Português: Espaço social em 'Memorial do Convento'

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Espaço social em 'Memorial do Convento'

            O espaço social do Memorial concentra-se em torno de dois locais - LISBOA e MAFRA - e procura recriar a sociedade portuguesa - cortesã e popular - dos primeiros decénios do século XVIII, focando aspectos como a Inquisição, as festividades, a corte, a escravatura, as injustiças, a feitiçaria, os autos-de-fé, os rituais religiosos e cortesãos, as epidemias, etc.


1. LISBOA

          Citando Auxília Ramos e Zaida Braga, responsáveis intelectuais pela colecção RESUMOS, da Porto Editora, «Lisboa aparece descrita através de uma série de sensações auditivas (pregões, vozes alteradas, toques dos sinos, das trombetas, rufos de tambores, salvas de tiros anunciando a chegada ou a partida das naus, o som monocórdico das rezas, das ladainhas e da sineta dos frades mendicantes) que constroem a imagem de uma cidade - apesar de, na voz do narrador, parecer 'tão quieta' - em constante movimento.» (pág. 23).

          Em Lisboa, são vários os ambientes que constroem a visão epocal da capital do reino:


          1.1. O Paço
  • A subserviência e o vazio dos gestos repetidos e inúteis por parte do enxame de cortesãos que rodeiam o rei e a rainha;
  • Os aspectos caricaturais que definem a relação conjugal dos monarcas (o cerimonial, a ausência de afectividade, intimidade, amor, etc.).

          1.2. O Entrudo e a Procissão da Quaresma
  • A religião enquanto pretexto para a prática de excessos e desvarios (a satisfação de prazeres carnais) e brincadeiras carnavalescas (as pessoas comem e bebem em demasia, dão «umbigadas pelas esquinas», atiram água à cara umas das outras, batem nos mais desprevenidos, tocam gaitas, espojam-se nas ruas...);
  • A penitência física dos pecados da carne (o jejum e o açoite - pág. 28) e a mortificação da alma (o jejum e o açoite - pág. 28) e a mortificação da alma  após o desregramento do Entrudo (é tempo de «mortificar a alma para que o corpo finja arrepender-se...»);
  • As manifestações de fé caracterizadas pela histeria, pelo sadomasoquismo e pelo primitivismo: as pessoas arranham-se, arrastam-se pelo chão, puxam os cabelos, esbofeteiam-se, autoflagelam-se para gáudio das mulheres e amantes que assistem à procissão a partir das janelas;
  • Os comportamentos das mulheres que reclamam mais violência e vigor na «actuação» do seu «servidor» e obtêm prazer dos actos de autoflagelação dos penitentes (sadismo: obtenção de prazer a partir do sofrimento de outrem);
  • A alteração dos comportamentos femininos: as mulheres, nesta época, são livres de percorrer sozinhas as ruas e de frequentar as igrejas, comportamento que facilita o adultério;
  • A alteração periódica da mentalidade machista masculina: os homens «fecham» os olhos» aos
     comportamentos femininos;
  • A sensualidade e o misticismo.
          Findos o Entrudo e a Quaresma, a velha ordem é restabelecida e a mulher regressa à sua reclusão caseira, ocupando-se dos trabalhos domésticos, e à submissão, enquanto o homem retoma a sua autoridade (pp. 32-33).


          1.3. As histórias de milagres e de crimes
  • As superstições e a crendice;
  • A superficialidade;
  • A libertinagem.

          1.4. Os autos-de-fé

          O auto-de-fé é apresentado como um «dia de alegria geral», dado que as pessoas saem, em massa, à rua, ansiando por assistir aos suplícios - incluindo a morte - a que são submetidos os condenados, e que envolve uma série de rituais:
  • as mulheres apresentam um comportamento similar ao manifestado durante a procissão da Quaresma: exibem-se às janelas, cuidadosamente arranjadas, e assistem ao desfile dos condenados;
  • o povo, eufórico, grita impropérios aos condenados que desfilam;
  • os religiosos seguem uma organização clara: primeiro os dominicanos, de seguida os inquisidores;
  • os sentenciados transportam círios nas suas mãos e vestem-se de acordo com a condenação com que foram contemplados;
  • os condenados são castigados de acordo com a gravidade da sua culpa, dos seus «crimes»: uns são açoitados, outros são degredados, outros são garroteados e outros queimados vivos;
  • os que assistem à queima dos condenados à fogueira dançam diante da mesma;
  • o rei, os infantes e as infantas celebram o final do auto-de-fé com um magnífico jantar na Inquisição.
          Em suma, os autos-de-fé representam:
  • a representação religiosa e política;
  • o fanatismo;
  • o carácter sanguinário das diversas classes, patente no celebrar e festejar a morte;
  • a procura de emoções fortes que preencham o vazio da existência;
  • a futilidade, a vaidade e os jogos de sedução femininos (a preocupação com as toilettes, os sinaizinhos no rosto, as borbulhas encobertas...).

          1.5. Os baptizados e os funerais régios:
  • o luxo e a ostentação;
  • a vida e a morte como espectáculos.

          1.6. A elevação a cardeal do inquisidor D. Nuno da Cunha: o luxo e a ostentação.


          1.7. A vida conventual:
  • a libertinagem e a devassidão;
  • o desrespeito pelas normas religiosas (por exemplo, o celibato).

          1.8. As touradas:
  • A descrição pormenorizada do evento:
» a organização e a decoração da praça, profusa e ricamente enfeitada com palanques, mastros com bandeirinhas, colunas com frisos e cornijas douradas, grandes figuras pintadas de várias cores e ouro, um mastro com uma bandeira que exibe a figura de Santo António;
» os espectadores que ocupam as bancadas e os terraços;
» os aguadores que molham a praça;
» os reis e as altezas, que assistem à tourada a partir das janelas do paço;
» os cavalos, bem aparelhados;
» o sangue e a morte como forma de espectáculo e divertimento (a tortura dos touros, o sangue, as feridas, as «tripas»);
» o delírio e a excitação (mais uma vez!) de homens e mulheres perante aquele espectáculo de sangue, sofrimento e morte;
» a prática das mantas de fogo sobre os touros, que estralejam à medida que os touros correm o terreiro, enlouquecidos de dor;
» o espectáculo de tortura dos coelhos e das pombas, encerrados em bonecos de barro pintados, contra os quais investem os touros.

          1.9. A procissão do Corpo de Deus:
  • Os preparativos para a procissão, que ocorrem de véspera:
» o Terreiro do Paço: as figuras, a coluna, os medalhões e as pirâmides;
» as ruas toldadas: os mastros decorados com seda e ouro e medalhões dourados com o Sacramento, o brasão do patriarca e os brasões do Senado da Câmara; a Rua Nova com as colunas dos arcos revestidas de sedas e de damascos;
» as janelas decoradas com cortinas e sanefas de damasco carmesim e franjas douradas;
» a vigilância dos escravos pretos e dos quadrilheiros para evitar o assalto a tanta riqueza;
» a pavimentação das ruas entre o Rossio e o Terreiro do Paço com areia vermelha e ervas;
» a exposição e o despique das damas às janelas com penteados artísticos e excessiva maquilhagem, e a consequente produção de glosas em sua honra;
» as brincadeiras dos rapazes pelas ruas e os «solaus e chocolate» dentro das casas, durante a noite.
  • A procissão:
» o desfile das bandeiras dos ofícios, rica e excessivamente decoradas (damasco brocado, bordaduras de ouro, cordões de ouro e seda, etc.);
» as fanfarras de trombetas e tambores;
» a representação de S. Jorge;
» o desfile das diferentes irmandades, distinguíveis pelas cores das capas;
» o desfile das comunidades religiosas;
» a multidão do clero das paróquias;
» a participação do rei, que segura uma vala do pálio;
» os pensamentos do patriarca e os pensamentos do rei revelados pelo narrador.
  • O simbolismo da procissão:
» o luxo e a ostentação;
» a sobreposição do profano ao sagrado;
» a libertinagem e a vida dissoluta do rei;
» a histeria e o fanatismo (as pessoas batem em si próprias e aos outros).

          1.10. O cortejo de casamento:
  • O casamento da realeza;
  • A vida feminina;
  • O luxo e a ostentação desmedidos;
  • O contraste desse luxo com a fome e a miséria do povo, que luta pela sobrevivência e se entrega a comportamentos imorais;
  • O estado deplorável dos caminhos.
          Em suma, Lisboa é apresentada como um espaço infecto, alimentado pelo ódio (aos judeus e aos cristãos-novos), pela corrupção moral dos religiosos, pelo poder repressivo e hipócrita do Santo Ofício e pelo poder autocrático do rei.



2. MAFRA

          «... e a vila (...) é Mafra, que dizem os eruditos ser isso mesmo o que quer dizer, mas um dia se hão-de rectificar os sentidos e naquele nome será lido, letra por letra, mortos, assados, fundidos, roubados, arrastados...» (pág. 306).

          2.1. O recrutamento dos trabalhadores para os trabalhos do convento:
  • a servidão e a escravatura populares (os homens são obrigados, na maioria dos casos, à força de armas, ou voluntariamente, na mira de um salário e de alimentação certa, a abandonar as suas casas e a construir o convento, vivendo em barracões, executando um trabalho desmedido e roídos de doenças venéreas):
» as condições precárias e sub-humanas de vida;
» o recrutamento à força, com armas e violência física;
» os abusos de poder;
» o desrespeito pela dignidade das mulheres e dos filhos abandonados;
» os procedimentos próprios da escravatura;
» a fome, o frio e a miséria;
» a humilhação e a desumanização do homem.

          2.2. O início da construção do convento:
  • as condições de vida e de trabalho infra-humanas;
  • o trabalho incessante e mecanizado;
  • a analogia entre o trabalho do homem e da formiga, enquanto denúncia da desumanização e da violência do trabalho a que aquele está sujeito.

          2.3. As condições de vida e de alojamento:
  • a precariedade e a falta de higiene no alojamento, onde são visíveis os parasitas e a falta de arejamento do espaço;
  • a miséria dos trabalhadores e dos soldados;
  • a violência de comportamentos;
  • a prostituição;
  • os hábitos insalubres: as doenças sexualmente transmissíveis;
  • a falta de segurança no trabalho.

          2.4. As condições laborais:
  • os homens são apresentados como bestas de carga;
  • o sacrifício dos animais;
  • a elevação dos trabalhadores à categoria de heróis, através da descrição do martírio e do sacrifício a que estão sujeitos durante os trabalhos de construção do convento e que está simbolizada no episódio da epopeia da pedra (pp. 247-274).

          2.5. Os momentos de lazer:

          Em Mafra, escasseiam os momentos de lazer, facto que contrasta com o que se passa em Lisboa, onde, como vimos, abundam os espectáculos (além dos acima descritos - touradas, por exemplo -, temos os pátios de comédias, as cantarinas, os representantes e a ópera - pp. 226-273). Aos trabalhadores do convento restam-lhes o «fait-divers» e o contar de histórias ao serão como forma de evasão, nomeadamente a história de Manuel Milho.


          2.6. A sagração da basílica:
  • a ostentação e o luxo com a presença do rei, do infante D. António, do patriarca, dos fidalgos, dos criados da casa real, dos coches e dos cavalos sumptuosos;
  • a mobilização passiva do povo, estimada em setenta a oitenta mil pessoas;
  • o ritual excessivamente hierarquizado;
  • o deslumbramento dos participantes;
  • a extensão inusitada dos oito dias de festa.

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