Português: A dor de pensar em Fernando Pessoa

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A dor de pensar em Fernando Pessoa

 A dor de pensar

. O pensamento permite ao homem ter consciência da sua existência (logo, na perspetiva de Fernando Pessoa ortónimo, aqueles que pensam são superiores aos inconscientes).

. Contudo, o pensamento sistemático, a razão omnipresente provoca a dor de pensar no eu, dor essa que decorre de uma tendência permanente para refletir sobre a realidade e para intelectualizar as suas emoções (terá sido mero acaso o facto de Pessoa, em “Autopsicografia”, ter selecionado a dor como exemplo da sua teoria poética?).

. O poeta tem consciência de que existe um enorme fosso entre aquilo que sente e o que pensa que sente, ou seja, está consciente de que não consegue exprimir o que realmente sente, o que gera nele angústia. Esta constatação leva-o a desejar não pensar.

. A dor de pensar – de ser lúcido – é a consequência da constante racionalização das emoções, da análise, da abstração. A intelectualização excessiva causa sofrimento, dor, angústia e frustração. De facto, o poeta sofre, porque é incapaz de se libertar da razão / do pensamento permanente e omnipresente, que o leva sistematicamente a refletir sobre a realidade e a intelectualizar as suas emoções. Assim sendo, torna-se impossível desfrutar da sua vida e vivências.

. O poeta apresenta-se angustiado e abúlico, centrado sobre si mesmo, sofrendo a dor de pensar, a distância entre o sonho e a realidade e, sobretudo, dividido entre a inconsciência e a consciência, entre o sentir e o pensar, numa tentativa de ultrapassar a infelicidade e a angústia geradas pelo pensamento.

. Para ultrapassar a dor de pensar, o poeta deseja ser inconsciente e apenas sentir. É o que sucede nos poemas “Ela canta, pobre ceifeira” e “Gato que brincas na rua”, bem como em “A lavadeira no tanque”, nos quais ele exprime o desejo de ser inconsciente como a ceifeira ou irracional como o gato, para, assim, fugir à dor de pensar e ser feliz.

. No entanto, o eu acredita que aquele que não pensa, que é inconsciente, não pode ser verdadeiramente feliz, visto que não tem consciência da sua suposta felicidade. Assim sendo, a tentativa do poeta de ser libertar da dor de pensar acaba por redundar em fracasso.

. Em “Ela canta, pobre ceifeira”, manifesta, de facto, o desejo de ser inconsciente (como o gatou ou a ceifeira), mas tendo consciência disso. Porém, este desejo é um paradoxo, é impossível de concretizar, o que mostra que é impossível libertar-se da dor de pensar e, consequentemente, que a tentativa de alcançar a felicidade é igualmente impossível de se concretizar. Com efeito, o poeta aspira à vida instintiva e dirige-se à ceifeira, encantado pelo seu cantar, exprimindo a aspiração impossível de ser conscientemente inconsciente.

. A ceifeira e o gato são felizes, porque não pensam, enquanto o poeta não alcança a felicidade porque é racional.

 

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