1.ª) Introdução (I, 1-18):
۩ Proposição (I,
1-3): apresentação do assunto.
Camões propõe-se cantar as navegações
e conquistas no Oriente nos reinados de D. Manuel a D. João III, as vitórias em
África de D. João I a D. Manuel e a organização do reino durante a primeira
dinastia.
۩ Invocação:
súplica de inspiração a entidades mitológicas – as musas.
Camões escolhe as Tágides, ninfas do Tejo, para nelas
buscar uma inspiração elevada.
Ao longo da obra, surgem outras invocações,
sempre que Camões necessita de um novo alento para o assunto a narrar.
As ninfas invocadas recordam o
recurso à mitologia, ao maravilhoso pagão, com o objectivo de tornar a narração
mais agradável, imitando as grandes epopeias greco-latinas, e de mostrar que
para cantar tão grandiosos feitos era necessária uma inspiração sobrenatural.
Localização
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Destinatário
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Objectivo
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I, 4-5
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Tágides (ninfas do Tejo)
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. Pedir ajuda para a consecução de um “som alto e
sublimado”, “um estilo grandíloco e corrente...”.
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III, 1-2
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Calíope (musa da eloquência
da poesia épica)
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. Conseguir inspiração para a composição do discurso do
Gama ao rei de Melinde.
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VII, 78-87
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Ninfas do Tejo e do Mondego
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. Solicitar o seu favor na tarefa de cantar um povo
ingrato, aproveitando para tecer considerações pessoais.
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X, 8-9
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Calíope
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. Sentindo aproximar-se o Outono da vida, Camões
solicita ajuda para a missão a que se propôs: glorificar a sua pátria.
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X, 145
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Calíope
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. Camões confessa não poder cantar mais, pois o não
merece “a gente surda e endurecida”.
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۩ Dedicatória (I, 6-18): oferecimento da obra a D. Sebastião, rei que Camões
via como garantia da liberdade nacional, como representante escolhido por Deus,
como monarca poderoso. Termina com a exortação ao rei para que também ele se
torne digno de ser cantado.
2.ª) Narração (I, 19 – X, 144):
A narração inicia-se in media res, ou seja, quando a
viagem já vai a meio, encontrando-se os marinheiros portugueses no Oceano
Índico, e termina quando entram “pela foz do Tejo ameno” (X, 144).
A narração está estruturada em quatro planos:
Ø a Viagem: descoberta do caminho marítimo
para a Índia;
Ø a História de Portugal;
Ø a Mitologia;
Ø as Considerações Pessoais do Poeta.
a) Viagem: narração
dos acontecimentos ocorridos durante a viagem entre Lisboa e a Índia:
F narração
do percurso até Melinde por Camões (I e II);
F narração
da História de Portugal até à viagem, em forma de discurso dirigido ao rei de
Melinde e a pedido deste (III, IV e V, 85);
F inclusão
da narração da primeira parte da viagem (de Belém à passagem do Cabo da Boa Esperança
– “Adamastor”) e do surgimento da “doença crua e feia” (escorbuto) na
retrospectiva histórica atrás referida;
F apresentação
do último troço da viagem entre Melinde e Calecute (VI).
Cronologicamente, a viagem decorreu da
seguinte forma:
§ partida
em 8 de Julho de 1497 (IV, 84-ss.);
§ peripécias
da viagem;
§ paragem
em Melinde por dez dias;
§ chegada
a Calecute em 18 de Maio de 1498;
§ regresso
a 29 de Agosto de 1498;
§ chegada
de Vasco da Gama a Lisboa em 19 de Agosto de 1499 (a nau de Nicolau Coelho
chegara cerca de dois meses antes).
Porém, simultaneamente, os deuses reúnem em consílio para
decidir “sobre as cousas futuras do Oriente” e, de vez em quando, o poeta tece
considerações pessoais.
A viagem não constitui realmente uma ação, nem tem
intriga, nem personagens propriamente ditas. Falta-lhe autonomia. Para que a
viagem constituísse uma ação, seria necessário que os seus protagonistas se
debatessem com as dificuldades e as resolvessem graças às suas forcas e
engenho. Mas tais protagonistas não existem, uma vez que não passam de
bonifrates que desempenham um papel destinado pela Providência, sem mãos e cérebro
para enfrentar os problemas. não vemos Vasco da Gama arriscar-se e agir,
molhar-se na água, nem desenredar-se de intrigas, nem manchar-se de sangue (excepto
na escaramuça com indígenas no episódio de Veloso, por ele próprio descrita ao
rei de Melinde), nem ter uma vontade, um capricho ou uma paixão. Serve apenas
para fazer discursos, para recitar os belos discursos de Camões. O único ensejo
que tem de resolver um problema pelos seus próprios meios, isto é, sem a
intervenção dos deuses, ocorre quando o Catual o detém em Calecute. Não vemos
também Vasco da Gama falar aos seus marinheiros, que, de resto, parecem não
existir, são uma abstração que povoa as naus. Não os vemos apagar os incêndios,
discutir nos conselhos de capitães em que se tomavam as decisões. Mal
entrevemos, numa tempestade, a voz anónima do Gama mandando amainar a grande
vela ou dar à bomba. Uma única personagem se nos depara, numa visão fugidia: Fernão
Veloso, numa atitude nada heroica (em fuga) e num sito típico de fanfarronice
peninsular.
Por outro lado, pode dizer-se que a viagem não tem
história nem enredo. Os marinheiros limitam-se a deixar-se transportar nas mãos
dos deuses. Se estes não existissem, nunca saberíamos como é que os nautas
alcançaram a Índia, que perigos venceram e de que forma. A unidade orgânica do
relato da viagem não reside nem na personalidade dos heróis, nem em qualquer
intriga intrínseca à própria viagem. Uma viagem marítima no tempo da navegação
à vela, com abordagens, revoltas e motins da tripulação, recontros com as
populações costeiras, teria matéria riquíssima para efabulação. Há, todavia, no
que respeita à luta com o mar, quadros cheios de relevo e precisão, como a
Tromba Marítima, o Fogo de Santelmo e o Escorbuto, e todo o canto V, um dos
melhores da obra, que se poderia chamar “Trabalhos do Mar”. Mas esses episódios,
onde falta sempre a presença humana, são dados de forma descritiva,
exemplificativa, numa sequência oratória, e não narrativa, no discurso ao rei
de Melinde. E a história da viagem do Gama, que constitui a parte propriamente
narrativa da obra, fica reduzida a uma crónica rimada, mas sem as virtudes das
boas crónicas.
b) História de Portugal
A História de Portugal, exposta em discursos (de Vasco da
Gama ao rei de Melinde e de Paulo da Gama ao Catual, para a história passada em
relação à viagem – 1498) e em profecias (de Júpiter, de Adamastor, da ninfa
Sirena e de Tétis, em relação à história futura no que diz respeito à viagem),
não tem uma unidade intrínseca.
Uma parte dessa história é dada em sequência cronológica
e consta do discurso de Vasco da Gama ao rei de Melinde. Outra parte é dada em
quadros soltos, como são as pinturas (“bandeiras”) que Paulo da Gama explica ao
Catual, ou as profecias.
Também o discurso de Vasco da Gama é constituído por uma
sequência de quadros contíguos, os feitos dos diversos reis: a sucessão
meramente cronológica nunca pode constituir um verdadeiro conjunto artístico. Esta
sensação de descontinuidade é agravada pelo facto de os feitos serem, na maior
parte, proezas individuais de guerreiros, faltando um ser colectivo de que os
indivíduos sejam formas transitórias (cf. Fernão Lopes, Crónica de D. João I). O “peito ilustre lusitano” é uma abstração
incapaz de encarnar as proezas sucessivas dos guerreiros. Há alguns belos
momentos (a batalha do Salado, a fala da Formosíssima Maria, a batalha de
Aljubarrota, o episódio de Inês de Castro, as sínteses de Tétis), mas são
conjuntos soltos, contíguos a outros momentos. Não se vê formar-se uma nação, e
a ideia de pátria resulta uma noção abstracta: está nos sentimentos do poeta e
não nos factos que narra. Não existe uma ação de conjunto nem heróis, que se
encontram reduzidos a puras abstrações. Afonso Henriques, Nuno Alvares Pereira,
D. João I, Duarte Pacheco, D. Fuas Roupinho ou Geraldo Sem Pavor não têm caracterização
própria, não são personalidades diferenciadas como são, por exemplo, Aquiles e
Ulisses. Camões encarece-os com uma adjetivação nobilitante e convencional, mas
não as caracteriza. Não são realmente personagens, e muito menos heróis, no
sentido épico da palavra. São medalhões convencionais de guerreiros.
Por outro lado, a sequência das batalhas e dos
guerreiros, passados ou futuros, é dada em discursos e obedece às regras da
oratória: ora é uma sequência cronológica (Vasco da Gama), ora uma seleção de
profecias (Júpiter, no canto II, para consolar Vénus, prevê alguns triunfos; no
canto V, Adamastor antecipa alguns casos trágicos como castigo pelo atrevimentos
dos portugueses; no canto IX, Tétis profetiza as guerras no Oriente).
Ora, em certo sentido, a oratória é o contrário da
epopeia. Na oratória, só tem vida própria o orador, personagem única, em face
do público; na epopeia, pelo contrário, como no romance, o autor
despersonaliza-se em benefício das personagens, sendo nestas que reside a vida.
Desta forma, a narração da História de Portugal e dos
feitos dos portugueses é caracterizada pela ausência de uma ação de conjunto; são
quadros que se sucedem cronologicamente, mas que não revelam uma ideia de
conjunto.
O plano da História de Portugal que a obra apresenta é o
seguinte:
Em Melinde, Vasco da Gama narra ao rei os acontecimentos
de toda a nossa história, desde Viriato ao reinado de D. Manuel I;
Em Calecute, Paulo da Gama apresenta ao Catual episódios
e personagens representados nas bandeiras;
A história posterior à viagem é narrada através de
profecias:
§ Júpiter
profetiza “feitos ilustres” no Oriente e vitórias tão retumbantes que causarão
inveja a Marte (II, 44-45);
§ o
sonho profético de D. Manuel: dois velhos (rios Indo e Ganges) vaticinam a
chegada à Índia por mar no seu reinado (IV, 66-75);
§ Adamastor
profetiza “ventos e tormentas desmedidas”, “naufrágios e perdições” para a
gente que profanou o seu mar. Refere-se a D. Francisco de Almeida, por exemplo
(V, 42-48);
§ a
ninfa Sirena descreve as glórias futuras dos portugueses no Oriente (X, 10-74);
§ Tétis
aponta os lugares onde os portugueses hão de realizar grandes feitos e atingir
a imortalidade.
c) Mitologia / Maravilhoso
Formalmente, a unidade de Os Lusíadas é estabelecida pela intriga dos deuses, visto que estes
estão em cena desde o princípio até ao fim da obra (excepto na introdução e na
conclusão): abre com o Consílio dos Deuses e termina com a Ilha dos Amores. As
personagens mitológicas têm uma vida que falta às personagens históricas: são
aquelas os verdadeiros seres humanos, que sentem, se apaixonam, intrigam. Vasco
da Gama é muito mais hirto e frio que o Adamastor, não obstante este ser um
cabo. E ninguém tem a presença, a força, a personalidade provocante de Vénus.
A ação consiste no seguinte: Vénus, auxiliada por Marte,
seu amante, pretende ajudar os portugueses a chegarem à Índia; Baco, que
entende que o Oriente é domínio seu, opõe-se-lhe, provocando a animosidade dos
povos costeiros, convencendo ainda os deuses marítimos a desencadearem uma tempestade
e, finalmente, induzindo os mouros a atacarem Vasco da Gama. Mas Vénus,
vigilante, intervém junto de Júpiter, mobiliza as ninfas do mar, que impelem as
naus para fora do perigo, e, seduzindo os deuses do mar, consegue aplacar a
tempestade. Finalmente, para premiar os portugueses, prepara-lhes, com a ajuda
de seu filho Cupido, uma ilha de delícias, onde eles, conubiando-se com as
ninfas, se tornam divinos e são admitidos à visão do cosmos com Vasco da Gama à
frente, ele próprio tornando-se esposo da deusa do mar.
Assim, é na intriga dos deuses que radica a verdadeira ação
com princípio, meio e fim.
Através da mitologia, Camões exprime algumas tendências
do Renascimento:
a vitória dos homens sobre os deuses, que personificam os
limites impostos pela tradição à iniciativa humana;
a confiança na capacidade humana para dominar a natureza;
a concepção da natureza como ser vivo;
a afirmação (virtual) de Deus como imanência;
a crença na bondade da natureza;
a identificação da lei da razão com a lei da liberdade;
a destruição da noção de pecado.
N’ Os Lusíadas,
existem vários tipos de mitologia:
§ pagã: os deuses pagãos
greco-romanos;
§ cristã: Deus;
§ mista: coexistência das
duas anteriores;
§ céltica/mágica:
fadas, bruxas, feiticeiras.
d) Considerações pessoais
Este plano é aquele em que Camões tece comentários,
muitas vezes satíricos, sobre matérias diversas, normalmente no início e fim
dos cantos:
a fragilidade da vida humana face aos perigos do mar e da
terra (I, 105-106);
o desprezo a que os portugueses votaram as Artes e as
Letras (V, 91-100);
o valor da glória e das honras por mérito próprio (VI,
95-99);
crítica aos povos que não seguem o exemplo português (VII,
2-14);
a ingratidão de que se sente vítima por parte da
sociedade (VII, 78-87);
lamento face à importância dada ao dinheiro, fonte de
corrupção e traição (VII, 96-99);
os modos de atingir a imortalidade, condenando a cobiça,
a ambição e a tirania (IX, 92-95);
a decadência da pátria (X, 145);
a invectiva a D. Sebastião a tomar medidas no sentido de
corrigir e repor o país na senda do êxito (X, 146-156).
3.ª) Conclusão (X, 145-146), que se divide em duas partes:
F desencanto
perante a musa pelo presente da pátria, pela inutilidade do seu canto, face à indiferença
de um povo “surdo e endurecido”;
F exortação
e apelo a D. Sebastião para que regenere a pátria, concluindo com o
oferecimento para contar os feitos que o rei venha a praticar em África.