Português

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Análise de "Meu senhor arcebispo, and'eu escomungado"

Assunto
 
            Esta é uma das três cantigas de que temos conhecimento que se focam na posição adotada pelos alcaides na célebre crise de 1245-1247 que levou à deposição de D. Sancho II.
            No caso vertente, o trovador associa-se àqueles que atribuíam à Igreja um papel determinante no que consideravam ser uma traição coletiva, a saber, a entrega dos castelos ao futuro D. Afonso III, colocando na boca do leal alcaide de Sousa a referência à excomunhão com que este teria sido brindado pelo arcebispo de Braga.
 
 
Tema: a sátira do arrependimento fingido de um ato de lealdade – a entrega do castelo sob ameaça de excomunhão.
 

Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª e 2.ª coblas) – Exposição do facto: a excomunhão do alcaide de Sousa.
 
2.ª parte (3.ª e 4.ª coblas) – Causa da excomunhão: a lealdade do alcaide, que entregou o seu castelo ao verdadeiro dono, D. Sancho II, e então finge-se arrependido do seu ato de lealdade e finge temer vir a morrer excomungado, procurando assim que lhe seja levantada a excomunhão.
 
 
Análise da cantiga
 
            O autor constrói o poema desenhando um caso hipotético em torno do alcaide de Sousa e do seu ato de contrição, onde manifesta o seu suposto arrependimento por se ter mantido leal aio seu soberano. Deste modo, o poeta critica, de forma mordaz, os que quebraram os laços de fidelidade vassálica, apontando o dedo ao clero por ter fomentado e protegido esse ato de traição para com o rei.
            A ironia percorre toda a composição, presente desde logo na súplica contrita e no arrependimento pelo ato de lealdade. É óbvio que só por ironia se pode suplicar absolvição por se ter sido leal. A lealdade constitui um ato de fidelidade aos compromissos assumidos e evidencia o sentido de retidão e de probidade do indivíduo que é leal, configurando um valor ético e um código em trono do qual se unem os elementos dos grupos feudais.
            Ao colocar a sua própria voz na voz do alcaide de Sousa, Diego Pezelho encena um discurso marcadamente sarcástico e impiedoso para todos os que traíram D. Sancho II e cederam às pretensões do Conde de Bolonha, coagidos pela ameaça da excomunhão por parte dos bispos.
            Assim, o sujeito poético da cantiga (o alcaide) dirige-se a um arcebispo (provavelmente o de Braga, D. João Viegas de Portocarreiro, um dos principais responsáveis pela deposição de D. Sancho II, integrando, por exemplo, a comitiva portuguesa que fora enviada a Lyon), pedindo-lhe absolvição, isto é, que lhe retire a excomunhão, por ter sido enganado pelo diabo a praticar um ato de lealdade. Ele tivera um castelo em Sousa, julgara agir corretamente, mantendo a fidelidade ao monarca, mas compreende agora que foi um pecado. No refrão, repetido quatro vezes, o alcaide roga ao bispo que suspenda a excomunhão. Para tal – socorrendo-se, neste ponto, do equivocatio – jurará que foi um traidor: “Soltade-m’, ai, senhor, / e jurarei, mandado, que seja traedor”. Porém, o facto de afirmar que jurará “mandado”, isto é, sob ameaça, livra-o da possível acusação de subserviência e deslealdade. Foi, por isso, que o trovador usou o conjuntivo «seja», em vez do indicativo «sou»: está implícita aí a ideia de subordinação e coação. Em contrapartida, pela expiação do pecado de lealdade e remissão da excomunhão, propõe-se jurar, «mandado», que é um traidor.
            A ironia é evidente: o que é afirmado no primeiro verso (“Meu senhor arcebispo, and’ eu excomungado”) é incongruente com o que surge nos seguintes: ninguém está à espera que alguém seja excomungado por ter sido leal nem que isso fosse um ato diabólico. Além disso, de acordo com o refrão, a absolvição derivaria de um ato de felonia que o alcaide encena ironicamente querer assumir.
            Por outro lado, é clara a intenção de criticar o ato de traição de quem alinhou com o clero e com as pretensões de D. Afonso, porque, ao fazê-lo, estaria a salvo da excomunhão. Neste contexto, assume grande relevância o primeiro verso da segunda estrofe (“Se traiçon fizesse”), que mostra como seria censurável a traição e como o poema se desenvolve em torno do arrependimento fingido do alcaide. Além disso, infere-se que a traição é um ato que se concretiza debaixo de um silêncio indigno e que, por ser tão censurável para quem o pratica, se procura emudecer: “nunca vo-la diria”.
            Nas restantes estrofes, o «eu» continua, irónica e dissimuladamente, a lamentar-se por ter sido excomungado, afirmando que defendeu e entregou o castelo ao seu legítimo «dono», convicto de que estava a fazer o que era correto (“gran cousa”), mas que, afinal, se arrependeu por não ter sido traidor.
            De acordo com Herlânder Gonçalves dos Santos (in D. Sancho II – Da deposição à composição das fontes literárias dos séculos XIII e XIV), «O escárnio explora a ambivalência irónica entre o fazer e o dizer, entre a conduta de um alcaide leal ao seu senhor, que se manteve fiel aos votos de vassalagem, que ignorou as resoluções eclesiásticas que incriminavam pela excomunhão essa fidelidade contrária aos interesses e deliberações da Igreja, e o dizer tão lamentoso quão desdenhoso da sua contrição: “Per meus negros pecados, tive um castelo forte / e dei-o a seu don(o), e ei medo da morte. / Soltade-m’, ai, senhor, / e jurarei, mandado, que seja traedor.” (vv. 13-16).
            Assim sendo, não custa concluir que um dos alvos da cantiga, se não o principal, é o poder eclesiástico, por forçar as consciências, neste caso dos alcaides, a aceitar as pretensões do futuro Afonso III. Note-se, todavia, que na composição não há qualquer referência explícita ao Conde de Bolonha, no entanto o tema e o assunto desenvolvidos focam, inequivocamente, o conflito de 1245 e a entrega dos castelos a D. Afonso, a coberto das deliberações do Concílio de Lyon.
            O outro alvo do poeta é a fidalguia militar que governava os castelos. Mais uma vez, as referências textuais a ela não são explícitas, contudo a referência ao alcaide de Sousa e à sua promessa (fingida e irónica) de traição para se libertar da pena de excomunhão não deixa dúvidas sobre quem está a ser visado: os nobres que se aliaram a D. Afonso e o clero que legitimou a traição a D. Sancho II.
 
 
Caracterização do alcaide
 
            O alcaide de Sousa apresenta-se como uma figura leal a D. Sancho II, recusando traí-lo e entregar o seu castelo a D. Afonso III. Astuto e irónico, finge-se arrependido da sua lealdade, procurando, deste modo, que lhe seja retirada a excomunhão. Ele coloca-se, pois, no papel de vítima, fazendo um discurso de aparente humildade e medo. Este mesmo discurso permite vislumbrar o do arcebispo, certamente autoritário.
            Assim, na sua figura confrontam-se duas situações: uma, de ordem religiosa: o alcaide não quer ser excomungado; outra, de cariz político: permanecer fiel e leal a D. Sancho II.
 
 
Classificação
 
            A composição poética é uma cantiga de escárnio, dado tratar-se de uma sátira direta (o alvo está identificado: o alcaide de Sousa), numa linguagem irónica e humorística, com uma finalidade moralizadora.
 
 
Forma
Estrofes: quatro quintilhas.
Métrica: versos de 12 e 6 (no refrão) sílabas métricas.
Rima:
- esquema rimático: aabb
- emparelhada
- consoante (excomungado”/”pecado”)
- rica (“excomungado”/”pecado”) e pobre (“Sousa”/”cousa”)
- grave (“excomungado”/”pecado”) e aguda (“senhor”/”traedor”)
Refrão: profundamente irónico, é através dele que o alcaide pede que o libertem da excomunhão, em troca de um arrependimento e juramento forçado e fingidos.
 
 
Recurso expressivos
Aliteração em s.
Pronomes e determinantes: sugerem uma reverência profundamente irónica pela autoridade eclesiástica (“Meu senhor arcebispo”).
Interjeição “Ai”: exprime um estado emotivo também ele fingido.
Vírgulas: permitem a bipartição do verso.
Paralelismo semântico e estrutural.
Verbos:
- tempos:
. presente: reflete a excomunhão e o pedido de libertação dela;
. pretérito: apresenta o ato que levou à excomunhão;
- modo: imperativo – traduz o pedido do alcaide no sentido de ser perdoado e libertado da excomunhão.
Ironia: figura predominante na cantiga, traduz o arrependimento fingido do alcaide pelo seu ato de lealdade. A ironia reside, pois, na interpretação às avessas das noções de fidelidade e traição.
Antítese entre lealdade e traição.
Apóstrofe: “Meu senhor arcebispo”.
 
 
Valor documental
 
            Esta cantiga assume grande importância, por causa das referências que contém a aspetos histórico-sociais do século XIII:
a) o ciclo dos castelos: conjunto de sátiras sobre a traição dos alcaides, durante o conflito que opôs D. Sancho a seu irmão, D. Afonso III, sátiras essas que defendem a fidelidade ao monarca deposto;
b) a deposição de D. Sancho II;
c) o poder da Igreja.
            A composição poética baseia-se em acontecimentos político-sociais contemporâneos: as lutas entre D. Sancho II e D. Afonso III. Embora se enchesse de prestígio na luta contra os mouros, D. Sancho II desgostou profundamente os membros do clero e alguns nobres. Em 24 de julho de 1245, o papa Inocêncio IV expendiu uma bula, pela qual o depunha do trono português e o atribuía a seu irmão, D. Afonso III, Conde de Bolonha.
            D. Sancho II lutou ainda durante algum tempo, ajudado por servidores leais, não obstante as excomunhões que contra eles lançaram o Arcebispo de Braga e os bispos de Coimbra e do Porto. No entanto, a maioria dos alcaides entregou-se a D. Afonso III, ato que, junto da opinião pública, foi considerado traição, sobretudo porque tal entrega andou de braço dado com avultadas somas de dinheiro, promessas aliciantes, medo e outros motivos menos dignos.
            A pena e a ironia dos trovadores da época não pouparam a suposta venalidade e cobardia dos alcaides que se entregaram a D. Afonso III. De facto, o trovadorismo nunca se ergueu contra a causa de D. Sancho e a favor do seu irmão. Pelo contrário, todos vituperaram a infame traição dos alcaides que entregaram os castelos do Bolonhês.
            Além disso, os trovadores denunciaram a corrupção do poder eclesiástico e da fidalguia militar, bem como o modo como a poderosa Igreja forçou as consciências esse serviu do seu poder para excomungar todos aqueles que se mantiveram leais ao seu monarca, D. Sancho II.
            Historicamente, a realidade diz-nos que boa parte do clero português, apoiado por nobres e pelo próprio papa, tomou parte na campanha cujo objetivo era a deposição de D. Sancho II. Afonso era, nessa altura, conde de Bolonha (daí o epíteto de o Bolonhês) e juntou-se às fileiras que hostilizaram o legítimo monarca. A 24 de julho de 1245, a bula Grandi non immerito depôs D. Sancho II e estabeleceu o seu irmão como regente do reino. A bula procurou justificar a deposição do monarca pelo caos generalizado em que o reino tinha caído, circunstanciando-se agravos a igrejas, mosteiros e clérigos, denunciando-se desleixo governativo e enfatizando-se resistências de D. Sancho II no que diz respeito a acolher as recomendações que a Cúria Romana lhe tinha feito até então. Assim, perante as infrutíferas tentativas de chamar o monarca à razão no sentido de manter a ordem e a justiça, e perante a sua reiterada negligência, o papa ordenou que o Bolonhês fosse o governador e curador que organizasse o reino.
            Neste contexto, Diego Pezelho coloca-se no lugar de um alcaide que entregou o castelo ao «verdadeiro dono» e, por isso, foi punido com a excomunhão.
 

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Tiros à porta da Escola Secundária José Cardoso Pires

 Um grupo com cerca de 10 elementos lançou o pânico, esta terça-feira à tarde, na Escola Secundária José Cardoso Pires, em Loures, quando arremessou garrafas de vidro e efetuou diversos disparos no momento em que lhe foi barrada a entrada no recinto escolar. Um jovem, de 16 anos, foi atingido a tiro num joelho.

Quem quer ser professor?

Professora cai em buraco no soalho da sala de aula de escola na Marinha Grande

Após queda violenta, mulher teve de ser assistida no Hospital de Leiria. 

Sintaxe do verbo aquiescer

    O verbo «aquiescer» pode reger-se com as preposições a e em.

    Exemplos:
        1. O professor aquiesceu ao pedido do aluno.
        2. A Miquelina aquiesceu no casamento.

Favas contadas

    A expressão favas contadas refere-se a um acontecimento ou facto dado como certo.

    Favas contadas teve origem na forma como, em muitos mosteiros medievais, eram eleitos os abades.

    De facto, depois de "chamados ao capítulo" (uma espécie de assembleia de religiosos), os monges escolhiam o abade mediante um sistema de votação baseado em favas: as brancas constituíam um voto a favor do nomeado e as pretas contra o nomeado. No final, contavam-se as favas.

    Alguns autores associam a origem deste sistema de eleição à Grécia Antiga.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Análise de "Proençaes soem mui bem trobar"

 
Assunto: o sujeito poético acusa os trovadores provençais de serem artificiais e fingidos, pois trovam apenas na primavera, ao contrário dele, que sofre realmente pela sua amada.
 
 
Tema: a coita de amor / a teoria poética [reflexão sobre a escrita de poesia] e sátira aos poetas provençais / a sinceridade versus o fingimento do sentimento amoroso.
 
 
Estrutura interna – Crítica aos trovadores provençais

 
Questão suscitada pelo sujeito poético:
- Crítica aos trovadores provençais:
• apenas trovam na primavera e não no resto do ano
• não sofrem de amor como ele sofre pela sua amada
• nunca morrerão de amor como ele
• o sentimento de que falam os provençais é artificial – fingimento e simulação

Diferença entre o sujeito poético e os trovadores provençais


 
 
Simbolismo das estações do ano
 
            A primavera, momento em que a Natureza renasce, é a estação do ano propícia às relações amorosas, em oposição ao inverno, um tempo em que os sentimentos se encontram mais adormecidos. Deste modo, os trovadores provençais compõem cantigas somente na primavera, o que enfatiza o facto de não sentirem um verdadeiro amor pela mulher amada, antes se tratar de mero artificialismo poético.
 
 
Título
 
            O título da cantiga, ao referir-se aos «provençais», reflete a origem das cantigas de amor: a região da Provença, no sul de França.
 
 
Crítica aos trovadores provençais
 
            Esta cantiga constitui uma denúncia e crítica aos trovadores provençais, acusando-os de serem convencionais e artificias no que toca à expressão do sentimento amoroso.

            De facto, apesar de serem dotados de qualidade artística, de mestria poética, dado que “soem mui bem trovar”, só o fazem na primavera, enquanto o sujeito poético exprime na sua poesia um amor verdadeiro, sincero, pautado pelo sofrimento. Os provençais compõem poemas apenas nessa estação do ano, porque é uma época propícia ao amor. Não o fazem no inverno, pois os seus sentimentos estão adormecidos (“razom / nom am”). Assim sendo, não sentem verdadeiro amor, que estaria presente em todas as estações.

            Esse falso sentimento amoroso é observado com ironia por parte do «eu»: “e dizem eles que é com amor” (verso 2). Assim que a primavera termina, os provençais deixam de ter motivo para trovar, o que confirma que o seu sentimento não é verdadeiro.

            Em suma, os trovadores provençais apenas poetam na primavera e não todo o ano e escrevem que sofrem de amor, mas esse sentimento é artificial: eles não padecem da «coita de amor» e vivem alegres.

 
 
Crítica à artificialidade do amor cortês
 
            O sujeito poético critica a artificialidade do amor cortês ao afirmar que os trovadores provençais não amam como dizem amar nem sofrem realmente a dor amorosa que afirmam sofrer. Tudo isso é exagerado e artificial. Note-se, porém, que o próprio «eu» incorre no mesmo erro/exagero, ao afirmar, na parte final da cantiga, que morrerá de amor, em decorrência de não ser correspondido pela «senhor» que ama.
 
 
Reflexão sobre a criação poética
 
            Podemos considerar que a cantiga constitui uma reflexão sobre o processo de criação poética, apresentando duas formas de compor poesia.       

            Por um lado, a poesia baseia-se no convencionalismo e na imitação servil, na esteira dos trovadores provençais e dos seus cantares de amor.

            Por outro lado, D. Dinis sugere uma poesia sustentada na expressão autêntica da «coita de amor», como se pode constatar nesta composição poética.

 
 
Forma
 

Estrofes: três sextilhas isométricas.

Métrica: versos eneassílabos (9 sílabas) e maioritariamente decassílabos.

Rima:

- esquema rimático. ABBCCA

- interpolada e emparelhada

- consoante (“amor”/”flor”)

- aguda ou masculina

- rica (“non”/”coraçom”) e pobre (“trobar”/”levar”)

Ritmo binário.

Transporte/encavalgamento: vv. 3-4, 4-5, 5-6, etc.

  
 
Recursos expressivos
 
Perífrases:
 

Gradação “da coita de amor”: na primeira cobla, o sujeito poético refere somente a sua «gram coita»; na segunda, afirma que não existe outra igual (“qual eu sei sem par”); na última, assinala o facto de esta coita ser a sua «perdiçom» e que o «á de matar».

Nomes:

- proençaes: é o objeto da crítica presente na cantiga e, simultaneamente, o criador do cantar de amor;

- tempo, frol: estes nomes remetem para a crítica – os provençais trovam apenas na primavera;

- coita: o sofrimento que atormenta o sujeito poético, em contraste com a artificialidade e o fingimento dos provençais:

- perdiçom: a morte de amor, dada a não correspondência amorosa da «senhor».

Vocábulos provençais: prez, sem.

Anáfora do e: explica que os provençais não têm “gram coita no seu coraçom”, é um fingimento, pois só trovam numa dada época do ano.

Paralelismo estrutural e semântico.

Ironia: “dizem eles que é com amor” (vv. 7-9); “sabem loar / sas senhores o mais e o melhor / que eles podem” – os provençais compõem belas cantigas, mas o que escrevem não corresponde aos seus sentimentos, pois tudo é fingimento.

 
 
Classificação
 
            O poema é uma cantiga de amor de mestria, isto é, não possui refrão.

            É curioso que Nuno Júdice (in Cancioneiro de D. Dinis) a inclui na secção das cantigas de escárnio e maldizer por causa do seu tom crítico e satírico.

Análise de "Se eu pudesse desamar"



 Resumo
 
            O sujeito poético exprime o desejo (impossível) de se vingar da “senhor”, pois esta tratou-o mal, pagando-lhe na mesma moeda, isto é, deixando de a amar, procurando o seu mal e fazendo-a sofrer como ele sofre. No entanto, este desejo é impossível de concretizar, desde logo porque a culpa é do seu próprio coração, que o fez desejar quem nunca o desejou. Como não consegue dormir, só lhe resta pedir a Deus que desampare quem sempre o desamparou e lhe dê a ele a capacidade para a perturbar um pouco. Deste modo, conseguiria dormir. Em alternativa, pede-lhe que pelo menos lhe dê coragem para falar com ela.
 
 
Assunto: o desejo de vingança por parte do sujeito poético relativamente à sua «senhor», pelo facto de ela o fazer sofrer muito (“coita de amor”).
 
 
Tema: a revolta contra o poder da “coita de amor” / o amor não correspondido / a amada como ser inacessível.
 
 
Caracterização da «senhor»
 
            A mulher amada mostra-se fria e indiferente em relação ao sujeito poético e ao seu sentimento, não lhe correspondendo amorosamente. Ela é, pois, de acordo com a convenção da cantiga de amor, inacessível ao trovador, pois não lhe corresponde amorosamente e nunca o será. E ele tem consciência disso.
 
 
Caracterização do sujeito poético
 
            O retrato do sujeito poético pode sintetizar em meia dúzia de traços:

▪ está apaixonado;

▪ sente-se enganado (v. 9);

▪ não dorme (v. 12);

▪ está desamparado e perturbado (vv. 16, 18);

▪ sofre (v. 26)

▪ deseja vingar-se da «senhor».

            De facto, o «eu» está enamorado, mas sofre imenso e mostra-se muito indignado e revoltado porque a mulher que ama não corresponde ao seu amor.

            Além de não lhe corresponder e de lhe causar dor, a «senhor» parece ter desejado fazê-lo sofrer, como o indicia o verso 4: “a quem me sempre mal buscou!”. Por outro lado, ela espicaçou nele, de forma maldosa, o amor e a paixão, como se pode comprovar pelos versos 24 e 25: “por que me fez em si cuidar, / pois ela nunca em mim cuidou”.

            Tudo isto o leva a manifestar o desejo de se vingar dela pelo sofrimento e pela dor que lhe causou, fazendo-a sofrer como ele tem sofrido. No entanto, como é impossível retribuir-lhe o mal que ela lhe causou, a sua mágoa é reforçada, ou seja, porque ele não antevê qualquer alívio futuro. Esta ideia é bem traduzida pelo refrão, que ora aponta a causa do sofrimento do «eu» (estrofes 2 e 4), ora indicia a condição impossível para o alívio do sofrimento (coblas 1 e 3): o «eu» não pode vingar-se nem dormir, isto é, encontrar a paz, pois não pode fazer sofrer a amada. Assim, como não lhe é possível libertar-se da dor, resta-lhe lamentar-se e continuar a sofrer.

            O tom do seu queixume é de lamento e algo colérico, visto que, como já foi mencionado, ele sofre por amor e está revoltado com a situação em que se encontra e com a «senhor», a responsável pelo seu estado de alma.

            Em suma, o «eu» vive um conflito interior, visto que, por um lado, deseja vingar-se da mulher, “devolvendo-lhe” todo o sofrimento que ela lhe causa, contudo, por outro lado, tem consciência de que não lhe é possível evitar o amor que o prende à dama.

 
 
Fuga às convenções da cantiga de amor
 
            De acordo com o cânone da cantiga de amor, o trovador, quando não é correspondido pela «senhor», é submisso e mantém-se leal ao amor e ao serviço amoroso. Nas palavras de António José Saraiva (in O Crepúsculo da Idade Média em Portugal), “O amor era concebido à maneira cavaleiresca, como um «serviço». Consistia esse serviço em dedicar-lhe [à amada] os pensamentos, os versos e os atos. O serviço está para a «senhor» como o vassalo está para o suserano.

            Mas o que é próprio das cantigas de amor e do seu modelo provençal é a distância a que o amante se coloca em relação à sua amada, a quem chama senhor, tornando-a um objeto quase inacessível.”

            Por outro lado, as regras do amor cortês não lhe permitem dirigir-se diretamente à mulher, daí usar o verbo «ousar» (v. 22) e no pretérito imperfeito do conjuntivo, sugerindo uma situação improvável. De facto, falar com ela constituiria um atrevimento e uma quebra do código amoroso e do serviço de vassalagem que tem de lhe prestar.

            No entanto, esta cantiga contraria a convenção, visto que o «eu» poético não serve dedicadamente a mulher amada e não aceita o sofrimento amoroso e a dor causados pela não correspondência amorosa da dama, não se resignando a sofrer. Mais do que isso, ele revolta-se contra ela e expressa mesmo o desejo de se vingar, fazendo-lhe mal e trazendo-lhe igualmente sofrimento. A revolta contra o poder da «coita de amor» é uma fuga ao código da «fin’amors», pois o trovador jamais poderia desanimar ou colocar o seu sofrimento acima do seu serviço. O amor, ainda que não correspondido, devia ser fonte de depuração. Além disso, desmistifica a ideia da mulher idealizada: ela é cruel, dá esperanças ao pobre trovador e depois desdenha dele, ignora-o.

 
 
Forma
 
Estrofes: quatro sétimas.

Rima:

- esquema rimático: ABABRAR

- cruzada e interpolada

- consoante e toante

- pobre e rica

- aguda

Métrica: versos octossílabos.

Transporte.

Ritmo lento e arrastado.

Refrão:

. estabelece o confronto entre o desejo e a realidade;

. o sujeito formula o desejo de que a “senhor” que ama e que não lhe retribui o amor sofra tanto como ele tem sofrido por ela;

. atesta a oscilação do sujeito poético entre os dois domínios: o do possível e o do impossível, expressa na alternância do primeiro verso do refrão entre as estrofes ímpares e pares:
- impossível: “se eu podesse coita dar”;
- possível: “nom posso coita dar”.
  
 
Recursos estilísticos
 
Assonância em a e e.

Aliteração em s.

Personificação do coração: o sujeito poético responsabiliza-o pelo seu sofrimento

Antítese entre o desejo do trovador e a realidade da cantiga de amor, do código da “fin’amors”. Trata-se de um conflito não resolvido, pois é impossível ao «eu» «punir» a amada, o que o deixa em tensão.

Orações subordinadas condicionais e causais: mostram o esforço do sujeito poético para encontrar a solução acertada para a sua vingança: pensa, avalia, calcula várias possibilidades sem conseguir concluir.

 
 
Classificação
 
Cantiga de amor: esta composição poética é uma cantiga de amor cujo sujeito de enunciação é masculino – o trovador –, que expressa os seus sentimentos pela «senhor», uma dama inacessível geralmente casada.
 
Recursos formais da cantiga de amor:
- Refrão (vide).
- Dobre: repetição da mesma palavra flexionada (isto é, mudando-lhe o tempo verbal ou o género, por exemplo) no mesmo lugar:
. desamar / desamou
. busca / buscou
. podesse / posso
. enganar / enganou
. dar / deu
 
 
Valor documental
 
            Esta cantiga retrata já uma desmistificação do amor cortês em confronto com uma realidade bem diferente, uma realidade onde havia mulheres de carne e osso com defeitos e virtudes.

            Além disso, é também o reflexo da decadência da vida da corte, da nobreza, que começa a perder o seu poder para uma nova classe que começa a surgir – a burguesia.

 

Ricardo Reis: o monarca clássico


Pink Panther: episódio 6

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Análise de "Sedia la fremosa seu sirgo torcendo"

 
Assunto: esta cantiga coloca-nos perante um cenário doméstico, onde nos é apresentada uma donzela que, enquanto tece, sentada, canta cantigas de amigo. Alguém dialoga com ela, relacionando o seu canto com as mágoas de amor que a jovem sentirá, o que é confirmado pela rapariga.
 
 
Tema: a alegria (motivada pelo amor).
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (estrofes 1 e 2) – Apresentação de um quadro doméstico medieval, de feição narrativa: uma donzela «fremosa» tece o seu sirgo e canta cantigas de amigo. Como a voz é «manselinha» e o cantar é «fremoso», pode concluir-se que o seu canto não é feito de lágrimas ou de recordações penosas, mas de uma evocação consoladora. A sua saudade é apenas gosto e não “gosto amargo”.
 
2.ª parte (estrofes 3 e 4) – Diálogo: o canto é interrompido por um alvitre de alguém – quem assim canta está, sem dúvida, apaixonado.
 
3.ª parte (finda) – Conclusão: a donzela responde ao seu interlocutor de forma lacónica, confirmando o alvitre dele.
 
 
Caracterização da donzela

▪ formosa

▪ alegre

▪ apaixonada

▪ exultante, radiante

▪ canta doce e harmoniosamente

▪ disfarça o seu amor

▪ saudosa

▪ ansiosa por voltar a ver o amigo

 
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...