Conceição Evaristo nasceu em Belo
Horizonte, em 1946. Licenciada em Letras pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro e doutorada pela Universidade Federal Fluminense, iniciou a publicação
da sua obra poética em 1990, no número 13 do Cadernos Negros, uma
antologia editada anualmente pelo Grupo Quilombhoje, de São Paulo.
Este poema narra a trajetória de
mulheres negras no Brasil, nomeadamente a consciência de ser negra e mulher.
Desde logo, o título da composição poética evoca a questão das vozes e
da sua pertença: as mulheres. Sob o olhar da sociedade patriarcal, vozes
caladas ecoam no poema. O uso do plural representa o coletivo, o sujeito
poético a percorrer a memória. A voz que é destacada logo no início é a da
bisavó, ou seja, trata-se de uma voz que não é exterior ao que é “narrado”;
pelo contrário, é a de alguém que viveu por dentro as situações, um passado
marcado pelo sofrimento que não se pode esquecer. Por outro lado, o início do
poema sugere, desde logo, a diáspora e a desumanidade e crueldade do tráfico
negreiro. A voz da bisavó do sujeito lírico ecoa através do tempo – “criança”,
símbolo da inocência, da fragilidade e da vulnerabilidade – e remete-nos para
os “porões do navio”, uma referência evidente aos navios que faziam o
transporte de escravos entre o continente africano e o Brasil e que nos coloca
perante o horror do sofrimento e da desumanização. A forma verbal “ecoou”, que
marca o passado, que se presentifica na leitura do poema, repete-se no verso
quatro, reforçando a ideia de que as experiências da bisavó ainda ressoam no
presente, nomeadamente a dor e o sofrimento, que permanecem vivos através da
memória, percorrendo a distância do tempo e tornando-se presente. O lamento
remete para a imagem inicial do poema, para a questão da voz, que se faz
presente no texto, mas sem possibilidade de alterar o destino, pois constitui
um mero lamento de “uma infância perdida”.
A primeira estrofe, em suma,
remete para o campo da memória coletiva, dado que o sujeito poético não viveu o
que relembra, porém o ecoar do passado ainda está presente na sua ação atual,
dá sentido à vida. Assim sendo, estes versos iniciais colocam o leitor face à
figura da mulher que dá origem a uma linhagem e cuja voz ainda ecoa no presente
familiar.
Na segunda estrofe, a voz da
bisavó é substituída pela da avó, que “ecoou obediência / aos brancos-donos de
tudo” e que representa a geração seguinte, aquela que viveu sob condições
adversas experimentadas já em terras brasileiras. Atente-se, desde logo, na
união por meio de hífen entre os nomes “brancos” e “donos”, como se representassem
uma única coisa. A obediência forçada de que “falam” os versos levam-nos até
aos escravos recém-libertados que debandaram das lavouras e das senzalas e que,
seduzidos pelas oportunidades nas cidades que estavam em processo de
transformação, anunciando novos tempos, e que os poderiam absorver como mão de
obra, se viram confrontados com a discriminação que provinha da cor da sua
pele.
A terceira estrofe centra-se na
geração seguinte: a da mãe. Deste modo, a “narrativa” vai-se aproximando do
presente e afastando do passado. A voz da mãe traduz uma resistência
silenciosa, uma revolta que é mantida em segredo ou expressa subtilmente. Na
época, procurava-se que o Rio de Janeiro se afastasse da condição arcaica de
vila (uma designação toponímica que remetia para o período de colonização) e se
alcandore ao estatuto de urbe. Para tal, procede-se a uma renovação e
modernização da cidade, através de demolições (metáfora do apagamento:
desmemoriando-se, o Brasil segue em direção ao “progresso”). Tenha-se presente
que a poeta nasceu numa favela situada no alto da Avenida Afonso Pena, uma das
áreas mais valorizadas da Zona Sul de Belo Horizonte. Com a passagem do tempo,
barracas e respetivos moradores foram sendo progressivamente removidos, a avenida
foi prolongada, ergueram-se novos prédios e os becos e as vielas desapareceram
fisicamente, existindo apenas na memória de Conceição Evaristo. Este processo
de urbanização de múltiplas localidades conduzirá, com alguma frequência, à
formação das tristemente famosas favelas.
Voltando ao poema, a voz da mãe
ecoa baixinho, o que significa que não foi silenciada, embora se exprima de
forma quase impercetível. Seja como for, o relevante destes versos prende-se
com a sugestão da existência já de ecos de revolta, o que quer dizer que os
oprimidos começam a ganhar consciência da exploração a que foram sujeitos ao
longo do tempo. As condições do e o local de trabalho (“no fundo das cozinhas
alheias”) indiciam a posição social da mãe, relegada para o trabalho doméstico
na casa dos “colonizadores” e que não tem como esconder os disfarçar a cor da
pele no contexto da cidade que os rejeita por não se enquadrarem no projeto de
modernização das cidades. Se as “trouxas” podem simbolizar a pobreza e a
opressão, as “roupagens sujas dos brancos” constituem uma metáfora da injustiça
e da opressão a que os homens brancos sujeitam as mulheres negras. Por outro
lado, a referência à favela representa a marginalização e a segregação socioespacial
a que são submetidas.
A quarta estrofe traduz a voz do
próprio sujeito poético, chegando-se assim ao presente. Essa voz exprime a sua
perplexidade, expressa através dos versos, da poesia, “com rimas de sangue”,
uma metáfora que exprime a violência, a dor e o sofrimento experimentados, e “fome”,
nome que pode ser interpretado de forma literal ou enquanto metáfora da
injustiça. Por outro lado, a sua voz tem na origem o som que provém da bisavó,
que passa pela avó e pela mãe e se torna presente na sua fala. O advérbio “ainda”
reforça a ideia da repetição, de um fazer ancestral.
Já a voz da quinta estrofe tem o
seu quê de profética: ao apresentar a filha, o “eu” poético “narra” não apenas
o presente, mas também o porvir, o futuro. A filha é apresentada como uma
colecionadora e guardiã das vozes das mulheres que viveram antes dela; a sua
voz guarda em sim todas as vozes. A filha recolhe em si as “vozes mudas caladas”,
isto é, as que foram oprimidas, silenciadas ou ignoradas, bem como as que se
queriam fazer ouvir, mas ficavam “engasgadas nas gargantas”.
Se houver um tempo em que a voz
foi lamento, silêncio, sussurro, imagem poética, agora ela não é apenas fala,
mas faz-se ato, representando a consciência de si e um fazer que se quer
cidadão, visto que fala e age, representa um coletivo de mulheres que a
antecedeu. A voz do sujeito poético “recolhe em si” (reiteração) “a fala e o
ato” (a união da palavra e do agir, simbolizando um movimento em direção à
mudança e à liberdade), “O ontem – o hoje – o agora” – esta sucessão de
advérbios representa a continuidade do tempo e da experiência. A reiteração da
expressão “Na voz de minha filha” reforça a importância da voz da filha, que
olha para o presente como sequência do passado e a preparação do futuro. A
filha será portadora da ressonância das gerações passadas e a sua voz
transporta em si a promessa de uma “vida-liberdade” (novamente o hífen a ligar
intimamente dois conceitos). A condição para se ter, de facto, liberdade é a de
agregar às vozes do passado, lembrar a sua ascendência.
O poema é construído em torno das
vozes de várias gerações sucessivas de mulheres da mesma família, começando com
a bisavó e terminando com a filha do sujeito lírico. Cada voz carrega em si as
memórias e experiências de cada época, criando, assim, um mosaico da história e
da resistência da mulher negra.
A voz da bisavó e a referência
aos “porões do navio” remetem para a dolorosa história do tráfico negreiro
entre África e o Brasil. Por outro lado, os ecos dos “lamentos / de uma
infância perdida” que veicula sugerem a brutalidade da escravidão que lhe
roubou (e a tantas outras crianças) uma existência normal de criança.
A voz da avó representa a geração
de mulheres que esteve sujeita ao domínio e à opressão dos “brancos
donos-de-tudo” e ecoa “obediência, indiciando a subjugação e a falta de
controlo sobre a própria vida. Ela trabalha como empregada doméstica, leva uma
existência dura e marginalizada, mas começa a ecoar alguma revolta.
A voz do “eu” lírico ecoa sangue,
violência, dor, provações, e reflete a luta contínua contra a injustiça e a
opressão. Por outro lado, a poesia constitui um meio para expressar a dor e a
luta da comunidade a que pertence.