Português

sexta-feira, 4 de março de 2011

Paralelismo histórico-metafórico


Vicente

          Vicente integra o grupo dos traidores e delatores, o equivalente aos «bufos» da época do Estado Novo. Este grupo move-se pela conveniência, isto é, representa todos aqueles que se aproximam do poder para obter favores e que não têm qualquer pejo em se vender aos governantes. São, no fundo, os verdadeiros traidores que não têm qualquer ética ou valores morais e que passam impunes, alcançando os seus objectivos.

          Vicente é, na peça, o maior representante  desta «classe». Ele é um elemento do povo / popular que surge, pela primeira vez, investido na função de provocador e agitador, procurando denegrir a imagem do general Gomes Freire de Andrade junto do povo através de diversos «argumentos»: a guerra e as feridas e mágoas que deixou na lembrança das pessoas ("Vocês ainda não estão fartos de generais?" - pág. 21); as miseráveis condições de vida em que vivem [a fome que atinge as famílias, muitas numerosas, procurando apelar ao sentimento de pai ("Tens sete filhos com fome e com frio e vais para casa com as mãos a abanar. Julgas que o Gomes Freire os vai vestir?" - pág. 21); a ausência de vestuário; a ausência de habitação ("Nenhum de vocês tem um tecto que o abrigue no Inverno..." - pág. 21)]; o desprezo a que são votadas as pessoas quando deixam de ter utilidade, abandonadas à miséria e à condição de pedintes, por contraste com os generais, que obtêm glória ("... para eles se encherem de medalhas..." - pág. 22) através do seu sacrifício e vivem confortavelmente("Matas a fome com os cinco réis e com a recordação da campanha. Mas eles... eles vão para casa encher a pança!" - pág. 22 - notar o recurso a uma linguagem rude, sinónimo da sua origem social), indiferentes à desgraça alheia. Depois, concentrando-se directamente no seu alvo, acusa-o de ser um «estrangeirado» (pág. 23) e ser igual aos outros, de estar conluiado com o poder ("Porque está feito com eles, porque essa gente é toda igual." - pág. 24). Nessa sua tarefa, socorre-se por vezes do sarcasmo e da ironia ("É um santo, o teu general..." - pág. 23).

          Durante o diálogo com os dois polícias, Vicente autocaracteriza-se como mentiroso ("... digo-lhes metade da verdade." - pág. 25) e revela toda a sua astúcia, manha e inteligência ("Lembro-lhes que o Gomes Freire é general e falo-lhes da guerra. Haverá alguém que se não lembre da guerra?"; "Odeiam os Franceses e os Ingleses? Chamo estrangeirado ao Gomes Freire..." - pág. 25), todo o seu materialismo, oportunismo e ambição, afirmando que se vende a quem lhe pagar: "Só acredito em duas coisas: no dinheiro e na força. O general não tem uma nem outra." (pág. 25). Ora, estas afirmações permitem deduzir que Vicente poderia perfeitamente aliar-se ao general caso este fosse detentor de dinheiro ou poder, o que quer dizer que não há qualquer ideologia que sustente as suas acções, apenas o seu interesse imediato.
          Por outro lado, esta personagem não tem qualquer rebuço em confessar que trai os seus por dinheiro ("Ias perguntar-me se foi por dinheiro que eu me virei contra os meus..." - pág. 26), mostrando-se descontente, frustrado e revoltado com a sua condição social, revelando igualmente vergonha das suas origens ("´É verdade que nasci aqui e que a fome desta gente é a minha fome, mas... é igualmente verdade que os odeio, que sempre que olho para eles me vejo a mim próprio: sujo, esfomeado, condenado à miséria por acidente de nascimento." - pág. 27). O modo que encontra para ultrapassar a sua condição e o seu sentimento de inferioridade passa pela ascensão político-social rápida, obtida através da denúncia  e da traição e concretizada com a obtenção do cargo de chefe de polícia ("... sou capaz de acabar com uma capela... ou chefe de polícia..." - pp. 30-31). Esse sentimento de inferioridade e de vergonha pelas suas origens leva-o a desprezar os seus semelhantes, os elementos da sua classe ("Rindo-se com desprezo" [do 1.º Polícia] - pág. 31). Por outro lado, em determinado momento denuncia a incapacidade de o povo se fazer ouvir pelo Poder ("Bem vistas as coisas, que pode a voz do povo contra a voz d'el-rei?" - p. 35). A sua origem social fica patente na sua linguagem, quando recorre a provérbios populares: "Há quem diga que a voz do povo é a voz de Deus..." (p. 35).

          No seu percurso, marcado por várias etapas - provocador e agitador (início do acto I), procurando denegrir a imagem do general; espião (vigia a casa de Gomes Freire); delator (denuncia o general, acto pelo qual espera uma recompensa); acusador (confirma a existência das reuniões e indica o nome dos conspiradores) - ficam bem patentes as suas características mais marcantes: a hipocrisia, o servilismo, a adulação, o materialismo, o oportunismo dos que não olham aos meuos para atingir os seus fins. No diálogo entabulado com os governadores, nomeadamente com D. Miguel, demonstra toda a sua adulação ("Avançando e fazendo uma vénia prolongada" [para D. Miguel] - pág. 33; "Francamente adulador" - p. 34), todo o seu calculismo e hipocrisia, visto que age e fala de acordo com aquilo que pensa poder agradar ao seu interlocutor. Dito de outra forma, as respostas que Vicente dá ao governador são, inicialmente, dúbias até ter a certeza da sua posição em relação ao general ("Fixa atentamente D. Miguel porque não tem a certeza de estar a agradar. A meio da frase faz uma pausa para estudar a reacção do governador, e recomeça." - p. 34).

          Após a denúncia e condenação do general, Vicente é recompensado pelos seus «bons» serviços ao ser promovido a chefe de polícia, afinal a sua grande ambição, passando, a partir daí, a ignorar e maltratar os seus conhecidos e os da sua classe social: «Olhou para mim como se nunca me tivesse visto. Estendi-lhe a mão e deu-me uma cacetada na cabeça.». Ele é, em definitivo, aquele que se vende ao poder de forma pouco escrupulosa.

quinta-feira, 3 de março de 2011

quarta-feira, 2 de março de 2011

Piscator

          Piscator foi um actor e encenador, portanto um homem do teatro, que trabalhou com Brecht e que esteve na origem da revolução dramatúrgica encetada por este último.
          Piscator considerava que uma peça de teatro serve para que se compreenda o mundo e a história e que o público deve manter-se afastado da acção, não se deixando encantar ou enfeitiçar por ela. Além disso, defendia encenações com poucos recursos técnicos, mas recorrendo a linguagens muito diversificadas. Para ele, o teatro era um veículo de actuação, de intervenção, de educação, muito próximo do teatro épico posteriormente teorizado por Bertold Brecht.

John Osborne

          Logo a seguir à dedicatória e antes da apresentação das personagens, encontramos um excerto de uma peça de John Osborne, dramaturgo inglês dos anos 50 e 60 que se caracteriza por um estilo muito crítico relativamente aos valores sociais mais tradicionais.
          A referida citação foi retirada de uma peça do dramaturgo, televisionada em 1960.
          O seu teatro é caracterizado pelo enquadramento individual do herói num contexto de época, reflectindo um drama de consciência. Ora, um dos problemas focados por Osborne é o do confronto do liberalismo, proclamado por uma voz individual, e do tradicionalismo em vigor numa sociedade ultrapassada, o qual pode ser encontrado também na peça de Sttau Monteiro. De facto, nesta, um indivíduo, Gomes Freire, que preconiza o futuro, o progresso, é marginalizado e perseguido por uma ordem inquestionável, a do regime figurado nas personagens Beresford, D. Miguel e Principal Sousa. Por outro lado, se Osborne pretende atingir criticamente a sociedade inglesa da sua época, nomeadamente a monarquia, Sttau procura reflectir sobre o silenciamento, levado a cabo pelo regime autoritário de Salazar, de uma voz de protesto e inconformismo: a do general Humberto Delgado.
          Tal como em Osborne, vamos encontrar em Sttau tiradas monologais (por exemplo, de Manuel e de Matilde) em que toda a riqueza interior das personagens surge desnudada perante o olhar do leitor ou do público.
          As personagens do dramaturgo inglês são figuras sós, excluídas, que falam e não são compreendidas pelos que as rodeiam. No entanto, não se deixam vergar pela ordem instituída a que se opõem, tal como sucede com Gomes Freire, Matilde e Sousa Falcão, verdadeiros rebeldes perante um poder instituído, mas não revoltosos ou revolucionários.
          Holyoake, a personagem de Osborne que consta do excerto transcrito na obra de Sttau Monteiro, defende o direito à opinião («What's the morality of a law wich prohibits the free publication of an opinion?») e auto-proclama-se um homem honesto sobre o qual impende uma única acusação: ir contra a opinião vigente («... I'm here for having been more honest than the law happens to allow.»; «But these weapons are denied only to those who attack the prevailing opinion.»). Assim sendo, esta figura pode ser entendida como uma outra versão de Gomes Freire, o defensor de uma liberdade que o poder autocrático não reconhece e que acaba por ser vítima desse mesmo valor que defende e que o condena.
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