“Nihil Sibi” é um poema da autoria
de Miguel Torga, pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, um escritor e médico
natural de S. Martinho de Anta em 1907. A sua obra poética em particular aborda
temas sociais, como a natureza, a justiça e a liberdade, o amor e a angústia da
morte, a condição humana, o papel do poeta na sociedade, e deixam transparecer
um sentimento de telurismo permanente entre o ser humano e a terra.
O título do poema é
constituído por uma expressão latina que significa «nada para si» e,
neste caso, sugere a ideia de que o poeta é uma figura altruísta, alguém que,
tal como uma fonte, não guarda nada para si, antes se entrega inteiramente
através da sua arte. Ou seja, indicia que o poeta é alguém cuja obra e produção
se destinam ao «outro». A palavra «nihil» significa «nada», enquanto o
termo «sibi» é o pronome reflexivo próximo de «se». Deste modo, a
expressão completa seria algo próximo de «nada em si» ou «nada para si».
A epígrafe, entre parênteses,
reforça o sentido do título, enfatizando a ideia de que nada retém para si,
antes compartilha tudo o que tem através da sua poesia, que constitui um ato de
generosidade e altruísmo. Segue-se à epígrafe uma singela quadra de versos
brancos e métrica irregular, o que, juntamente com a linguagem simples e clara,
aproxima o poema do leitor.
Este texto abre com uma metáfora que
define o poeta como uma fonte: “O Poeta é uma fonte:”. Uma fonte é algo
que jorra água incessantemente, símbolo de vida, pureza e renovação. Ao
associar a figura do poeta a uma fonte, o sujeito poético sugere que o papel
daquele é «dar-se», fazer nascer poesia e originar, de forma espontânea, o
canto, partilhando com os outros os seus sentimentos, pensamentos, etc. Ou
seja, o poeta é uma fonte de poesia, faz nascer poesia. O verso inicial termina
com dois pontos, o que indicia que no(s) seguinte(s) irá explicar / desenvolver
a ideia nele expressa.
De facto, o segundo verso “esclarece”
a metáfora inicial, enfatizando o caráter altruísta do poeta, já que ele “Nada
reserva para a sua sede”, ou seja, nada guarda para si mesmo. O seguinte
confirma claramente que o papel do poeta é dar-se: ele, qual fonte, faz nascer
a poesia e origina, desse modo espontâneo, o canto. Claramente, está aqui presente
a noção de que o canto é o reflexo da sua abnegação e do seu altruísmo: ele não
canta por cantar, antes se entrega e partilha o seu canto.
O último verso não deixa dúvidas: o
poeta está sempre vigilante (“E não dorme”), tem uma postura interventiva e
atenta ao que o rodeia e é um ser que se dá ao outro, infatigável (“nem para”).
Retomando a metáfora inicial, o poeta é uma fonte que nunca para de jorrar
poesia, não dorme, nem para, está em constante processo criativo. A sua atividade
– a criação poética – tem, em suma, um caráter permanente e imutável.
O poema apresenta, pois, o poeta
como alguém altruísta e abnegado, isto é, um ser que se dá completamente, nada
guarda para si. Esses traços, essa espécie de sacrifício, são necessários para
a criação poética, através da qual exprime e partilha as suas emoções,
pensamentos e preocupações. O vocabulário usado sugere exatamente essa entrega
permanente: «reserva», «dar-se», «não dorme».
O Mosteiro de Rendufe, mais
concretamente o seu terreiro, possui uma fonte granítica de espaldar que
ostenta a inscrição latina «Nihil sibi». A Bíblia inicia-se com a
referência a uma fonte ou rio no paraíso terrestre que logo se desdobra em
quatro (Génesis 2, 0) e encerra no Apocalipse (22, 1) com a fonte originária
da vida eterna no quadro da cidade celeste da Nova Jerusalém. No texto bíblico,
encontramos também a fonte aberta por Moisés no rochedo do deserto, bem como o
encontro de Jesus Cristo com a mulher samaritana junto à fonte de Jacob.
Miguel Torga, não se sabe se
inspirado nessa fonte de Rendufe, usou a expressão latina «nihil sibi»
para dar título a este poema, o primeiro de uma obra intitulada igualmente Nihil
Sibi, publicada em Coimbra, em 1948. Regra geral, o simbolismo da fonte
está associado ao da água: aquela é o símbolo da vida, dado que dela jorra a
água sempre necessária à vida. No entanto, a expressão que podemos encontrar no
Mosteiro de Rendufe centra o simbolismo na disponibilidade da essência de fonte
para dar e não tanto naquilo que dá. A fonte dá e nada guarda para si, pelo que
o mais importante é a própria fonte, que está sempre à disposição,
humildemente, do «caminhante», não tanto o conteúdo da doação, isto é, a água
que dá. A fonte nada guarda para si e nada pede em troca do que dá. O ato
desinteressado de dar é a natureza da fonte.
A obra foi publicada, como já
referido, em 1948, apenas três anos após o final da Segunda Guerra Mundial, uma
fase em que a Europa estava em fase de recuperação de uma ferida tremenda. O
horror descoberto nos campos de concentração nazis, a denominada Solução Final,
deixou repleto de sofrimento e de incredulidade o ser humano e suscitou duas
grandes questões: 1.ª) como pôde Deus permitir tamanha violência ao Homem; 2.ª)
como pôde a humanidade ser capaz de tal atrocidade com o seu semelhante?
A imagem do poeta metaforizada numa
fonte tem uma intenção clara: associá-lo àquele que no mundo tem a função de
não deixar morrer a grande mensagem e verdade da vida, presente em toda a obra –
existir humanamente. O poeta pode morrer fisicamente, porém permanece vivo
através da sua poesia, que não tem fim e vive eternamente.
Em suma, o assunto do poema, em
termos de figurações do poeta, aponta para o seu papel abnegado
(enquanto criador de poesia).