Português: Sá de Miranda e a nova medida

terça-feira, 9 de abril de 2019

Sá de Miranda e a nova medida

            Em Portugal, a consagração do novo estilo deveu-se em grande parte a Francisco de Sá de Miranda, secundado por uma plêiade de discípulos.
            De facto, em 1521, iniciou uma viagem a Itália, onde se demorou até 1526, que lhe permitiu conhecer mais de perto alguns dos grandes escritores italianos vivos (Bembo, Sannazzaro, Sadoletto, Ariosto) e outras personalidades marcantes, como Vitória Colonna, a amiga de Miguel Ângelo, sua suposta parenta. No regresso, de passagem por Espanha, em 1526, terá conhecido Boscán e Garcilaso, dois dos maiores nomes da literatura espanhola de então.
            Colaborador do Cancioneiro Geral, cultivou em língua portuguesa e castelhana as formas consagradas nessa coletânea, antes e depois da sua conversão ao novo estilo. Nunca, aliás, repudiou a «medida velha». Por exemplo, na écloga Alexo, que é uma das primeiras expressões da nova escola em Portugal, aceita a coexistência dos dois estilos; numa elegia dedicada a António Ferreira, muito mais tarde, reconhece o interesse das antigas formas de trovar (vilancetes, glosas esparsas, poesia obrigada a mote); e numa carta a António de Meneses, manifesta-se preso ainda ao ambiente dos extintos momos e serões de Portugal, onde se fizera poeta.
            Na primeira fase da sua carreira, anteriormente à sua campanha pelo novo estilo, Sá de Miranda cultiva exclusivamente a poesia amorosa dentro dos temas petrarquianos então em voga. A nota que mais frequentemente fere é a da contradição entre a razão e a «vontade», isto é, a inclinação amorosa. Os seus versos testemunham um espírito torturado e tenso; já então os repassa uma melancolia inconfundível, que se acentuará posteriormente; e já por vezes se nota a expressão condensada, elíptica, que é uma das grandes dificuldades, mas também um dos interesses do seu estilo conciso, em que as palavras parecem faltar para cingir a intensidade ou a largueza do pensamento.
            Em fase ulterior, nos poemas que marcam a sua campanha pela introdução em Portugal das formas italianas, enriquece e varia consideravelmente o seu material literário. Nas éclogas, em que segue o modelo de Garcilaso, exibe um estendal de erudição histórica e mitológica, reconta histórias célebres da Antiguidade e alude constantemente a lugares-comuns clássicos. Mas os melhores valores da cultura greco-romana, mesmo os de expressão mítica, pareciam-lhe provir dos «Livros Divinos». Tanto nas éclogas como noutras obras de inspiração clássica – elegias, sonetos, canções – toca certos tópicos característicos da literatura renascentista: o desdém pela vulgaridade, a superioridade do culto das letras sobre o das armas, a necessidade de renovação pelo estudo dos modelos estrangeiros, e exorta à composição de poemas heróicos de assunto português.
            Mas a parte mais original da obra poética de Sá de Miranda é em redondilha menor: a écloga Basto e as Cartas, editadas em 1626 como sátiras de tipo horaciano. O autor expõe aí o que pensa do mundo que o rodeia. Falando do seu retiro rústico, com uma rudeza ostensiva de «guarda-cabras», a sua atenção privilegia o contraste entre a vida rural e a vida urbana e palaciana. O elogio da simplicidade rústica, como estado mais seguro e mais repousado que a vida artificial na cidade ou na corte, é um tema característico da Antiguidade clássica e particularmente de Horácio. Mas Sá de Miranda dá-lhe novos traços datados e combina-o com uma crítica social que lembra alguns dos utopistas do século XVI, num fundo de austeridade estóica ou senequista
            Está talvez na origem desta crítica um certo sentimento cioso da liberdade pessoal. O homem da corte, e de modo geral todo o que vive no seio da civilização urbana, teria alienado a liberdade. Sá de Miranda parece considerar essa alienação, por um lado, sob a forma da pressão social que se manifesta nas convenções e intrigas da vida da corte; por outro lado, sob a forma de sujeições resultantes da estrutura produtiva. O homem apenas seria livre conformando-se com a «boa razão» e a «mãe natureza», «madre antiga», que bastaria à satisfação das nossas necessidades; segundo o dito evangélico, as aves do céu não fiam nem tecem e andam, todavia, mais ricamente vestidas que Salomão. Sá de Miranda desdenha doutra actividade além da lavoura, que lhe parece a própria dos homens; condena o tráfego marítimo, a busca de ouro debaixo do solo, que os obriga, de costas para o dia, a entrar pela noite dentro. A ambição do ouro origina, segundo ele, as guerras, que desviam para a destruição o fogo, antes dado para proveito dos homens, e formas reais ou metafóricas de escravatura, que levam a pôr aos lanços na praça «espíritos vindos do céu». A invenção, então recente, da artilharia é para Sá de Miranda mais um exemplo dos malefícios resultantes do afastamento da natureza.
            Dentro desta lógica, até mesmo a propriedade individual da terra aparece ao mesmo tempo como efeito e causa da violência: a sangue e fogo foi a terra desigualmente repartida; o meu e teu está na origem das guerras.
            Estes tópicos são frequentes na poesia clássica, em que a Idade de Ouro, tida como anterior à propriedade agrária individual, à moeda, ao Estado, à guerra, constituía a idealização poética do comunitarismo primitivo ou do clã patriarcal. É bem possível, todavia, que Sá de Miranda tenha em vista qualquer fenómeno social que então se processasse entre nós, do género das vedações («cercas») e apropriações, pela aristocracia inglesa, de terrenos comunais dos aldeãos. A sua indignação pelo que então se passa neste sentido e que ele testemunha como fidalgo à antiga, patriarcalmente próximo do trabalhador rural, atinge uma vibração ainda hoje bem comunicativa, ao afirmar, por exemplo, que certos «salteadores com nome e rosto de honrados» andam quentes, «forrados de peles de lavradores». A idealização clássica do comunitarismo primitivo pelo mito da Idade de Ouro, no qual a própria agricultura e a pastorícia eram ainda sentidas como sacrílegas e antinaturais, transfere-se assim para as relações agrárias então existentes, pintadas com as cores idílicas da «áurea mediania» rural de Horácio.
            Por outro lado, Sá de Miranda percebe claramente a ligação existente entre este exacerbamento e crise da exploração feudal, o absentismo da nova nobreza cortesão e a expansão ultramarina, que despovoa o Reino «ao cheiro desta canela». Não esconde a sua antipatia pelo modo de vida que então contribuía para a alteração da estrutura medieva do País:
Os marinheiros vadios
que vilmente a vida apreçam
pelas cordas dos navios
volteiam como bugios,
inda que vos al pareçam.
            Outro tema grato a Sá de Miranda é a crítica da corte como centro do governo: a astúcia dos privados, o seu engrandecimento à custa dos pequenos; a corrupção da justiça, o exibicionismo devoto; todo um sistema de exploração em proveito de um grupo dirigente, que consegue perverter as boas leis tornando-as «fracas teias de aranha», de que são vítimas as mulheres, os órfãos, a «pobreza dos mesteres». Eles não se atrevem sequer a falar diante dos poderes, esses poderes que deviam ser «nossos» mas que os envolvedores «buscaram para si». Contra estes males, Sá de Miranda vê o remédio num poder régio justamente exercido, ao serviço do Povo, idealização típica do Renascimento.
            Tais ideais exprimem-se num tom nostálgico. Sá de Miranda volve os olhos para os costumes dos antigos portugueses, para a «casa antiga e a torre», símbolo de um mundo em desaparecimento: evoca os reis antigos, que se prezavam do nome de «lavradores», e também D. João II com a sua divisa «Pela lei e pela grei». Para ele o mundo está em decadência. A utopia de uma vida natural no seio da «madre antiga», em que não existia o teu e o meu, nem a guerra, casa-se com aquela melancolia que ensombra os seus versos. Não é por acaso que nestas cartas (em que predominam as quintilhas de redondilhas com dois esquemas alternativos de rima) Sá de Miranda conservou construções e vocábulos arcaicos, como que acentuando o carácter arcaizante do seu pensamento.
            Tal arcaísmo ostensivo – próprio sobretudo das composições na medida velha – combina-se, todavia, com uma acentuada originalidade, e até com um pessoalismo muito acusado. Sá de Miranda foge à expressão discursiva então letrada, quase não estabelecendo transição sintáctica entre o texto básico e os comentários incisos, ou os exemplos, com lição moral. Com vista a este efeito, a sua expressão é fortemente condensada e muitas vezes elíptica. O seu léxico prefere os temas concretos às generalidades e aos eufemismos, sacrificando para isso a dignidade classicizante tão grata a João de Barros ou a António Ferreira. As imagens, por vezes muito evocativas, provêm do mundo familiar, e não apenas do arsenal da tradição literária erudita; e mesmo quando a este recorre, Sá de Miranda veste-o de uma aparência vernácula e até quase rústica. Esta tendência foge às convenções do estilo novo, e sobretudo ao carácter discursivo, expositivo e oratório que está na essência do classicismo. Pelo contrário, orienta-se para uma expressão engenhosa, feita de agudeza conceptual, combinando um artífice extremo com um certo folclorismo apaixonado por apólogos, provérbios e efeitos de oralidade. Ora a importância da elipse avultará no estilo de Góngora, que é directamente avesso à expressão discursiva. Desta forma Sá de Miranda está na corrente que conduz ao Barroco peninsular, e torna-se um dos precursores do conceptismo seiscentista.
            Além dos primeiros versos na medida nova, deve-se a Sá de Miranda a primeira comédia em estilo clássico. Sabe-se também que escreveu uma tragédia com o título Cleópatra, de que nos restam poucos versos, em redondilha maior.
Os Estrangeiros, sua primeira comédia em prosa, localiza-se na Itália. Os tipos e situações evidenciam a imitação de Plauto e Terêncio e da comédia renascentista italiana em fala vulgar portuguesa. Há a competição de um jovem, um fanfarrão e um doutor à volta de uma rapariga posta a preço. As regras do classicismo renascentista são acatadas: acção concentrada num troço de rua, onde se atam e desatam os nós dos interesses em conflito.
            Posterior a esta, e com características muito semelhantes, a comédia Vilhalpandos, que tem por personagens uma cortesã, a mãe proxeneta, dois fanfarrões e um escrivão hipócrita, está animada de um anticlericalismo intenso, que tira partido da localização do enredo em Roma. Ambas as comédias dão expressão a um ideário humanista renascentista: ridicularização das bravatas militares, crítica da Escolástica, do monaquismo e da mendicância beata, da remissão pecuniária dos pecados, exaltação das Letras humanas clássicas e da paz.
            Embora com êxito contestável, Sá de Miranda luta no teatro contra o gosto então dominante dos autos: o prólogo da sua primeira comédia supõe o público surpreendido por não estar a assistir a um auto em verso e rima.

A. J. Saraiva & Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa


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