● Personagens
Este
parágrafo apresenta uma nova personagem: o escravozinho, o filho da
escrava que amamenta o príncipe.
Socialmente,
enquanto filho de uma escrava, a sua condição é igualmente a de escravo. Além
disso, embora tenha nascido na mesma noite que o príncipe e seja rodeado dos
mesmos cuidados e tratado com o mesmo carinho, a sua condição de vida é
claramente mais humilde. O seu berço é “pobre e de verga”, o que simboliza a
sua condição inferior e subalterna na sociedade. No entanto, cola-se-lhe à pele
uma certa dignidade e inocência, a ele que é alvo do mesmo amor, cuidados e
atenção que o príncipe, incluindo por parte da rainha. Fisicamente, é um bebé
de berço, tem o cabelo negro e crespo e olhos brilhantes (“Os olhos de ambos
reluziam como pedras preciosas” – comparação).
À
semelhança do que sucede com as restantes, também o filho da aia é uma
personagem anónima, sendo identificado pela sua condição social, daí ser
designado pelo narrador como o «escravozinho». Esta designação não deixa
dúvidas de que é um escravo, portanto socialmente inferior.
A aia,
a mãe do escravozinho, é uma escrava que dá título, nome e sentido à história,
cuja função é exercer um papel maternal, isto é, criar ambas as crianças.
Fisicamente, é bela e robusta, qualidades que sugerem vigor físico.
Psicologicamente, é uma serva leal, traço que se revelará fundamental para o
desenrolar dos acontecimentos. A sua lealdade e dedicação são tais que cuida do
futuro rei com o mesmo desvelo e carinho que dedica ao próprio filho: “A leal
escrava, porém, a ambos cercava de carinho igual, porque se um era o seu filho –
o outro seria o seu rei.” Ou seja, se a um a liga o sangue, ao outro é a
lealdade a quem lhe é superior.
Por sua
vez, o principezinho, sempre tratado de forma carinhosa, por meio de diminutivos,
fisicamente, tem o cabelo louro e fino e os olhos brilhantes. Social e
psicologicamente, dada a sua nobreza de sangue, é de condição social superior,
portanto privilegiada, e rico, como o demonstra o facto de dormir num berço “magnífico
e de marfim entre brocados”. Ele representa o futuro da monarquia e do reino,
daí ser, de certa forma, o centro das atenções e das preocupações das demais
personagens. Nesta fase inicial da sua existência, é tratado de modo igual ao
do escravozinho, sem privilégios de monta, à exceção do berço em que dorme.
Assim, ambos partilham da mesma atenção, cuidado e carinho, sugerindo que, na
infância, não existem as barreiras e diferenças que, no futuro, os separarão.
A caracterização
do príncipe e do escravozinho revelam um conjunto de semelhanças e diferenças
entre as duas personagens:
a)
Semelhanças:
i) viviam
no mesmo castelo
ii) tinham
nascido na mesma noite de verão (símbolo de um destino partilhado?)
iii) alimentavam-se
do mesmo seio = a aia amamentava ambos (estão ligados simbolicamente desde os
primeiros momentos de vida)
iv) eram
ambos beijados pela rainha
v) eram
tratados pela aia com o mesmo carinho, como se fossem os dois seus filhos
vi) os
olhos de ambos eram brilhantes (igualdade na beleza e no brilho)
b)
Diferenças:
|
Principezinho |
Escravozinho |
Aparência
física
↓ simboliza
o contraste étnico e social entre ambos |
. cabelo louro e fino |
. cabelo negro e crespo |
Condições
materiais |
. berço magnífico e de
marfim |
. berço pobre e de verga |
Condição
social
|
. classe social: nobreza / realeza – príncipe herdeiro do
trono . rico e privilegiado . filho da rainha |
. classe social: escravo . pobre e humilde . filho da escrava |
Situação |
. frágil e vulnerável |
. nada tinha a recear |
● Linguagem e recursos expressivos
A adjetivação
assume também grande relevância neste parágrafo, preferindo o narrador o
uso da dupla adjetivação na elaboração do retrato das personagens. Assim, a aia
é caracterizada como «bela e robusta», enfatizando a sua beleza física e a sua
robustez física. Os dois traços têm o condão de a humanizar, sugerindo que,
apesar de ser de condição social inferior, é um ser humano que se destaca pela
aparência física atraente (o primeiro) e enfatizar o seu lado maternal e
capacidade de nutrição. A dupla adjetivação é o recurso usado para dar conta
das características físicas dos dois meninos: o cabelo louro e fino do príncipe
sugere uma imagem de delicadeza, pobreza e fragilidade da personagem (na
tradição cultural ocidental, o cabelo louro é assiduamente associado à nobreza
e pureza, o que sugere a sua condição social destacada); o cabelo negro e
crespo do escravozinho contrastam com o do vizinho de berço e são associados a
pessoas de origem africana, enfatizando, portanto, a identidade / origem étnica
e social da personagem – filho de uma escrava. A adjetivação expressiva é
utilizada ainda para descrever os berços. Assim, o do príncipe é magnífico,
adjetivo que sugere riqueza, enquanto os nomes «marfim» e «brocados»
enfatizam as ideias de sofisticação e privilégio. Por seu turno, o do pequeno
escravo é «pobre» e feito de «verga», nome que expressa a simplicidade do
objeto, denunciando a sua condição social inferior. Em suma, estes adjetivos
vincam os contrastes sociais e materiais entre as duas crianças, bem como os
traços físicos e psicológicos que distinguem as personagens.
O
retrato dos dois infantes assenta também na figura da antítese, que
evidencia as características contrastantes que os diferenciam, como é o caso da
cor da pele e do cabelo, a qualidade e o material dos berços.
A comparação
dos olhos de ambas as crianças a pedras preciosas realça o seu brilho e beleza.
Outro
recurso impactante e reiterado ao longo do conto é o diminutivo,
aplicado às duas crianças. «Escravozinho» enfatiza a tenra idade da personagem,
bem como as ideias de inocência e fragilidade, traços partilhados por ambos os
infantes. Por outro lado, evidencia o facto de a condição social ser uma espécie
de ferrete que a sociedade impõe desde a nascença ao filho da aia e que o
acompanhará ao longo da vida. Em terceiro lugar, o termo carrega, por si, uma
conotação de submissão e inferioridade, o que é enfatizado pela redução ao
diminutivo, que veicula, nesta aceção, as ideias de pequenez e submissão. No fundo,
reflete a mentalidade da época medieval, durante a qual as pessoas escravas
eram tratadas como inferiores e menos importantes do que as restantes.
● Elementos simbólicos
O berço
de marfim simboliza a riqueza e o privilégio de quem nele dorme, o príncipe,
enquanto o de verga traduz a humildade e a condição social inferior do pequeno
escravo.
O facto
de os dois bebés serem amamentados pelo mesmo seio pode simbolizar a igualdade
na primeira infância, antes que as normas sociais se impusessem e pusessem em
marcha o estatuto de cada um.