Português: Análise de "Se eu pudesse desamar"

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Análise de "Se eu pudesse desamar"



 Resumo
 
            O sujeito poético exprime o desejo (impossível) de se vingar da “senhor”, pois esta tratou-o mal, pagando-lhe na mesma moeda, isto é, deixando de a amar, procurando o seu mal e fazendo-a sofrer como ele sofre. No entanto, este desejo é impossível de concretizar, desde logo porque a culpa é do seu próprio coração, que o fez desejar quem nunca o desejou. Como não consegue dormir, só lhe resta pedir a Deus que desampare quem sempre o desamparou e lhe dê a ele a capacidade para a perturbar um pouco. Deste modo, conseguiria dormir. Em alternativa, pede-lhe que pelo menos lhe dê coragem para falar com ela.
 
 
Assunto: o desejo de vingança por parte do sujeito poético relativamente à sua «senhor», pelo facto de ela o fazer sofrer muito (“coita de amor”).
 
 
Tema: a revolta contra o poder da “coita de amor” / o amor não correspondido / a amada como ser inacessível.
 
 
Caracterização da «senhor»
 
            A mulher amada mostra-se fria e indiferente em relação ao sujeito poético e ao seu sentimento, não lhe correspondendo amorosamente. Ela é, pois, de acordo com a convenção da cantiga de amor, inacessível ao trovador, pois não lhe corresponde amorosamente e nunca o será. E ele tem consciência disso.
 
 
Caracterização do sujeito poético
 
            O retrato do sujeito poético pode sintetizar em meia dúzia de traços:

▪ está apaixonado;

▪ sente-se enganado (v. 9);

▪ não dorme (v. 12);

▪ está desamparado e perturbado (vv. 16, 18);

▪ sofre (v. 26)

▪ deseja vingar-se da «senhor».

            De facto, o «eu» está enamorado, mas sofre imenso e mostra-se muito indignado e revoltado porque a mulher que ama não corresponde ao seu amor.

            Além de não lhe corresponder e de lhe causar dor, a «senhor» parece ter desejado fazê-lo sofrer, como o indicia o verso 4: “a quem me sempre mal buscou!”. Por outro lado, ela espicaçou nele, de forma maldosa, o amor e a paixão, como se pode comprovar pelos versos 24 e 25: “por que me fez em si cuidar, / pois ela nunca em mim cuidou”.

            Tudo isto o leva a manifestar o desejo de se vingar dela pelo sofrimento e pela dor que lhe causou, fazendo-a sofrer como ele tem sofrido. No entanto, como é impossível retribuir-lhe o mal que ela lhe causou, a sua mágoa é reforçada, ou seja, porque ele não antevê qualquer alívio futuro. Esta ideia é bem traduzida pelo refrão, que ora aponta a causa do sofrimento do «eu» (estrofes 2 e 4), ora indicia a condição impossível para o alívio do sofrimento (coblas 1 e 3): o «eu» não pode vingar-se nem dormir, isto é, encontrar a paz, pois não pode fazer sofrer a amada. Assim, como não lhe é possível libertar-se da dor, resta-lhe lamentar-se e continuar a sofrer.

            O tom do seu queixume é de lamento e algo colérico, visto que, como já foi mencionado, ele sofre por amor e está revoltado com a situação em que se encontra e com a «senhor», a responsável pelo seu estado de alma.

            Em suma, o «eu» vive um conflito interior, visto que, por um lado, deseja vingar-se da mulher, “devolvendo-lhe” todo o sofrimento que ela lhe causa, contudo, por outro lado, tem consciência de que não lhe é possível evitar o amor que o prende à dama.

 
 
Fuga às convenções da cantiga de amor
 
            De acordo com o cânone da cantiga de amor, o trovador, quando não é correspondido pela «senhor», é submisso e mantém-se leal ao amor e ao serviço amoroso. Nas palavras de António José Saraiva (in O Crepúsculo da Idade Média em Portugal), “O amor era concebido à maneira cavaleiresca, como um «serviço». Consistia esse serviço em dedicar-lhe [à amada] os pensamentos, os versos e os atos. O serviço está para a «senhor» como o vassalo está para o suserano.

            Mas o que é próprio das cantigas de amor e do seu modelo provençal é a distância a que o amante se coloca em relação à sua amada, a quem chama senhor, tornando-a um objeto quase inacessível.”

            Por outro lado, as regras do amor cortês não lhe permitem dirigir-se diretamente à mulher, daí usar o verbo «ousar» (v. 22) e no pretérito imperfeito do conjuntivo, sugerindo uma situação improvável. De facto, falar com ela constituiria um atrevimento e uma quebra do código amoroso e do serviço de vassalagem que tem de lhe prestar.

            No entanto, esta cantiga contraria a convenção, visto que o «eu» poético não serve dedicadamente a mulher amada e não aceita o sofrimento amoroso e a dor causados pela não correspondência amorosa da dama, não se resignando a sofrer. Mais do que isso, ele revolta-se contra ela e expressa mesmo o desejo de se vingar, fazendo-lhe mal e trazendo-lhe igualmente sofrimento. A revolta contra o poder da «coita de amor» é uma fuga ao código da «fin’amors», pois o trovador jamais poderia desanimar ou colocar o seu sofrimento acima do seu serviço. O amor, ainda que não correspondido, devia ser fonte de depuração. Além disso, desmistifica a ideia da mulher idealizada: ela é cruel, dá esperanças ao pobre trovador e depois desdenha dele, ignora-o.

 
 
Forma
 
Estrofes: quatro sétimas.

Rima:

- esquema rimático: ABABRAR

- cruzada e interpolada

- consoante e toante

- pobre e rica

- aguda

Métrica: versos octossílabos.

Transporte.

Ritmo lento e arrastado.

Refrão:

. estabelece o confronto entre o desejo e a realidade;

. o sujeito formula o desejo de que a “senhor” que ama e que não lhe retribui o amor sofra tanto como ele tem sofrido por ela;

. atesta a oscilação do sujeito poético entre os dois domínios: o do possível e o do impossível, expressa na alternância do primeiro verso do refrão entre as estrofes ímpares e pares:
- impossível: “se eu podesse coita dar”;
- possível: “nom posso coita dar”.
  
 
Recursos estilísticos
 
Assonância em a e e.

Aliteração em s.

Personificação do coração: o sujeito poético responsabiliza-o pelo seu sofrimento

Antítese entre o desejo do trovador e a realidade da cantiga de amor, do código da “fin’amors”. Trata-se de um conflito não resolvido, pois é impossível ao «eu» «punir» a amada, o que o deixa em tensão.

Orações subordinadas condicionais e causais: mostram o esforço do sujeito poético para encontrar a solução acertada para a sua vingança: pensa, avalia, calcula várias possibilidades sem conseguir concluir.

 
 
Classificação
 
Cantiga de amor: esta composição poética é uma cantiga de amor cujo sujeito de enunciação é masculino – o trovador –, que expressa os seus sentimentos pela «senhor», uma dama inacessível geralmente casada.
 
Recursos formais da cantiga de amor:
- Refrão (vide).
- Dobre: repetição da mesma palavra flexionada (isto é, mudando-lhe o tempo verbal ou o género, por exemplo) no mesmo lugar:
. desamar / desamou
. busca / buscou
. podesse / posso
. enganar / enganou
. dar / deu
 
 
Valor documental
 
            Esta cantiga retrata já uma desmistificação do amor cortês em confronto com uma realidade bem diferente, uma realidade onde havia mulheres de carne e osso com defeitos e virtudes.

            Além disso, é também o reflexo da decadência da vida da corte, da nobreza, que começa a perder o seu poder para uma nova classe que começa a surgir – a burguesia.

 

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