Em Portugal, a consagração do novo
estilo deveu-se em grande parte a Francisco de Sá de Miranda, secundado por uma
plêiade de discípulos.
De facto, em 1521,
iniciou uma viagem a Itália, onde se
demorou até 1526, que lhe permitiu conhecer mais de perto alguns dos grandes
escritores italianos vivos (Bembo, Sannazzaro, Sadoletto, Ariosto) e outras
personalidades marcantes, como Vitória Colonna, a amiga de Miguel Ângelo, sua
suposta parenta. No regresso, de passagem por Espanha, em 1526, terá conhecido
Boscán e Garcilaso, dois dos maiores nomes da literatura espanhola de então.
Colaborador do Cancioneiro Geral, cultivou em língua portuguesa e castelhana as
formas consagradas nessa coletânea, antes e depois da sua conversão ao novo estilo.
Nunca, aliás, repudiou a «medida velha». Por exemplo, na écloga Alexo, que é uma das primeiras expressões
da nova escola em Portugal, aceita a coexistência dos dois estilos; numa elegia
dedicada a António Ferreira, muito mais tarde, reconhece o interesse das
antigas formas de trovar (vilancetes, glosas esparsas, poesia obrigada a mote);
e numa carta a António de Meneses, manifesta-se preso ainda ao ambiente dos
extintos momos e serões de Portugal, onde se fizera poeta.
Na primeira fase da sua carreira, anteriormente à sua campanha pelo
novo estilo, Sá de Miranda cultiva exclusivamente a poesia amorosa dentro dos temas
petrarquianos então em voga. A nota que mais frequentemente fere é a da
contradição entre a razão e a «vontade», isto é, a inclinação amorosa. Os seus
versos testemunham um espírito torturado e tenso; já então os repassa uma
melancolia inconfundível, que se acentuará posteriormente; e já por vezes se
nota a expressão condensada, elíptica, que é uma das grandes dificuldades, mas
também um dos interesses do seu estilo conciso, em que as palavras parecem
faltar para cingir a intensidade ou a largueza do pensamento.
Em fase ulterior, nos poemas que marcam a sua campanha pela introdução
em Portugal das formas italianas, enriquece e varia consideravelmente o seu
material literário. Nas éclogas, em que segue o modelo de Garcilaso, exibe um
estendal de erudição histórica e mitológica, reconta histórias célebres da
Antiguidade e alude constantemente a lugares-comuns clássicos. Mas os melhores
valores da cultura greco-romana, mesmo os de expressão mítica, pareciam-lhe
provir dos «Livros Divinos». Tanto nas éclogas como noutras obras de inspiração
clássica – elegias, sonetos, canções – toca certos tópicos característicos da
literatura renascentista: o desdém pela vulgaridade, a superioridade do culto
das letras sobre o das armas, a necessidade de renovação pelo estudo dos
modelos estrangeiros, e exorta à composição de poemas heróicos de assunto
português.
Mas a parte mais original da obra
poética de Sá de Miranda é em redondilha menor: a écloga Basto e as Cartas,
editadas em 1626 como sátiras de tipo
horaciano. O autor expõe aí o que pensa do mundo que o rodeia. Falando do seu
retiro rústico, com uma rudeza ostensiva de «guarda-cabras», a sua atenção
privilegia o contraste entre a vida rural e a vida urbana e palaciana. O elogio
da simplicidade rústica, como estado mais seguro e mais repousado que a vida
artificial na cidade ou na corte, é um tema característico da Antiguidade
clássica e particularmente de Horácio. Mas Sá de Miranda dá-lhe novos traços
datados e combina-o com uma crítica social que lembra alguns dos utopistas do
século XVI, num fundo de austeridade estóica ou senequista
Está talvez na origem desta crítica
um certo sentimento cioso da liberdade pessoal. O homem da corte, e de modo
geral todo o que vive no seio da civilização urbana, teria alienado a liberdade.
Sá de Miranda parece considerar essa alienação, por um lado, sob a forma da
pressão social que se manifesta nas convenções e intrigas da vida da corte; por
outro lado, sob a forma de sujeições resultantes da estrutura produtiva. O
homem apenas seria livre conformando-se com a «boa razão» e a «mãe natureza»,
«madre antiga», que bastaria à satisfação das nossas necessidades; segundo o
dito evangélico, as aves do céu não fiam nem tecem e andam, todavia, mais ricamente
vestidas que Salomão. Sá de Miranda desdenha doutra actividade além da lavoura,
que lhe parece a própria dos homens; condena o tráfego marítimo, a busca de
ouro debaixo do solo, que os obriga, de costas para o dia, a entrar pela noite
dentro. A ambição do ouro origina, segundo ele, as guerras, que desviam para a
destruição o fogo, antes dado para proveito dos homens, e formas reais ou
metafóricas de escravatura, que levam a pôr aos lanços na praça «espíritos
vindos do céu». A invenção, então recente, da artilharia é para Sá de Miranda
mais um exemplo dos malefícios resultantes do afastamento da natureza.
Dentro desta lógica, até mesmo a
propriedade individual da terra aparece ao mesmo tempo como efeito e causa da
violência: a sangue e fogo foi a terra desigualmente repartida; o meu e teu está na origem das guerras.
Estes tópicos são frequentes na
poesia clássica, em que a Idade de Ouro, tida como anterior à propriedade
agrária individual, à moeda, ao Estado, à guerra, constituía a idealização
poética do comunitarismo primitivo ou do clã patriarcal. É bem possível,
todavia, que Sá de Miranda tenha em vista qualquer fenómeno social que então se
processasse entre nós, do género das vedações («cercas») e apropriações, pela
aristocracia inglesa, de terrenos comunais dos aldeãos. A sua indignação pelo
que então se passa neste sentido e que ele testemunha como fidalgo à antiga,
patriarcalmente próximo do trabalhador rural, atinge uma vibração ainda hoje
bem comunicativa, ao afirmar, por exemplo, que certos «salteadores com nome e
rosto de honrados» andam quentes, «forrados de peles de lavradores». A
idealização clássica do comunitarismo primitivo pelo mito da Idade de Ouro, no
qual a própria agricultura e a pastorícia eram ainda sentidas como sacrílegas e
antinaturais, transfere-se assim para as relações agrárias então existentes,
pintadas com as cores idílicas da «áurea
mediania» rural de Horácio.
Por outro lado, Sá de Miranda
percebe claramente a ligação existente entre este exacerbamento e crise da
exploração feudal, o absentismo da nova nobreza cortesão e a expansão
ultramarina, que despovoa o Reino «ao cheiro desta canela». Não esconde a sua
antipatia pelo modo de vida que então contribuía para a alteração da estrutura
medieva do País:
Os
marinheiros vadios
que
vilmente a vida apreçam
pelas
cordas dos navios
volteiam
como bugios,
inda
que vos al pareçam.
Outro tema grato a Sá de Miranda é a
crítica da corte como centro do governo: a astúcia dos privados, o seu
engrandecimento à custa dos pequenos; a corrupção da justiça, o exibicionismo
devoto; todo um sistema de exploração em proveito de um grupo dirigente, que
consegue perverter as boas leis tornando-as «fracas teias de aranha», de que
são vítimas as mulheres, os órfãos, a «pobreza dos mesteres». Eles não se
atrevem sequer a falar diante dos poderes, esses poderes que deviam ser «nossos»
mas que os envolvedores «buscaram para si». Contra estes males, Sá de Miranda
vê o remédio num poder régio justamente exercido, ao serviço do Povo,
idealização típica do Renascimento.
Tais ideais exprimem-se num tom
nostálgico. Sá de Miranda volve os olhos para os costumes dos antigos
portugueses, para a «casa antiga e a torre», símbolo de um mundo em
desaparecimento: evoca os reis antigos, que se prezavam do nome de «lavradores»,
e também D. João II com a sua divisa «Pela lei e pela grei». Para ele o mundo
está em decadência. A utopia de uma vida natural no seio da «madre antiga», em
que não existia o teu e o meu, nem a guerra, casa-se com aquela melancolia que
ensombra os seus versos. Não é por acaso que nestas cartas (em que predominam
as quintilhas de redondilhas com dois esquemas alternativos de rima) Sá de
Miranda conservou construções e vocábulos arcaicos, como que acentuando o
carácter arcaizante do seu pensamento.
Tal arcaísmo ostensivo – próprio
sobretudo das composições na medida velha – combina-se, todavia, com uma
acentuada originalidade, e até com um pessoalismo muito acusado. Sá de Miranda
foge à expressão discursiva então letrada, quase não estabelecendo transição
sintáctica entre o texto básico e os comentários incisos, ou os exemplos, com lição moral. Com vista a
este efeito, a sua expressão é fortemente condensada e muitas vezes elíptica. O
seu léxico prefere os temas concretos às generalidades e aos eufemismos,
sacrificando para isso a dignidade classicizante tão grata a João de Barros ou
a António Ferreira. As imagens, por vezes muito evocativas, provêm do mundo
familiar, e não apenas do arsenal da tradição literária erudita; e mesmo quando
a este recorre, Sá de Miranda veste-o de uma aparência vernácula e até quase
rústica. Esta tendência foge às convenções do estilo novo, e sobretudo ao carácter
discursivo, expositivo e oratório que está na essência do classicismo. Pelo
contrário, orienta-se para uma expressão engenhosa, feita de agudeza conceptual,
combinando um artífice extremo com um certo folclorismo apaixonado por
apólogos, provérbios e efeitos de oralidade. Ora a importância da elipse
avultará no estilo de Góngora, que é directamente avesso à expressão
discursiva. Desta forma Sá de Miranda está na corrente que conduz ao Barroco
peninsular, e torna-se um dos precursores do conceptismo seiscentista.
Além dos primeiros versos na medida
nova, deve-se a Sá de Miranda a primeira comédia em estilo clássico. Sabe-se
também que escreveu uma tragédia com o título Cleópatra, de que nos restam poucos versos, em redondilha maior.
Os Estrangeiros, sua primeira comédia em
prosa, localiza-se na Itália. Os tipos e situações evidenciam a imitação de
Plauto e Terêncio e da comédia renascentista italiana em fala vulgar
portuguesa. Há a competição de um jovem, um fanfarrão e um doutor à volta de
uma rapariga posta a preço. As regras do classicismo renascentista são
acatadas: acção concentrada num troço de rua, onde se atam e desatam os nós dos
interesses em conflito.
Posterior a esta, e com
características muito semelhantes, a comédia Vilhalpandos, que tem por personagens uma cortesã, a mãe proxeneta,
dois fanfarrões e um escrivão hipócrita, está animada de um anticlericalismo
intenso, que tira partido da localização do enredo em Roma. Ambas as comédias
dão expressão a um ideário humanista renascentista: ridicularização das
bravatas militares, crítica da Escolástica, do monaquismo e da mendicância
beata, da remissão pecuniária dos pecados, exaltação das Letras humanas
clássicas e da paz.
Embora com êxito contestável, Sá de
Miranda luta no teatro contra o gosto então dominante dos autos: o prólogo da sua primeira comédia supõe o público surpreendido
por não estar a assistir a um auto em verso e rima.
A.
J. Saraiva & Óscar Lopes, História da
Literatura Portuguesa