na sua obra. Aliás, Pessoa escreveu mesmo um poema que se refere, de forma explícita, à sua progenitora tocando o instrumento musical.
 
 
Assunto: ao ouvir a músicas, o sujeito poético recorda a sua infância, e, mesmo não tendo a certeza se foi feliz, solta toda a sua nostalgia presente ao rememorar esse período da sua vida.
 
 
Tema: a nostalgia da infância.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª estrofe) – Nostalgia do sujeito poético suscitada pela música.
 
2.ª parte (2.ª estrofe) – Recordação vaga e indefinida da infância.
 
3.ª estrofe (3.ª estrofe) – Desejo do sujeito poético de regresso ao passado, motivado pelo estímulo musical.
 
 
Desenvolvimento do tema
 
O sujeito poético é motivado por um estímulo sensorial auditivo que o emociona e desperta a sua nostalgia, visto que a música suscita em si recordações da sua infância. Embora seja um período feliz, traz ao «eu» uma grande tristeza e nostalgia, visto que está associado a uma idade perdida que é irrecuperável.
 
Esta temática – a nostalgia da infância – surge na poesia de Pessoa como uma fase da vida feliz, pela inconsciência, pela inocência de nada saber ou pensar, pela despreocupação, pela imaginação. No entanto, trata-se de um tempo impossível de recuperar, daí ser considerado um paraíso perdido.
 
A infância surge sempre em oposição ao presente, constituindo este um tempo negativo, enquanto aquele é recuperado pela memória como uma época de felicidade perdida.
 
Assim, neste poema, os dois tempos – presente e passado da infância – estão em equação: o sujeito poético, de olhar «parado» (no presente), chora quando ouve a música que escutava outrora.
 
A dupla adjetivação em posição pré-nominal do primeiro verso (“Pobre velha”) enfatiza os sentimentos de angústia e a nostalgia do sujeito poético. Subjetivamente, estes adjetivos mostram que a infância é um tempo longínquo e o «eu» lírico apresenta-se nostálgico relativamente às vivências desse tempo. Note-se que, neste passo do poema, está presente igualmente a personificação, visto que quem é «pobre» e «velho» é o sujeito poético que habitualmente ouvia aquela música e que, agora, tem consciência de que esse tempo nunca mais regressará. Daí o choro.
 
De facto, a recordação dessa música, embora de um período feliz da sua vida, aporta-lhe, no presente, grande tristeza, angústia, dor e nostalgia, pois está associada a uma época perdida, a um paraíso perdido, que nunca mais regressará, que é irrecuperável. A música é o elo de ligação entre o passado e o presente.
 
A segunda estrofe abre, precisamente, com a recordação do passado. De facto, o «eu» lembra-se de si enquanto criança que, supostamente, terá ouvido essa música, deixando no ar a dúvida se realmente a ouviu ou simplesmente a música o faz, agora, recordar-se da sua infância.
 
O sujeito poético recorda, de facto, o passado, mas quem, na realidade, ouviu a música foi ele, porém noutra idade, noutra fase da sua vida e com outros sentimentos. O «outro» era o «eu» enquanto criança e ele recorda-se de si próprio nesse período a escutá-la. Isto só vem confirmar a antítese passado / presente que percorre o texto.
 
Na última estrofe, o sujeito poético revela um desejo desesperado (“ânsia tão raiva” – v. 9) de regressar ao passado (“Quero aquele outrora!”). Esses sentimentos de raiva e angústia é acentuado pela exclamação. O sujeito poético afirma desconhecer se foi feliz na infância, no entanto deseja veementemente viver de novo esse período da sua vida (“Com que ânsia…”); todavia, reconhece que tal é impossível, o que gera a sua ira (“tão raiva”).
 
Segue-se uma interrogação retórica (“E eu era feliz?” – v. 11), através da qual o «eu» se questiona e destaca a dúvida acerca da felicidade vivida no tempo da infância, para a qual não tem resposta: “Não sei”.
 
Daqui o sujeito poético projeta-se num plano temporal que é impossível concretizar: ser criança e ser adulto, numa simbiose entre o passado e o presente. O «eu» lírico exprime o desejo de regressar ao passado, conotado com a felicidade que enraíza no tempo mítico de uma infância imaginada, mas questiona-se também se terá, efetivamente, vivido esse tempo de alegria, ou se esta será apenas produto da sua imaginação.
 
O paradoxo do verso 12 procura responder à dúvida: “Fui-o [feliz] outrora agora”. Apesar da incerteza de ter vivido uma infância feliz (“E eu era feliz?”) (devido à memória vaga desse tempo e, possivelmente, por essa felicidade ser apenas imaginada), o som da música tem o condão de o fazer feliz, no presente: “Fui-o outrora agora”. Da associação entre o «outrora» e o «agora», vivenciados em simultâneo, resulta a expressão da felicidade possível: a que permanece na memória e é presentificada através da música. Essa felicidade, portanto, acontece apenas no pensamento, no instante em que uma música motiva a memória do tempo da imaginação, da inocência e da inconsciência.
 
 
Síntese do poema

A nostalgia da infância é desencadeada pela audição da música (v. 1).

A música no passado é diferente da que recorda no presente (vv. 5-8) – a perceção de dois modos de ouvir.

O passado é lembrado de forma vaga / difusa e duvidosa (vv. 6, 11-12).

A felicidade na infância é construída no presente, através da memória, da recordação (vv. 10-12).

O passado e o presente fundem-se, sendo vividos em simultâneo (v. 12).

 
 
Retrato do sujeito poético

Ao longo de todo o poema, o sujeito poético revela grande dúvida e incerteza acerca das razões da sua emoção (“Não sei por que agrado” – v. 2) e da realidade / veracidade dessa felicidade na infância (“E eu era feliz? Não sei…” – v. 11).

Situado no presente, o «eu» deseja retornar à infância, o tempo da inocência, da inconsciência e da ausência da dor de pensar (vv. 9-10).

O sujeito poético sente-se triste e irritado por a infância ser um tempo perdido e irrecuperável (“Com que ânsia tão raiva / Quero aquele outrora!” – vv. 9-10).

O sujeito poético, de «olhar parado», chora, cheio de dor, sendo as suas lágrimas causadas pelo sentimento de perda inexorável e de infelicidade que o dominam no presente.

O sujeito poético sente saudade, angústia e nostalgia da infância, época que deseja recuperar: quando ouve a música, lembra-se do passado em que também a ouvia, e chora com saudades desse tempo.

Presentemente, revela abulia, inércia, perda da vontade, que se traduzem na dor de pensar (“Enche-se de lágrimas / Meu olhar parado.” – vv. 3-4).

O «eu» lírico sente uma permanente incapacidade de ser feliz (“E eu era feliz? Não sei”).

 
 
Estrutura formal

• Estrofes: 3 quadras.

• Rima:

- esquema rimático: ABCB

- versos brancos alternados com versos rimados cruzados

• Métrica: redondilha menor.

 
 
A temática da infância
 
A nostalgia da infância é um dos temas fundamentais de Fernando Pessoa ortónimo, partilhado por Álvaro de Campos.
Para Pessoa, a infância é um tempo passado irrecuperável perdido, o tempo longínquo em que era feliz sem saber que o era, o tempo em que ainda não tinha iniciado a procura de si mesmo e, por isso, não se tinha fragmentado.
Em Pessoa, a passagem da infância à idade adulta não é um processo evolutivo e tranquilamente natural; pelo contrário, é um processo de rutura. Passado e presente não se completam, antes se opõem; não há uma continuidade entre eles. Aquele é um tempo de felicidade, alegria inconsciente, enquanto o presente é nostalgia, ânsia, desconhecimento de si mesmo e do futuro.
A infância funciona como uma espécie de refúgio, tendo como motivações a insatisfação com o presente e a incapacidade de o viver em plenitude.
Por outro lado, a infância é sentida como uma cadeia de instantes que se vão sucedendo, sem qualquer relação entre eles, provocando no «eu» poético a sensação de fragmentação e de ausência de identidade.
Estes dados geram em si uma visão bastante negativa e pessimista da existência, que o futuro tenderá a aprofundar, visto que é o resultado de sucessivos presentes carregados de negatividade.
 

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