Português

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Transgressão: código escrito

          Memorial do Convento é uma obra dominada pela noção de transgressão, visível em vários domínios.

          Um desses domínios é o código escrito. Neste caso, a ideia de transgressão está presente nos seguintes aspectos:

     a. a desconstrução e reconstrução das regras da pontuação (vide linguagem):
» a supressão das marcas gráficas do discurso directo (diálogos);
» a substituição dos pontos finais por vírgulas, criando uma leitura contínua;
» o uso de maiúsculas no meio da frase para introduzir as falas das personagens;
» etc.
     b. a inversão de expressões bíblicas e de provérbios / adágios populares ("ainda agora a
         procissão vai na praça");

     c. a diversidade de registos de língua:
» o registo cuidado;
» o registo familiar;
» o registo popular, nomeadamente o calão ("merda", "puta", "mijo");
      d. os aforismos ("Não está o homem livre... com a verdade...");

      e. os jogos de palavras.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Vénia

          Dr. Aires Pereira do Couto, meu enorme professor de Latim.
          O professor que eu sempre desejei ser, mas nunca serei: competente, justo, sério, recto, exigente, estudioso incansável e apaixonado, implacável com as falhas de carácter.
          Foi o primeiro a falar-me, à entrada de uma aula, de uma «coisa» nova, uma «rede», que estava a ser preciosa na preparação da sua tese de mestrado: a Internet. Isto em 1989, creio.
          Concedeu-me a oportunidade de melhorar a nota da segunda frequência a Latim III, que calhou no dia seguinte à final da Liga dos Campeões em que o Benfica foi derrotado pelo Milan por 1 a 0 e em que obtive a miserável nota de 11.
          Quem se ficou a rir foram a Ana Amaral, do alto do seu 18 inexpugnável, e o José António Salvador, do seu 16, mas este por pouco tempo.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Espaço social em 'Memorial do Convento'

            O espaço social do Memorial concentra-se em torno de dois locais - LISBOA e MAFRA - e procura recriar a sociedade portuguesa - cortesã e popular - dos primeiros decénios do século XVIII, focando aspectos como a Inquisição, as festividades, a corte, a escravatura, as injustiças, a feitiçaria, os autos-de-fé, os rituais religiosos e cortesãos, as epidemias, etc.


1. LISBOA

          Citando Auxília Ramos e Zaida Braga, responsáveis intelectuais pela colecção RESUMOS, da Porto Editora, «Lisboa aparece descrita através de uma série de sensações auditivas (pregões, vozes alteradas, toques dos sinos, das trombetas, rufos de tambores, salvas de tiros anunciando a chegada ou a partida das naus, o som monocórdico das rezas, das ladainhas e da sineta dos frades mendicantes) que constroem a imagem de uma cidade - apesar de, na voz do narrador, parecer 'tão quieta' - em constante movimento.» (pág. 23).

          Em Lisboa, são vários os ambientes que constroem a visão epocal da capital do reino:


          1.1. O Paço
  • A subserviência e o vazio dos gestos repetidos e inúteis por parte do enxame de cortesãos que rodeiam o rei e a rainha;
  • Os aspectos caricaturais que definem a relação conjugal dos monarcas (o cerimonial, a ausência de afectividade, intimidade, amor, etc.).

          1.2. O Entrudo e a Procissão da Quaresma
  • A religião enquanto pretexto para a prática de excessos e desvarios (a satisfação de prazeres carnais) e brincadeiras carnavalescas (as pessoas comem e bebem em demasia, dão «umbigadas pelas esquinas», atiram água à cara umas das outras, batem nos mais desprevenidos, tocam gaitas, espojam-se nas ruas...);
  • A penitência física dos pecados da carne (o jejum e o açoite - pág. 28) e a mortificação da alma (o jejum e o açoite - pág. 28) e a mortificação da alma  após o desregramento do Entrudo (é tempo de «mortificar a alma para que o corpo finja arrepender-se...»);
  • As manifestações de fé caracterizadas pela histeria, pelo sadomasoquismo e pelo primitivismo: as pessoas arranham-se, arrastam-se pelo chão, puxam os cabelos, esbofeteiam-se, autoflagelam-se para gáudio das mulheres e amantes que assistem à procissão a partir das janelas;
  • Os comportamentos das mulheres que reclamam mais violência e vigor na «actuação» do seu «servidor» e obtêm prazer dos actos de autoflagelação dos penitentes (sadismo: obtenção de prazer a partir do sofrimento de outrem);
  • A alteração dos comportamentos femininos: as mulheres, nesta época, são livres de percorrer sozinhas as ruas e de frequentar as igrejas, comportamento que facilita o adultério;
  • A alteração periódica da mentalidade machista masculina: os homens «fecham» os olhos» aos

Espaço psicológico

1. Os sonhos
  • Os sonhos do rei e da rainha contrastam com os das outras personagens, sobretudo porque evidenciam o desamor que marca a ralação do casal real: D. João V sonha com a sua própria imortalidade, com a descendência e com o convento, enquanto D. Maria Ana sonha com o cunhado em razão da sua insatisfação sexual;
  • Baltasar sonha com Blimunda, com o trabalho, com os animais, a terra, o ar;
  • Baltasar e Blimunda têm sonhos comuns e, por vezes, sonham em conjunto com o padre Bartolomeu de Gusmão, nomeadamente no que diz respeito à passarola, o que evidencia o profundo envolvimento das três personagens na realização daquela obra, ao contrário da construção do convento, executada à custa do trabalho de milhares para a realização do sonho de um só - D. João V.

2. Os pensamentos
  • Os pensamentos das personagens revelam o seu mundo interior, os seus desejos, sonhos e ambições.

3. A atmosfera do romance
  •  A atmosfera do romance é densa e pesada, em virtude da religiosidade opressiva, com traços de fanatismo, imposta pelos clérigos e pelas ordens religiosas que manobram a vida dos lisboetas, os habitantes da corte, os operários que trabalham nas obras do Convento de Mafra. Tudo parece girar em função da motivação religiosa: desde o nascimento da herdeira real, resultado de uma promessa, à construção do convento. A própria rainha vive dominada pelo fanatismo religioso.
  • Por outro lado, à excepção das touradas, todos os divertimentos e acontecimentos importantes ou são de cariz religioso, ou têm a ver com a Igreja, ou misturam o religioso e o profano (como os festejos que antecedem a procissão do Corpo de Deus), ou ainda a religião e a luxúria (por exemplo, a procissão da penitência e as saídas das mulheres para visitar as igrejas durante a Quaresma. Pairando sobre tudo isto está sempre  mancha negra da Inquisição e os autos-de-fé, para gáudio e elevação espiritual de nobres e plebeus.
  • O sermão proclamado aquando do transporte da pedra e após a morte de Francisco Marques representa a demagogia exercida pelo clero sobre o povo ignorante.
  • O lar de Marta Maria e João Francisco distingue-se desta imagem profundamente negativa da sociedade portuguesa pela tolerância com que recebem o filho e a nora, que suspeitam não estarem casados conforme mandam as leis da Igreja, não questionando algumas estranhezas que notam em Blimunda, embora essa tolerância não seja tão grande que a aceitem se ela for uma cristã-nova.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Blimunda


          Blimunda Sete-Luas é filha de Sebastiana Maria de Jesus, condenada ao degredo, acusada de ser visionária e cristã-nova, num auto-de-fé, onde conhece Baltasar.
          Fisicamente, poucos dados nos são transmitidos sobre a personagem, sendo todo o realce dirigido para os olhos, descritos diversas vezes - de facto, ela possui uns olhos misteriosos, extraordinários, de cor indefinida ("... olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra..." - pág. 55), e para o corpo, alto e delgado. O cabelo é "... russo, injusta palavra, que a cor dele é a do mel..." (pág. 103).
          Tem 19 anos no momento em que conhece Baltasar e mantém intacta a sua virgindade, que entrega a Baltasar na sequência do seu encontro do auto-de-fé. Tem poderes mágicos: é vidente, pois possui a capacidade de, em jejum, "ver por dentro" das coisas e das pessoas (capacidade que só emprega em Baltasar no derradeiro momento da comunhão mística entre ambos); tem também o poder de recolher vontades, dois traços fundamentais e imprescindíveis na construção da passarola, que se tornará, igualmente, o seu projecto. Estes seus poderes são aplicados no mundo real, concreto, no entanto ela consegue ver para além das aparências, já que possui o dom da ecovisão, o dom de ver por dentro das pessoas e das coisas, afastando-se da materialidade e aproximando-se da espiritualidade adstrita à arte de Scarlatti e ao sonho de voar do padre Bartolomeu de Gusmão. O facto de o único ser que ela se recusa a ver ser Baltasar, o «seu homem», pode significar a dificuldade em «ver» quem se ama, talvez por medo do que possa encontrar.
          É, portanto, uma personagem marcada pela excepcionalidade, revelada pela sua ascendência (é filha de uma feiticeira), pelo valor simbólico do nome que lhe é atribuído ("Sete-Luas") e pelos seus dotes particulares de vidência ("ver por dentro").
          O seu único amor é Baltasar, com quem forma um só, por quem está disposta a realizar todos os sacrifícios e a quem dedica uma afeição verdadeira, espontânea e duradoura. Por outro lado, o amor dela por ele é também o símbolo da aceitação e renúncia, dado que nunca o olha por dentro, como vimos. Aos olhos de Scarlatti, Blimunda e Baltasar surgem, respectivamente, como Vénus e Vulcano (pág. 168). Com efeito, apaixonada pelo ex-soldado, mantém com ele uma relação de amor, de cumplicidade "que não é deste mundo", de igualdade de direitos e de companheirismo, a que não falta a atracção física revelada em jogos eróticos de prazer. Esta cumplicidade e partilha entre o casal traduzem a imagem de uma mulher desfasada  e adiantada relativamente à época em que vive, pois ela afirma-se independentemente do homem com quem vive e que para ela olha de igual para igual, fazendo-a partilhar os seus sonhos, medos e vida, em suma. O amor que vivem é um amor fora das normas do seu tempo, um amor não-cristianizado, mas nem por isso menos (a seu modo) sagrado, e miticamente exemplar. Foram talhados um para o outro, como lembra o ditado popular ("O casamento e a mortalha no céu se talha"), convivendo em harmónica união ("Dormiram nessa noite os sóis e as luas abraçados, enquanto as estrelas giravam devagar no céu, Lua onde estás, Sol aonde vais..." - pág. 90), também sugerida pela simbologia do novo nome: o 7 simboliza o ciclo completo, uma dinâmica perfeita. Talvez por isso nunca tenham tido filhos. A união e a harmonia do casal são tais que este é perspectivado como se de uma personagem se tratasse: "... já sabemos que destes dois se amam as almas, os corpos e as vontades...". Entre as lides do campo, os trabalhos no convento, a construção da passarola e a recolha de vontades, Baltasar dispõe sempre de tempo e espaço para, do lado direito da enxerga, amparar Blimunda com a mão que lhe resta.

          A relação entre ambos fica marcado, desde o início, por circunstâncias extraordinárias, desde o ritual de aceitação da colher até ao ritual de baptismo através do sangue virgem de Blimunda, passando pelo recurso ao silêncio enquanto forma primordial de comunicação: "não falou Blimunda, não lhe falou Baltasar, apenas se olharam, olharem-se era a casa de ambos.".  As palavras são frias e desnecessárias no meio dos gestos. Um homem, uma mulher, dois corpos, duas almas, duas vontades. Por outro lado, amparam-se mutuamente, pois ele acalma-a na sua maldição de ver por dentro as pessoas e ela ajuda-a na falta da sua mão.

          Como acima ficou dito, Blimunda, tal como Baltasar, colabora na construção da passarola, contribuindo com os seus poderes mágicos na recolha das duas mil vontades que a farão voar e com o seu poder de "ver por dentro", que lhe permite verificar os seus defeitos de construção e corrigi-los, evitando deficiências na construção. A recolha das vontades deixa Blimunda exausta e doente, "uma extrema magreza, uma palidez profunda que lhe tornava transparente a pele", e será apenas a música do cravo de Scarlatti a salvá-la e restituí-la à vida.
          Por outro lado, o envelhecimento físico não deteriora a juventude interior da personagem e a relação que mantém com Baltasar, sobretudo porque, aos olhos deste, ela continua a mesma. O próprio cansaço e o esgotamento que a atinge a nível físico após a peregrinação por Lisboa em busca das vontades levam o narrador a associar às imagens dos sóis e das luas a perda de algum brilho e fulgor: "... cansados de tanta caminhada, de tanto subir e descer de escadas, recolheram-se Blimunda e Baltasar à quinta, sete mortiços sóis, sete pálidas luas..." (p. 181).
          Com o decorrer da intriga, Blimunda revela uma sabedoria e uma postura muito próprias, apresentando-se como um elemento mágico não explicado, tendo aprendido coisas sobre a vida e a morte, sobre o pecado e o amor "na barriga da mãe", onde permaneceu "de olhos abertos" (cap. XXIII, p. 331). Daí que tenha uma presença bastante forte, sólida e afirmativa no romance. As restantes personagens (o padre Bartolomeu, Baltasar, Scarlatti e Marta Maria) reconhecem o mistério que subjaz ao seu olhar e ao seu extraordinário poder perceptivo, inexplicável até para a própria personagem.

          Após o desaparecimento de Baltasar (ela própria tinha pressentido que não voltaria a estar com ele, daí que o tivesse conduzido para a barraca e o amasse com sofreguidão), secou as lágrimas e partiu à sua procura durante 9 anos. Esse percurso revela uma mulher corajosa, determinada, persistente, disposta a tudo para encontrar o seu amor. Durante essa demanda, acaba por matar um dominicano, sedento de um momento de prazer, com o espigão de Baltasar, que simbolicamente representa o marido em defesa da mulher: "Do outro lado do convento, num rebaixo (...) aonde tiver que ir, inferno ou paraíso." (cap. XXIV, pp. 344-346). Na sequência desse desaparecimento e durante a sua busca, os olhos de Blimunda adquirem novas características, além da indefinição da cor, pois neles se reflectem inquietações e preocupações: "... que segredos se escondiam no rosto impenetrável, nos olhos pardos, cujas pálpebras raramente batiam, e que a certas horas e certa luz pareciam lagos onde flutuavam sombras de nuvens, as sombras que dentro passavam, não as comuns do ar..." (p. 354). Na sua incansável procura, só à sétima vez que passou por Lisboa o encontrou a ser queimado num auto-de-fé, juntamente com António José da Silva, autor de comédias de bonifrates e conhecido por O Judeu.
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